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Astrid Cabral
 

Fortuna Crítica: Hildeberto Barbosa Filho
A Enunciação poética essencial
 

De déu em déu, Sete Letras, 1998, reúne cinco livros de poemas da amazonense Astrid Cabral, intitulados pela ordem: Ponto de cruz (1979), Torna-viagem (1981), Visgo da terra (1986), Lição de Alice (1986) e Rês desgarrada (1994), numa demonstração completa de sua geografia lírica e de seus meandros verbais e expressivos.

São diversos os portais de entrada desse mapa discursivo, com toda sua cartografia imaginária e seus relevos inesperados e surpreendentes. Um, no entanto, convoca-me a atenção e decerto me rastreia pistas de leitura que podem tocar nas camadas mais secretas e, talvez, mais essenciais, da organização poética de Astrid Cabral. Penso, em particular, na sua capacidade de apalpar os motivos literários (o cotidiano doméstico, a condição feminina, a terra, os estados de alma, as viagens, o tempo, as cidades), num modo de articulação estética da linguagem em que a enunciação poética sempre se projeta, diria de forma espessa e contundente, sobre os tópicos reais do enunciado. Penso até que esta especificidade de seu discurso tende a convergir, numa unidade indissociável, as linhas da interioridade e da exterioridade, lucidamente apreendidas pelo professor Antônio Paulo Graça, no texto de apresentação da obra.

Não importa o lirismo crítico e reflexivo de Ponto de cruz e, principalmente, de Lição de Alice; não importa o telurismo poético de Visgo da terra, nem o enfrentamento existencial, seja evocativo, em Torna-viagem, seja constatativo, em Rês desgarrada, de paisagens, de situações, quadros e contextos alienígenas. Importa, sim, que a matéria poética se faz poética sobretudo pela singularidade da enunciação, sempre caracterizada pela possibilidade de alargar a dimensão semântica das motivações operacionalizadas. Em Astrid, as coisas, os objetos, as situações de rotina, os ambientes, as idéias, enfim, toda e qualquer matéria prima da poesia, como que se transmutam em realidades outras, integrando uma outra ordem da existência em que as noções imediatas de tempo e de espaço, de espessura e de aparência terminam aniquiladas, para que se faça presente o substrato de uma ordem secreta — uma ordem que pode ser ternura ou uma ordem que pode ser crueldade — a gerir os apelos abissais das coisas e dos seres.

Ivan Junqueira, em prefácio a Torna-viagem, assinala que é o “segredo do que se foi” da epígrafe de Bishr Fares, que perdura nos versos da poetisa amazonense, nos impondo “sua linguagem, seus sortilégios, sua irrequieta volúpia encantatória”. Ora, este segredo, ou seja, esta sobra do que se perdeu, este naco de eternidade do que é efêmero, ou mesmo aquilo que um poeta inglês caracterizou como “A thing of beauty is a joy for ever”, é, sem dúvida, a nota central de sua poesia, assim como de toda autêntica poesia. Esta poesia que se converte em poema no arranjo especial dos códigos e signos verbais, pautados pela força da enunciação. Veja-se o que se diz ou se sugere no momento III, de Coleção de espadas, poema de Ponto de cruz:

“Embora grotas e pedras
persigo o horizonte.
(O que está distante
é o que mais me atrai)
Estou apenas à beira de
um monte mas de relance
vejo o abismo das almas”.

 

De outra parte, trata-se de uma enunciação que, sem perder suas raras ressonâncias eufóricas, sobremaneira quando o eu poético se volta para os chamados ancestrais da terra natal, catalisa, não obstante, o travo irônico e conceptual de uma disforia lírica que faz da expressão poética de Astrid Cabral pura enunciação crítica, reflexiva, filosófica, algo à margem dos convencionais metaludismos ou dos experimentalismos ocasionais dos que reduzem a fala poética a uma simples espécie de mecânica da linguagem.

Fosse-me reportar aos tipos de discurso, não teria dúvida em eleger o dissertativo enquanto registro básico de seu processo de enunciação. E por que? Porque na linguagem poética da autora, o ritmo e a imagem, assim como os recursos estilísticos, ostentam sua plasticidade a serviço, contudo, do pensamento e da idéia em torno dos quais se alicerça a estrutura os poemas. Tal procedimento retórico perpassa a construção de todos os textos, mas flagremos o emblemático Corpo e alma, de Lição de Alice, como exemplo axial:

“Palmilhou a geografia do seu corpo:
Mergulhos na lagoa dos olhos. Depois
transpôs planícies de ventre e dorso
e galgou monte de seios e nádegas.
Desceu a vales de axilas e virilhas
às crateras da boca e do ânus.
Desbravou matas na cabeça e no púbis.
Penetrou-lhe a gruta escura do sexo.
Mas a galáxia da alma deixou intacta.
Era-lhe terreno longínquo e nebuloso
para onde nunca se alçou em vôo”.

 

A bem dizer, esta travessia semântica em busca da enunciação poética essencial, descamando o véu aparente das coisas sondando-lhes o avesso, o secreto, o intangível, recorta o movimento lírico desde Ponto de cruz a Rês desgarrada, numa demarcação discursiva que bem define os contornos de um estilo pessoal. Um estilo que, em sendo poético, não sucumbe, todavia, ao artifício das meias palavras: um estilo que não doura a pílula, mas nem por isto deixa-se amputar pelas lâminas de um especular realismo. Ocorre que, em Astrid Cabral, o poema exprime os estados d’alma, a subjetividade, a realidade objetiva, mas exprime numa enunciação à distância, mentalizando os motivos, enfim, pensando...E nunca no viés de um puro recordare.

Esta componente de sua poética, entre outras a que não me referi, já é o bastante para situá-la entre os mais representativos nomes da poesia brasileira contemporânea, assim como seus pares do Norte: Luiz Bacellar, João de Jesus Paes Loureiro, Max Martins, Aníbal Beça e Jorge Tufic, entre outros.

 




Leia a obra de Hildeberto Barbosa Filho
 

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

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Affonso Romano de Sant'Anna