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Marco Antonio Cardoso


 

Esta noite eu bem poderia morrer


Esta noite eu bem poderia morrer,
E deixar todo sofrimento pra trás,
Levando comigo, por toda eternidade,
Minha cota de remorsos e de dor.


Deixaria tristes os que me amam,
E desamparados os que dependem de mim.
Mas, alegres ficariam os que clamam.
Pelo fim da vida inútil que eu vivi.


Esta noite eu bem poderia morrer,
Pois é inexorável que isto tenha que acontecer.
Afinal, este é o fruto do que plantamos.
A colheita que teremos que fazer, mesmo sem querer.


Só sinto que esta dor que me apavora,
Seguirá comigo aonde eu for.
Quando esta noite passar, será eternamente noite,
A noite em que poderei morrer.


Esta noite eu bem poderia morrer,
E finalmente acreditar ser possível
Esquecer todas as mágoas.
Mas por fim, que bagagem levarei?


Aflijo me esperando, esperando sem saber.
Só me resta esperar esta derradeira hora.
Pois que venha, venha logo, sem demora,
Nesta noite infinita, quando meu coração chora.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Eu tenho medo de amar


O amor ainda está lá fora
Esperando eu sair pra me atacar.
Eu tenho medo de amar.
Ele está armado com bombons e buquês.
E agora, eu vou fazer o que?
Eu tenho medo de amar.
O amor é corajoso e esperto,
Anda por aí, de peito aberto.
Eu tenho medo de amar.
O amor quer bater dentro de mim,
Quer ser começo, meio e fim.
Eu tenho medo de amar.
Eu esperei escurecer e ele ainda está lá,
Pois é à noite que ele gosta de atacar,
E eu ainda tenho medo de amar.
 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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José Louzeiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Eu vejo a fome


Eu vejo a fome,
E ela corrói minha alma.
Eu vejo a dor daqueles que têm fome.
É uma dor física, mas também espiritual.
Eu vejo a fome por justiça,
E a dor da vergonha.
Eu vejo a fome,
E ela me observa, distante.
Enquanto tão perto eu a sinto,
Eu vejo e não faço nada.
Eu vejo e cerro meus olhos,
E me torno um covarde.
Eu vejo a fome, e ela mata.
Eu continuo inerte, cúmplice.
E até quando verei com os olhos,
Enquanto mantenho cega minha alma?
Eu vejo a fome,
E ela é um espelho.
 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Anderson Braga Horta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Instantâneo


Mil faíscas à minha volta,
De luz refletida nas
Apressadas gotas de chuva.
O olhar tenta se prender
À trajetória de cada uma,
Como vidas que já se vão.
Os pés arrastam a lama,
Cadáveres insepultos
Das águas nascidas no céu.
As gotas também são lágrimas
Vertidas para os mortos,
Por quem já irá morrer.
Vendo este quadro passar
Ante meu caminhar apressado,
Estendo a mão salvadora.
Quero deter o destino
Da gota que vai ao solo
Transformar-se em lama.
Mas será mesmo preciso
Salvar quem deve morrer,
Desde o início do tempo?
Não sei, talvez nem precise
Saber de coisa alguma
Que não seja meu querer.
Talvez não faça diferença
Para a gota que evaporará
De minha mão salvadora.
Mas faz diferença para mim
Ajudar a quem quer que seja
Que se encaminhe para a danação.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Pedro Nunes Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Mar revolto


Meu mar é revolto,
Escuro e profundo.
Guarda mais segredos
Que o Vaticano.
Quem se aventura?
Quem vai navegar?
Neste mar bravio,
Pode naufragar.
Minhas ondas irrompem
Das líquidas entranhas,
E arrebentam, nervosas,
Em qualquer terra estranha.
Sei que você olha
Com temor e desejo,
Este desconhecido,
Misterioso oceano.
Mas teu corpo treme,
Tua alma angustia-se,
Quer partir e ficar,
Quer em mim procurar
Neste meu profundo mar,
Uma paz de sonho.
Posso te assegurar
Que uma paz assim
Não encontrarás,
Dentro de mim.
Pois sou mar revolto,
Sempre ando solto,
E não tenho paz.
 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Cláudio Aguiar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Não tenho tempo para as estrelas


Se cruzasse o universo
De ponta a ponta,
Buscaria tão somente
Teu coração.
Se vagasse sobre o abismo
Azul e medonho do mar,
Buscaria simplesmente
As profundezas do teu sentimento.
Quando olho o céu noturno
Busco o rumo certo
Para teus suaves abraços.
Não tenho tempo a perder
Olhando as estrelas errantes,
Pois eu mesmo erro na terra
Tentando encontrar meu amor.
Poderia ser tua face
Como aquela constelação
Que me fita com diamantinos luzeiros.
Assim sendo não perderia
Tempo com as galáxias
Pois nas estrelas dos teus olhos
Encontro toda luz que preciso.
Não tenho tempo para as estrelas,
Nem mesmo se caíssem a meus pés,
Porque caminho certeiro como flecha
Para o coração bem amado
Da minha senhora da noite.
 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Dora Ferreira da Silva