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Marco Antonio Cardoso


 

Bahia II


Bahia, terra adorada,
Terra de encanto e magia,
Surgida na longínqua páscoa,
Descortinou o Brasil.
Pindorama, azul anil,
São Jorge dos Ilhéus,
Um Porto seguro no céu.
O santo rio do Francisco,
Cortando como um corisco
O sertão que fora mar,
De Paulo Afonso subia
A Juazeiro vertia
Suas águas de quase mar.
E a Bahia se fez livre,
Do último dominador,
No Dois de Julho, heróico,
Tornou-se Brasil também.
Por esta terra tão ímpar,
De mata, sertão e campinas,
No Raso da Catarina,
É o carcará que domina.
Terra do Bom Jesus,
Da Lapa e dos Navegantes,
Teu coração é gigante,
A todos pode acolher.
De Carinhanha a Chorrochó,
De Catita a Mucuri,
Que bom voltar para ti.


Do livro RODA BRASIL
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Bem aventurados


A lâmpada acesa sobre a porta do casebre
Tenta manter visíveis alguns sonhos.
As crianças barulhentas jogam sua pelada
Na viela lamacenta que os mantém cativos.
Água ferve na panela esperando pela comida
Assim como as pequeninas bocas que rodeiam
Um velho caixote a lhes servir de mesa.
Um velho cão compartilha, amigo, toda esta miséria
Enquanto se vão os dias de indecisa esperança.
Subindo ou descendo os becos desta favela,
A pobreza nunca se cansa de os visitar.
Todos os dias, às suas portas, observa muda
Seus infelizes inquilinos, bem satisfeita.
Algumas bocas poderão até amaldiçoar a vida,
Mas as preces a Deus, a Jesus, à Virgem Maria
Nunca cessarão nestas colinas condenadas.
Se é escassa a comida, abunda a esperança.
Quando um caixote caiado de branco desce carregado,
É que mais um anjo foi falar com Deus da dor dessa gente.
 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Weydson Barros Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Cancér


Seus cabelos abandonados
Frente ao espelho,
Seus sonhos espatifados
Num envelope branco,
Seu pranto insistente
Tinge de vermelho
Seus olhos penitentes.
Profundo cancro.
O passado deixa um vazio:
Suas lembranças.
O futuro é um desafio:
Luta feroz.
A doença voraz encobre,
Toda esperança.
A cura não se descobre.
Sofrer atroz.
Vem a dor e a desdita,
Inevitável padecer.
No corpo já não habita,
A ilusão da cura.
Um desejo moribundo:
A alma só quer morrer.
Deste adeus ao mundo
A dor te deixou mais pura.
 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Maurício Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

D’a queda da casa de Usher
(livremente inspirada em Edgar Alan Poe)


Muito antes de aqui estar,
Possivelmente em época esquecida,
Achei-me alheio e perdido,
Nesta terra que se estende
Entre o sonho e a ilusão.


Quando avistei a vivenda estremecida,
Que me surgiu como miragem,
Impressionando-me fortemente a alma,
Pareceu fitar-me com olhar lânguido e sórdido,
Fazendo-me prostrar perante a tosca atração.


Em tua soleira observei minha sombra,
Tão trêmula como um salgueiro ao vento.
Atravessei a porta rapidamente,
Não sabendo se aberta ou fechada.
Se eu estava vivo ou já defunto.


Oh Deus! Que impressões terríveis!
Ou estarei exagerando um pouco
Neste devaneio literário?
Pus-me a cantar uma elegia,
Que ecoava como brados e sussurros.


As sombras nostálgicas do passado,
E as vidas que ainda impregnavam
O velho solar de putrefato olor,
Açoitaram meu estômago nauseabundo,
Quando com a secreta cripta deparei.


Aqueles que te deram a vida,
Tu ora abrigas na morte.
Mas eles não te bafejam
Com tão doce liberdade
De não te habitar com seus fantasmas.


Agora sopra um vento torturante.
De norte a sul, atravessa-te inclemente.
E no bater de tuas portas e janelas,
Vão se passando estes dias fugazes.
Esta espera de um fim, sempre adiado.


Porém, não lograrás esta chance facilmente,
Pois sobre teus escombros, teus monturos,
Erguem-se sólidas paredes de lembranças.
Encimadas por um teto inclemente e medonho,
Aprisionando a pestilenta atmosfera interior.


No entanto o tempo se compadece de ti,
Fazendo tremendo esforço para dar-te o descanso.
E tu, qual suicida infame, rasga tuas paredes
Em profundas e oportunas feridas,
Que assustam e antecipam teu epílogo.


Não sei quantos por ti passaram,
Quantas sombras teus sentidos registraram.
Teus habitantes e seus medos inconfessáveis,
Ou forasteiros infortunados como eu.
Sem esperança, mas com destino certo.


Sorrateiro, indiscreto e licencioso,
Descortinei teus cômodos secretos.
Penetrando, qual ladrão, em nichos e alcovas,
Abusando de tua generosa acolhida,
Como esperar de ti alguma misericórdia?


Mas aí percebi a sordidez do momento.
Pois guardas os gostos de antigos moradores,
Busco em vão uma saída, e me desespero.
Tuas sombras, aos poucos, me envolvem
Furtiva e completamente, imobilizando-me.


Ouço então gargalhadas e soluços,
Que atravessam meus olhos injetados.
Sonhos de um tempo infindável,
Imprevisível qual vôo de um inseto.
Sou um rato preso na ratoeira!


Tu és flor insetívora, chamariz do campo.
Diônea maldita de pedra e cal.
E eu, simples besouro,
Almejando um abrigo entre tuas paredes,
Devo encontrar enfim, tão só o meu sepulcro.


Já cai a tarde vermelha, carmesim.
Somente as tristes sombras a me fazer companhia.
Quase me junto a elas neste grande festim,
Comemoram a minha chegada
E minha improvável partida.


Sentado em velha poltrona,
Como um monarca ante sua corte,
Tenho à minha frente tua lareira fria.
Depósito fervente de oníricas lembranças.
Sobre ela, ameaçadora, se abre a infinita fenda.


Não me resta mais esperança.
Um grande estrondo me tira do torpor.
Estou imobilizado pelo medo,
Agora não resta dúvida em meu coração,
Irremediavelmente perdido, me entrego.


As últimas imagens deste plano que abandono,
São apenas as profundas rasgaduras em minha carne.
Todo este mundo se arroja sobre mim,
A casa de Usher sepulta meu cadáver para sempre,
E ninguém jamais suspeitará que ali pereci.


Quem poderá supor que sob estas ruínas
Jaz o corpo estropiado de um forasteiro?
Quem poderia supor que uma lúgubre peregrinação
Teria fim nesta vivenda prenhe de pesadelos?
Agora nada mais tem importância.
 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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João Scantimburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Dói


O corpo.
Ele dói.
E destrói esperanças,
As lembranças se embotam,
Desbotam e nos deixam
Com o primeiro sinal
Da dor.


A alma.
Ela dói.
No mesmo exato momento
Daquele vil tormento
Que dilacera o corpo,
Pelo esforço de levar
Além do sofrimento.


A vida.
Também dói.
E vai doendo eternamente,
Vai me fazendo temente,
Até que de repente
Já não me importo mais.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Eduardo Diatahy B. de Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Ela cortou os pulsos


Ela cortou os pulsos,
Por amor ou desespero,
Por angustia ou depressão.
Apenas queria morrer.


Ela cortou os pulsos,
Mas o sangue a assustou.
Pediu socorro, fugiu da morte.
Uns homens a carregaram.


Ela cortou os pulsos
E foi levada ao hospital.
Foi maltratada na emergência
Trabalho duro p'ra quem nada vale.


Ela cortou os pulsos,
Mas agora chora desorientada.
Quer salvar a vida que lhe resta.
-Para que?


Ela cortou os pulsos
Numa tarde de sábado.
Seus vizinhos a viram
Com olhos reprovadores.


Ela cortou os pulsos
Que agora estão costurados.
Uma cicatriz amaldiçoada,
Marca de fraqueza e indecisão.


Ela cortou os pulsos,
Mas teve tempo para arrepender-se.
Pensava consigo mesma:
"Na próxima vez tomo diazepan".
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Luiz Nogueira Barros