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Donaldo Schüler

 

donaldoschuler@yahoo.com

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma notícia do autor: 

 


 

Crítica, resenha ensaio e comentário:


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Saramago, Nobel

Pero Vaz de Caminha


 

      A retórica da subordinação e da insubordinação na carta do achamento

 


  1. Epistolografia

  2. Visão do paraíso

  3. Topônimos

  4. Sinais e sua interpretação

  5. O rigor

  6. Degredados

  7. Duas missas

  8. Natureza e cultura

  9. Paródias de Caminha

 

 

 

1-Epistolografia

 

Da carta de Caminha, a fortuna guardou o original. O diário de Colombo e a correspondência de Américo Vespúcio foram retrabalhados por outras mãos. Para chegar a partes do diário redigidas pelo próprio Colombo temos que atravessar o resumo de Las Casas, sacerdote dedicado, que entendeu salvar assim a memória de Colombo, esmaecida pelos feitos menores de outros navegadores. O que se passou com a correspondência de Américo foi mais grave. Compiladores que pensaram misturar cartas dele com informações de outras fontes levaram a correspondência de Vespúcio às fronteiras da ficção literária;.

O pulso de Caminha move-se com a firmeza de quem sabe. A pena dança para a direita e para a esquerda, traçando enigmas para os intérpretes. O tempo impregna a escrita de Caminha e a distancia como acontece na pintura. Os parágrafos se dispõem emoldurados como quadros. A letra que não é facilmente legível a outros olhos que não os do destinatário evolui ciosa de privacidade. Os leitores que desvendam penosamente os seus mistérios experimentam emoções de quem penetra em recintos secretos. D. Manuel não a publica. A imprensa nascente não chega a profanar esse documento.

Sñor (Senhor), essa é a saudação. Sem a pompa de epítetos majestáticos, Sñor sobrevoa a carta entre intimidade e respeito. Nas evoluções feitas pelo S, a saudação lembra a assinatura, em que a personalidade do signatário se revela. Sñor, na saudação de Caminha, alcança presença ideogrâmica. Epítetos, se os há, fazem-se visuais.

O S, ao se dobrar sobre o corpo da palavra, lembra as asas desfraldadas da gaivota, evocação dos mares percorridos pelas naus do rei navegador. Sigamos as várias conotações que evoca o ideograma . Podemos ver na linha que se dobra sobre Sñor, além de formar o til sobre o n, velas que se dobram impelidas pelo vento? Se estamos autorizados ainda a discernir nela a abóbada celeste, podemos desdobrar Sñor em dois : O Senhor do céu (Jesus Cristo) e o Senhor da terra (D. Manuel). Favorecido pelo céu, D. Manuel estende o seu domínio sobre a terra, fazendo de Portugal o reino messiânico de seu tempo. O absolutismo de D. Manuel não carece de mais eloqüente representação. A linha ainda desenha a parte superior do coração, símbolo da bondade do Senhor celeste que se derrama no mundo através do seu representante terrestre, o monarca do messiânico reino de Portugal. A soberania celeste se espelha na soberania terrena. A linha lembra a cabeça coroada.

Quando no século XVIII, romance s epistolares disputavam a preferência do leitor, os romancistas já tinham perdido a arrogância da visão abrangente, a petulância de um saber que excede todos os saberes, marcas da literatura épica. A carta fragmenta o saber. Quem escreve cartas fala do seu lugar, de suas visões e de suas opiniões. Texto de visões abrangentes, síntese de muitos lugares, de muitas vivências, não é carta.

Se constatamos ao final da Idade Média a emergência do indivíduo contra a cultura anônima e coletiva, não surpreende o recrudecimento ímpar da epistolografia, que granjeou nome a muitos de seus cultores.

Com justiça observa Derrida que, como há um ser-para-a morte, devemos admitir um ser para o telefone. Antes do ser-para-o telefone, houve o ser-para-a carta.

A carta nos devolve a uma época em que a palavra oral, desprovida de aparelhos, circulava no espaço do contato pessoal, auxiliada pela entonação, pelo gesto, pela expressão facial. A carta abre distância em direção ao objeto e em direção ao outro. O epistológrafo inventa recursos que lembram a viveza da conversa, irrecuperável pela ausência da resposta imediata. O missivista adivinha as reações do destinatário, sonda-lhe os sentimentos, responde a perguntas tacitamente formuladas.

A carta de Caminha vem de um outro mundo, de um novo mundo embebido de exotismo, esperança e sonhos. A correspondência dos navegadores abala pretensões de saber total. Quem atravessa o mar traz informações únicas.

De Caminha não sabemos muito. Não se conhecem dele outros documentos com os quais a carta possa ser comparada. Acompanhou Pedro Álvares Cabral até a Índia, onde sucumbiu vítima da revolta contra a dominação portuguesa.

A carta dá voz às apreensões de D. Manuel. Uma frota de treze navios é um investimento vultoso e de alto risco. Se a fúria dos ventos destroçar a frota, planos cuidadosamente elaborados se afundam nas ondas do mar. Donde buscar recursos para compensar a perda? Vem a carta. As evasivas de Caminha deixam sem apoio necessidades imediatas. As imprecisões são suficientes para desencorajar ocupação imediata. O rei, não tendo diante de si o informante, vê-se levado a conversar com palavras grafadas no papel. As lacunas o querem intérprete, convidam-no a dizer o que elas não dizem. A carta sugere lucro advindo de uma futura exploração agrícola. Em silêncio fica a falta de interesse imediato.

Primeiro, o oceano foi atravessado por navios, agora, por cartas, textos que configuram o novo território para cartógrafos, para ficcionistas, para pensadores, para conquistadores. Os textos que atravessam o oceano não são menos importantes do que navios e mercadorias. textos conectam, separam, alimentam pensamentos e ambições.

O texto que gera textos nasce na periferia e se dirige ao centro, partindo o mundo em dois. Uma carta não se produz sem geografia. Na carta, grafia e geografia se enredam. Da grafia, a das cartas, nasce a cartografia.

Caminha mostra, desde as primeiras linhas, o toque de um humanista. Portugal se renova antes do retorno de Sá de Miranda da Itália em l527, ano apontado como início do renascimento português. Mudanças vinham se processando gradativamente e com firmeza. Múltiplos e freqüentes eram os contatos entre as cortes européias. O êxito que o país ibérico já tinha alcançado na tipografia, nas ciências, nas letras, nas viagens marítimas e nos descobrimentos, conferia aos lusitanos evidência entre as nações desenvolvidas. Em muitas áreas Portugal se transforma sem influência italiana. A complexidade européia não se reduz a uma único renascimento. Há vários, disseminados no tempo e no espaço.

Já a modéstia inicial que leva Caminha a declarar que os capitães incumbidos de mandar notícias ao rei o superam em "bem contar e falar" denuncia formação retórica, não interrompida ao longo da Idade Média. Na alegação do não-saber sentimos leve ironia socrática, que ganha na renascença novo alento com o respeito devotado a Sócrates. A ironia filtra certo ceticismo que mina a seriedade de episódios imponentes. O ironista se esconde atrás de máscaras. Máscaras são as palavras, o mundo exótico visto e oferecido. O narrado não vale só pelo peso referencial, vale também pela força da contestação. A ironia transforma objetividades em instrumento retórico. A metáfora toma o lugar da fidelidade do espelho. Caminha elabora uma carta inteligente, alegre, contidamente cômica, marcas renascentistas. Unindo relatar e falar, escreve sem perder o sabor da linguagem coloquial. Estranha a jovialidade no povo que domina o próspero comércio com as Índias, que avança em prestígio na comunidade européia, que floresce nas ciências e nas artes? Comparando a carta de Caminha com as cartas deixadas por Colombo, notamos a diferença. Colombo é dramático, informativo, canhestramente repetitivo quando lhe interessa convencer rei e rainha das riquezas fabulosas nos territórios descobertos. Caminha sabe construir períodos, introduz com elegância gracejos picantes, arma cenas de plasticidade pictórica. O idioma português lhe dá recursos que o latim da época, por ser língua erudita, não tem. A intimidade entre Caminha e D. Manuel, o rei, alicerçada em serviços e favores que unem a família de Pero Vaz à casa real desde os tempos de seu avô, contribuem para excluir da carta a frieza de documentos oficiais.

Ao fazer diferença entre embelezar ("afremosentar"), ver ("vy") e parecer ("me pareceo"), Caminha discute a retórica medieval, que dispensava a investigação na busca da verdade. Guiado pela observação, o missivista já se acautela de chamar asiática a gente da nova terra, ilusão que ainda inflamava os sonhos de Colombo. Além de informações nada convincentes adquiridas de fontes espanholas desde l492, ano do descobrimento das primeiras ilhas do Caribe, os portugueses se beneficiaram dos conhecimentos adquiridos através de Vasco da Gama, que em l498 coroara o denodado esforço português de alcançar a Índia por mares do Ocidente. Em oposição aos falsos índios do Genovês, os lusitanos tiveram o privilégio de divulgar na Europa conhecimentos sobre os verdadeiros habitantes da Índia. Prudentemente Caminha elege nomes abrangentes ("homens", "gente") para designar os exóticos habitantes das descobertas ocidentais. Atento a fatos e informantes, cumpre-nos reconhecer-lhe o mérito de manter separadas observação cuidadosa ("vi"), informação incerta ("me pareceu") e elaboração literária ("embelezar").

Anotações atribuídas ao parecer pontilham a carta. Parece que os nativos não reconhecem a ninguém por Senhor. Caminha presume que não têm casas, acredita que sejam atraídos mais pelo ferro das ferramentas do que pela cruz que está sendo confeccionada, tem a impressão de que há muito mais aves do que as que teve oportunidade de ver... As notas, abundantes, atribuídas ao parecer , salientam a perspectiva do missivista, sempre favorável à empresa. A rigorosa distribuição das observações em dias impede que a subjetividade prejudique a credibilidade do relato. Caminha dispõem-se ao observado sem omitir impressões, caracterizando-as como tais. Sai e não sai de si. Desenvolve uma carta que é também revelação a si.

Informações colhidas pelo olhos se fazem escrita . A distância, suposta, sonhada, é iluminada por um eu, uma testemunha. Nas palavras da testemunha, o sonhado ganha proporções de coisa vista. Caminha descreve cautelosamente. O ver confere autenticidade ao parecer e ao embelezar. O visto não se rende de todo ao olhar de quem passa. O parecer solicita atenção de outros observadores.

Ao passar do observador ao receptor, a carta se aproxima e se afasta do objeto. Tanto quanto o objeto, ou até mais, valem as relações pessoais. O eu da testemunha toca o ele (eles) do objeto, o nós (outras testemunhas), o destinatário e se distancia. Sñor é pessoa e lugar, lugar aberto a outros lugares, os membros da corte, Portugal, Espanha, a Europa.

A relação pessoal culmina no pedido de perdão a um genro preso. Caminha se põe no lugar dos arautos, recompensados quando portadores de notícias favoráveis.

Carta não é crônica. A crônica, ignorando o narrador, chama atenção para o narrado. O receptor, não incorporado na elaboração do texto, dilui-se no geral, sem idade, sem classe social precisas, fora de tempo e de espaço localizados. Na carta a relação emissor-receptor ocupa o primeiro plano. O rei tem em mãos um documento escrito por uma testemunha. Testemunha o cronista não precisa ser. A carta, vinda do próprio teatro dos acontecimentos, sublinha o espaço, a distância. Trazida das regiões de além do oceano, a carta define o outro mundo que, tocado pelos descobridores, se define como periferia. O espaço distingue esta carta dos documentos produzidos no continente europeu. Do sonhado passa-se ao visto. A visão toma o lugar da imaginação.

Percebem-se ao menos duas redações na carta enviada por Caminha ao rei. Na primeira versão, o epistológrafo anota minuciosamente o que ocorre desde a chegada, terça-feira, dia 21 de abril de 1500 até a véspera da partida, sexta-feira, 1o. de maio. A frota seguiu rumo à Índia no dia 2 de maio, antes de se completarem duas semanas de permanência na nova terra. Cabral continuou a viagem com onze navios. Dos treze saídos de Belém, um naufragou já no início da viagem e outro retornou com a notícia da descoberta. No dia 1o. de maio, Caminha, a partir das notas, redige a carta e a assina. A redação final, em que resume o sucedido entre a partida de Belém, segunda-feira, dia 9 de março, conta ainda com a conclusão em que se registram as recomendações ao rei.

A redação final não altera os dados dia por dia anotados. Se no primeiro contato com os portugueses os índios rejeitaram os manjares que lhes foram oferecidos, provavam, depois, tudo o que os forasteiros lhes ofereciam. Percebendo a índole pacífica dos índios, os portugueses abandonaram a cautela inicial que os levava a ordenar deposição de armas. A confiança crescente dispensa cautelas. Caminha deixa intata a anotação feita no domingo de que os aborígenes não constroem casas, mesmo que anote no dia seguinte, melhor informado, a existência de uma aldeia com dezenas de habitações, longas como a nau capitânia, suficientemente amplas para abrigar muitos, providas de fogo e de redes para o repouso.

Na elaboração final, crônica e carta se misturam para acolher várias opiniões do informante. Caminha salienta a facilidade do processo civilizador. Ao que tudo indica os nativos não ofereceriam resistência aos costumes europeus. O epistológrafo acredita que dois degredados bastam para civilizar em pouco tempo centenas de indígenas. Os portugueses encontrariam numa segunda visita condições bem mais favoráveis que as presentes. As considerações finais, subordinadas ao parecer, coroam as anotações dia a dia feitas.

O parecer, ao se isolar do ver, destaca a carta de Caminha tanto de narrativas fantasiosas, correntes na Idade Média, alheias ao cuidado de fidelidade referencial como da literatura bucólica, eivada de estereótipos literários. Pelas suas caraterísticas, a carta conquista um espaço próprio na âmbito da produção literária.

 

2 - Visão do paraíso

 

Caminha elege o mais difícil, a descrição dos homens, da flora, da fauna, da geografia. Não faltavam conhecimentos aos navegadores para, com o uso de aparelhos e a leitura dos céus, traçar caminhos no mar ignoto; dar informações corretas sobre a terra descoberta requeria outras qualidades. Como falar de plantas e de animais exóticos na falta de sistemas de classificação? Como entender homens que não se vestem, não vivem em cidades e emitem sons estranhos? Para não lhes fazer injustiça, melhor seria situá-los no dealbar da humanidade, longe das complexidades dos países cultos. Excluindo-os da história, ninguém estranharia que aparecessem sem religião, sem governo, sem guerra, inocentes, obedientes e bons como as crianças. Nessas circunstâncias, acolhê-los como protegidos sem os consultar era até um ato humanitário.

O epistológrafo recorre ao código com/sem para classificar a humanidade. Aos homens sem governo, sem guerra, sem vestes, sem religião, sem maldade, Caminha opõe os europeus com os atributos negados aos índios. Convívio maior dos europeus com os povos achados nas novas terras e outros interesses deverão reconceituar essa polaridade.

Na Europa, os homens refletiam sobre si mesmos, orientados pela tópica de antigos e modernos. Excluídos estavam os árabes e a Idade Média, culturas rejeitadas. Antigo era o mundo recuperado, o mundo dos modelos tidos como eternos, o mundo greco-romano. Outra é a norma de europeus que saem do seu continente e se defrontam com novas culturas. Caminha não elaborou o elenco das negações firmado só na observação; norteava-se também pelo esquema mítico das Metamorfoses de Ovídio.

Se o homem primitivo vivia próximo da perfeição sonhada, o europeu moderno só podia considerar decadentes os seus próprios costumes. Os descobridores se emaranham em dificuldades classificatórias de que não conseguem sair. Confrontados com a simplicidade de homens da idade do ouro, são decadentes, mas olhando para o desenvolvimento da ciência e das artes, nenhuma cultura presente ou passada excede o florescimento europeu dos últimos tempos. A beleza inocente das mulheres , que não está relacionada com o desenvolvimento científico, deixaria as européias envergonhadas:

 

E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a

cima, daquela tintura; e certamente era tão bem

feita e tão redonda, e sua vergonha - que ela não

tinha! - tão graciosa, que a muitas mulheres de

nossa terra, vendo-lhes tais feições, provocaria

vergonha, por não terem as suas como a dela.

 

Esboça-se aqui a tópica das utopias. Ao idealizarem estranhas civilizações, os autores de fantasias utópicas condenam, por comparação, o que lhes parece reprovável nos costumes europeus. O universo da cultura européia se desestabiliza. Outra cultura julga a própria. Os europeus, quando retornavam aos seus países de origem, enxergavam com outros olhos. Certezas seculares vacilam sob a severidade desse olhar.

E o sentimento das européias? Dele não fala Caminha. Mas dele falam as cantigas d’amigo portuguesas. Torturadas pela ausência, as mulheres abandonadas sonham com o retorno do amigo seduzido por exóticas belezas. As cantigas, ainda que redigidas por homens, recolhem o calor de lágrimas que caem amargas nas amargas ondas do mar. É a maneira feminina de evocar o paraíso, simbolizado pelo lar e o companheiro, levado para longe pelas naus que se perderam no horizonte. Para sempre? Como recuperar a doçura de olhos seduzidos por belezas distantes?

O olhar europeu faz dos nativos homens que ainda não acordaram e que por isso são felizes. Por estarem adormecidos, o olhar não responde ao olhar. A solicitação, não sendo sentida, não é respondida por oferta ou fuga. Os índios, se fogem, é do estranho, mas não do olhar dominador. Que se ocultassem desejos e crimes no olhar estranho, isso os índios não sabiam.

Duas imagens de mulher se estampam na arte religiosa do renascimento, a da mãe com o menino (Rafael) e a da mãe com o filho morto nos braços (Miguel Ângelo). Acrescente-se a essas a mulher desnuda da arte profana (Cranach). Mas dessa os europeus não tinham experiência pública além do corpo exposto em estátuas e pinturas. Eis a razão do olhar insistente pousado no corpo das índias que se movem inocentemente na praia. A carta não é o lugar para Caminha se demorar na licença dos descobridores, mas a indiferença infantil registrada nesses primeiros contatos é pouco convincente, considerando-se a licenciosidade costumeira. Camões oferece outra imagem dos navegadores, cansados de longas semanas de labuta no mar. Os folguedos narrados na ilha dos amores em Os Lusíadas parecem corresponder melhor aos fatos do que os castos olhares na carta. A arte sabe ser mais verdadeira, por vezes, do que o registro documental. De qualquer modo, as nativas de Cabral foram vistas como nunca o tinham sido antes. Caíram sob um olhar que objetualiza a contemplada.

Embora observador arguto, Caminha não se desembaraça de informações hauridas em fontes escrita s. Observação e texto consagrado se opõem como outros pólos de conflito. O homem da renascença ora registra o que vê com os olhos, ora preserva o que lê em livros sem critério que torne menos problemática a hesitação.

Tomemos três formas de existir: ser, estar e ponderar. Entenda-se como ser o projeto ocidental de explorar o invisível atrás do visível, o comum no particular, rumo ao fundamento de todas as coisas, estável, fecundo, eterno. Seja estar tanto a imersão no circundante praticada por homens que não primam pela exercício da reflexão como o viver das sociedades que Lévi-Strauss considera congeladas, para as quais, acomodadas no aparente, o ser não faz apelos. Entendamos como ponderar o reexame radical de quaisquer pressupostos. O confronto de europeus e índios provoca em ambos a passagem do ser e do estar ao ponderar. Os portugueses que retornam, depois do que viram no mar e além do mar, não são os mesmos. O ponderar os leva a novas representações de si mesmos e do mundo. A transformação dos índios é mais lenta. Muitos morrem antes de compreender o que ocorreu. Esta primeira visita de barcos e homens estranhos, seguida por lona ausência, deve ter entrado no rol do fabulário fantástico. Marcada estava, entretanto, também para eles, o fim da era do estar no mundo e o início da sofrida era das ponderações. O viajar de uns envolve todos no viajar sem fim.

Longe dos territórios civilizados, a tradição tornara plausível a existência de aparições monstruosas. A essa falácia não escapam os relatos de Colombo, que confirma a existência de sereias. Caminha é mais sensato. Prefere seduzir com as qualidades do texto a despertar interesse com informações que excedem a observação. Garcia Marques declara o Diário de Colombo a primeira página de realismo maravilhoso. Mais despertos do que os espanhóis, os portugueses resguardaram o Brasil desde o princípio da sedução do fantástico.

O que viu Caminha? Viu o que quis ver. Viu sonhos. Vindos donde? De esperanças antigas, tão antigas como as de Hesíodo. Premido pelas agruras de seu tempo, Hesíodo vê uma terra de paz além das ondas bravias do Oceano. É um sonho em busca de concretização, suprido de pomos de ouro. O que não está em nenhum lugar, concretizou-se em algum lugar, o lugar do desejo. Visto que o lugar dos sonhos não se oferecia na árdua labuta de todos os dias, os gregos o imaginaram longe, além do Oceano e o designaram de Hespéridas, Ilhas dos Felizes. A realidade lhes era tão áspera que a rota à região bem-aventurada só poderia ser aberta por homens excepcionais, heróis da estatura de Perseu, que encontrou no caminho monstros como Medusa com poderes de transformar em pedra o corpo que caísse debaixo de seu olhar. Além do triunfador sobre a Górgona dos cabelos de serpente, ganharam renome Ulisses e Hércules na luta contra adversidades superiores em muito a recursos normais. Não se podem destruir hidras de sete cabeças, não se podem vencer águas em que rochas moventes espatifam navios, sem esclarecida razão, sem o amparo dos deuses. A cada vitória, os heróis ampliavam o espaço da civilização e as Ilhas dos Felizes recuavam, tangidas pela conquista, para além da linha sedutora em que se afunda a face inflamada do sol.

Entre os povos cristianizados, o sonho de uma terra sem dor emaranhou-se com a esperança de achar o paraíso, primeira morada do primeiro casal humano. Corria a lenda do monge irlandês São Brandão, que teria levado sete anos para chegar ao paraíso terrestre, depois de vencer perigos fabulosos. A Viagem de ultramar de John Mandeville, misturando ficção e fatos, conduzia ao sonhado destino. Sem derivar para o sobrenatural, o Livro das Maravilhas de Marco Polo seduzia com um Oriente de riquezas prodigiosas. Percorria a Europa já há três séculos a lenda do decantado Preste João, soberano admirável, monarca nas Índias, agraciadas com um dos rios do paraíso terrestre, rei cristão riquíssimo, desejoso, segundo uma carta apócrifa endereçada ao rei bizantino, de unir-se às cruzadas ocidentais para libertar os lugares santos da lei maometana.

Animados pela ciência e pela fé, navegadores se fizeram ao mar alto. A tipografia, invenção recente, misturava na mesa dos estudiosos tratados científicos, relatos imaginosos e livros devocionais. A carta de Cristóvão Colombo aos reis católicos, ao detalhar as descobertas da terceira viagem (l498-1500), é eloqüente. Ares amenos, nativos inocentemente despidos e pacíficos, vegetação abundante, metais preciosos, eram-lhe indícios inequívocos da proximidade do Éden bíblico. Tanto o anseio de um acesso fácil às soberbas riquezas do Oriente como o empenho de vencer as agruras da vida lançaram os aventureiros ao mar. Anos de contato com as recém-descobertas terras da América Central não foram suficientes para extinguir a ilusão em Colombo de que o paraíso terrestre estava escondido em algum território banhado de águas mornas. O almirante andava tão convencido de que as naus o tinham levado às portas do paraíso que chegou a imaginar a terra em forma de pêra, escondendo no topo a região encantada. Não é diferente a informação sobre o paraíso terrestre registrada na Bíblia medieval portuguesa em fins do século XIV:

 

Este paraiso fez Deus eno Ouriente, e hé hu~u logar

mui deleitoso, e hé mui alongado (afastado) per mar, e

per terra,e mui apartado da morada dos hom~ees, e hé

tam alto, que chega ataa a redondeza da lu~a em tal

guisa, que as auguas do deluvio nom chegaram a ele.

(Capítulo X)

 

Levado pelo sonho, Cabral permitiu que a frota sob seu comando se afastasse da costa africana. Os conhecimentos náuticos avolumados ao longo do século XV eram suficientes para orientar os navegadores com segurança nos salgados caminhos do mar. O sonho, mais atrativo que a ciência, mais forte que o sopro do vento, não deteve as velas alinhadas na rota do sol. Não sonhava apenas Cabral, sonhava também o rei que o nomeara capitão, sonhavam os portugueses, povo messiânico incumbido de levar para terras estranhas a cruz de Cristo. A força unida de muitos sonhadores empurrou a frota de Cabral mar adentro contra a propalada alegação de que rumava só com fins comerciais para a Índia pela via divulgada. A aproximação da carta de Caminha aos documentos de Colombo fortalecem essa suposição. As semelhanças não são apenas devidas à natureza do objeto mas também ao espaço cultural de que ambos partiram. Ambos declaram inocentes e pacíficos os nativos, ambos exaltam a qualidade do clima e a fecundidade do solo, ambos mencionam ouro, embora o território brasileiro retivesse por mais de um século os tesouros em serranias inexploradas.

O sonho contou com o apoio do sucesso das navegações de Espanha. Desde a notícia do achado de 1492, transmitido por acidente aos portugueses em primeira mão, o trono de Lisboa se empenhou em empurrar para oeste a linha que deveria definir territórios portugueses e espanhóis. Se Portugal adiou a travessia do Atlântico, foi porque a rota costeando a África, satisfatoriamente compensadora, prometia lucros ainda maiores se atingisse a Índia. Os resultados da façanha de Vasco da Gama mostraram que o projeto português estava correto. As empresas marítimas de longo curso em fins do século XV, que só traziam despesas a Castela, beneficiaram acima das expectativas os cofres reais de Portugal.

Os descobridores do Novo Mundo vivem na confluência de duas idades: a antiga e a moderna. Os conhecimentos náuticos, os estaleiros e o domínio dos mares os colocam na alvorada dos tempos modernos; os sonhos desenham o crepúsculo dos tempos que se apagam. Os períodos não se sucedem com a nitidez que lhes imprime Foucault. Há confluências, há retenções, há antecipações. Águas de muitas fontes se derramam no mesmo mar. Sonhos antigos como o das Espéridas, ampliados e modificados, convivem com o avanço científico e técnico. As contradições que marcam os atos dos navegadores exprimem o conflito.

Ainda que levado a atravessar os mares com o sonho do paraíso terrestre, Cabral se detém ao encontrá-lo. A reflexão modera o sonho. Cedesse ao sonho, teria que depor sua condição de civilizado para se tornar silvícola com os silvícolas. Essa hipótese não lhe ocorre em momento algum. Convictamente português e europeu, o descobridor sabe que o paraíso, mesmo que exista, não foi feito para ele. Repete assim o comportamento dos primeiros navegadores ocidentais. Ulisses, mítico explorador do Mediterrâneo, resiste à sedução do paraíso, embora a imortalidade seja o prêmio nas envolventes palavras de Calipso. O rei de Ítaca prefere ao prazer sem fim a luta, o sofrimento, a história. Desde os primeiros contatos, percebe-se a convivência impossível do paraíso e do conquistador. Não se toca no paraíso. Como alterar o que já é perfeito? Os planos de cultivar a terra, de converter os índios e de submetê-los ao trabalho não considera a bem-aventurança estática em que o habitante da nova terra adormeceu. As providências recomendadas ao rei desencadeiam o movimento, provocando a passagem da pré-história à história. O paraíso pertence a outro tempo. Ainda que a aparição utópica incrimine costumes europeus, não se pensa em reconduzir a agitação portuguesa ao imobilismo dessa utopia. Perdido como a infância, o paraíso terrestre poderá sobreviver como saudosa lembrança. A idéia de que sociedades periféricas pertencem a uma idade separada é acolhida até por antropólogos. Lévi Bruhl distingue ainda no princípio deste século mentalidade pré-lógica e idade lógica. Lévi-Stauss se embrenhou na floresta brasileira em meados deste século, encontrando situações semelhantes as de Caminha: nativos que viam homens brancos pela primeira vez. Como se vê, a visão de Caminha, avançando para além de Rousseau, vem até nossos dias. Derrida indigita com justiça as fantasias do antropólogo.

O não-lugar arma-se em crítica ao lugar habitado pelos europeus já na correspondência de Caminha e Américo Vespúcio. Em ambos, a ausência de governo contrasta a centralização do poder; a ausência de religião, a disciplina eclesiástica; a ausência de pudor, o cuidado com que se esconde o corpo; a amizade, a competição desenfreada. Mesmo na correspondência de Américo, as semelhanças devem-se não só ao visto mas também a quem viu. Comum é o desejo de reformar a Europa, comum é código que orienta quem escreve.

Dos três, Colombo, Vespúcio e Caminha, Colombo é o que mostra maior apego ao passado: crê fervorosamente no paraíso terrestre e imagina pisar terras governadas pelo Grande Cã. Na correspondência de Caminha e Vespúcio não se alude ao sonhado imperador e abranda-se o fervor da visão do paraíso. A vigilância crítica é nesses dois bem mais acentuada. Não é sem motivo que Thomas Morus eleja como fonte da Utopia um navegador português, Rafael Hitloteu, pretenso auxiliar de Américo Vespúcio. Vespúcio Aproxima-se de Caminha ao alegar que em duas de suas expedições esteve a serviço de D. Manuel, o mesmo que organizou a frota de Cabral. Na carta, Vespúcio descreve a terra visitada por Caminha.

Morus muda a fisionomia dos canibais denegridos pela literatura jesuítica, visto que em meio a instituições reprováveis têm "leis capazes de esclarecer e regenerar as cidades, nações e reinos da velha Europa". Através de Rafael, Morus contesta as guerras de conquista, a intolerância religiosa, a pena de morte, a nobreza ociosa, o desemprego, a injusta distribuição das terras, lucros excessivos, o luxo, o sistema educacional, a concentração das riquezas, a desproporção entre o crime e a sentença, trabalho penoso e escravo, governo despótico.

Montaigne obtém informações do mesmo território freqüentado por Caminha através da França Antártica de Vilegagnon. Como Caminha, Montaigne valoriza o ver contra o parecer. Encanta-o a sociedade que subsiste com poucos artifícios numa região sem comércio, sem literatura, sem matemáticas. Os canibais de Montaigne vivem ociosos e passam o dia a dançar. Sacerdotes não lhes determinam o comportamento. A moral resume-se à valentia e ao afeto. Não conhecendo guerras de conquista, vivem fraternalmente. Quanto ao canibalismo, sentencia: é mais bárbaro comer um homem vivo do que devorá-lo depois de morto.

A crítica renovadora floresce no espaço que se abre entre o centro e a periferia, entre o lugar e o não-lugar.

 

 

3 - Topônimos

 

O missivista desloca-se em poucas linhas sobre a longa travessia do Oceano e se detém com saborosos detalhes nos rápidos contatos com os nativos. Não há motivo para narrar peripécias da viagem. Caminha sublinha o triunfo. Mais lhe importa contemplar o paraíso achado do que demorar-se em dificuldades de chegar. Os interesses econômicos da descoberta insinuam-se bem dosados na caraterização do pitoresco.

Três propósitos assinalam os navegadores ibéricos: a busca do paraíso terrestre, a implantação da cruz de Cristo e a posse. Cabral, ao primeiro contato com a nova terra, dá nomes cristãos e portugueses aos acidentes geográficos, não indagando sobre designações nativas de eventuais senhores das terras. O ato requer atenção a dois processos sintáticos: a parataxe (coordenação) e a hipotaxe (subordinação). O termo "hipotaxe", sem uso gramatical na antigüidade, vem das áreas administrativa e militar e se deriva do verbo hypotasso, que significa submeter, pôr sob a proteção de, alinhar atrás de. De origem militar é também o substantivo parataxe. Parataxis significa organizar as linhas de combate uma ao lado da outra. O que hoje chamamos de coordenação ou parataxe, Aristóteles designava de lexis eiromene (linguagem falada) e o que classificamos como subordinação ou hipotaxe foi por ele apontado como lexis katestramene (linguagem subordinada ou construída em períodos). O filósofo, no livro terceiro da Retórica, (Ret. 1409a) desenvolve, em poucas linhas prenhes de sugestões, os dois processos. Aristóteles prefere a subordinação porque o período conduzido por ela chega a um fim; os limites são claros. A coordenação, própria da linguagem falada, perdendo-se no ilimitado, não apresenta princípio ou fim definidos, não sendo, por isso, adequada ao pensamento rigoroso.

A nomeação indica a posse. As regiões nomeadas entram na esfera da língua portuguesa, da cultura européia, do império marítimo em formação. Sem ouvir nativos, os portugueses chamaram Pascoal o monte desenhado na linha do horizonte e Vera Cruz a terra que se erguia do mar. Terra e monte foram eleitos para monumentos da morte e da ressurreição de Cristo, festejadas à época do descobrimento. Os nomes atraíam os indígenas para novo tempo e novo espaço, mesmo antes de terem sido vistos. A nomeação é agressão. Agressão suave, mas agressão, cuidadosamente conduzida até o triunfo da língua portuguesa sobre falares autóctones em meados do século XVIII. Enquanto o dominador impunha a língua portuguesa em documentos oficiais, as línguas nativas retrocediam aos ambientes familiares onde pereciam com os mais velhos. A estada de Cabral no Brasil por alguns dias contrasta com a exploração demorada que reteve Colombo nas ilhas do Caribe. Mas quanto à nomeação a atitude é a mesma. Falta tempo a Cabral e a sua equipe para aprenderem topônimos indígenas. No entanto, mesmo que seus ouvidos se tivessem acostumado aos sons exóticos, a troca de nomes seria fatal. A retórica dos descobridores hostiliza o barbarismo, ainda que o substituto castiço prejudique a inteligibilidade. Não se conhece a reação dos indígenas ante as vozes que ouviam pela primeira vez. Certo é que não adivinhavam que os estranhos os privavam da liberdade, e lhes assinavam a pena de morte. A negação das culturas periféricas não trazia escrúpulos ao europeu renascentista. Tão certo de sua grandeza estava, tão seguro dos favores divinos que esmagava ostensivamente o que se opunha ao seu domínio.

O ritual da troca de nomes não opera sempre a renovação da existência, nem satisfaz sem reservas as exigências da poeticidade. Inaugura aqui nova idade sem anunciar univocamente florescimento, vida - marcas da poiesis. O nomear, recurso do poiein, denuncia, por vezes, estratégias da destruição. Retenha-se a duplicidade do nomear para não incorrer em comprometedora simplificação. Os nomes de Cabral e de seu idioma serão ressemantizados. A língua dos conquistadores reclamará naturalização. Os falantes da nova terra sentirão familiar a língua adotada a ponto de se moverem nela como sua. Isso acontecerá, entretanto, em outro tempo e outras circunstâncias. Estamos no início do estágio em que a presença de homens vindos do mar empobrece, humilha e escraviza populações livres. O novo visto e antevisto pelo conquistador veste a máscara do obscurantismo, da tirania, do aniquilamento na ótica do conquistado. O Brasil é desde o primeiro momento país do futuro.

 

 

4 - Sinais e sua interpretação

 

A frota portuguesa avizinha-se das terras descobertas com o vigor da retórica subordinativa. Mares, territórios e homens apenas tocados, apenas vistos, são intimados a reconhecer a hegemonia portuguesa. A frota comandada por Cabral, que partiu de Portugal com treze navios, era a mais bem equipada, a mais imponente na história das navegações modernas. Manuel I quis confirmar com ela o seu domínio sobre os mares. Coordenação praticava-se entre estados independentes na Europa. Viagens pelo continente europeu, cada vez mais freqüentes, ampliavam o campo da visão, toleravam a presença de iguais. As forças que no pensamento e na arte romperiam, em breve, a unidade européia já se armavam. Quando estes mesmos europeus atravessavam os mares, não cessavam os atos tendentes a submeter o desconhecido aos padrões da civilizada Europa. O tratado de Tordesilhas e tratados subseqüentes impunham limites europeus aos territórios que se dispunham parataticamente antes da visita das naus ibéricas. Já na confecção de mapas, os primitivos habitantes da América eram arrastados da oralidade sem limites para as circunscrições da escrita . Aprenderam na perda da liberdade, no sofrimento, o rigor da sintaxe subordinativa, petrificada em monumento na arquitetura barroca.

Subordinante é a atitude do capitão-mor da esquadra portuguesa no primeiro contato com os nativos. Chega às raias do grotesco vê-lo assentado num trono , bem vestido, com uma medalha de ouro ao pescoço, rodeado de seus dignitários em plano inferior, para receber homens nus. Caminha, acentuando a ostentação teatral, reflexo do faustoso exibicionismo das cortes européias, flagra a personalidade do almirante, membro de uma das mais poderosas famílias da época, casado que estava com D. Isabel de Castro, neta de reis. A oposição requinte/barbárie marcará a implantação da cultura portuguesa em território americano. Cabral não conseguiu impressionar, entretanto, os silvícolas como pretendia. Entraram no barco sem as esperadas mesuras da requintada sociedade européia. Não só a linguagem dos sons, também a dos gestos obedece a códigos. A cena arquitetada por Cabral materializava um código que aos índios não dizia nada. Gritante é o choque de culturas quando um índio, tomando nas mãos a insígnia de ouro que ornava o peito do descobridor, aponta para a terra, repetindo o gesto ao notar um castiçal de prata. A hilariante resposta nativa à dominadora atitude de Cabral incendeia a cobiça européia. Para os portugueses, aqueles gestos diziam que na terra havia ouro e prata. Não podiam equivocar-se? Visto que os curiosos visitantes viviam ainda na idade da pedra, não classificavam os metais em outra categoria, e aquela medalha entrava no rol das superfícies polidas que sabiam produzir. Caminha é bastante arguto na denúncia do equívoco: "Isto tomavamonos asy polo desejarmos." Colombo não chegou a imaginar que significados atribuídos a sinais pudessem ser produto do desejo. Menos precavido, tomava por verdadeiros os indícios de riqueza. E é de se compreender. Do valor da descoberta dependiam os recursos para novas expedições. Cabral, ao contrário, não exigia do "achamento" lucro imediato. O caminho às Índias estava aberto pelo sul da África e por ele fluíam riquezas. Caminha exalta o clima, o solo, águas abundantes e o tronco robusto dos nativos, condições favoráveis à exploração agrícola, reservada para ocasião propícia. Com a paciência da gente de Cabral contrasta a enfática urgência de Colombo, que chega a justificar a escravização de povos que o acolheram amistosamente para compensar as remessas insuficientes de metais preciosos. Espanhóis e portugueses divergem na expectativa, mas quanto ao desejo de domínio são iguais. Não é com interesse estético que o escrivão de Cabral exalta o corpo dos nativos nem é por simpatia que sublinha a presteza deles em supri-los de água. Robustez e docilidade são virtudes que recomendam povos destinados ao trabalho servil.

Não nos apressemos em denunciar a sede de ouro, condenada com vigor pela ética medieval. O início do século XVI já apresenta uma evoluída economia de mercado. Longe vai a época das trocas diretas. A moeda intermedeia as transações. Capitalistas financiam expedições militares, investigação científica, construção naval, viagens comerciais e exploratórias. Avalie-se o custo de uma frota como a de Cabral com treze navios, mil e quinhentos homens, entre os quais figuravam muitos profissionais contratados para serviços especializados. Sem um cuidadoso cálculo de receita e despesa, os prejuízos poderiam causar muitos danos. O custo elevado das viagens marítimas levou Portugal a sérias dificuldades econômicas antes de se despedir o rendoso século XVI. O interesse por ouro num período altamente competitivo como aquele em que reis deviam fortunas aos bancos está mais do que justificado. O desejo de ouro como meio de construir vida fácil contaminava, como sempre, interesses privados.

Desacertos como o fortalecimento da Inquisição negaram aos portugueses a organização de sistema bancário próprio. As riquezas geradas pelas navegações abarrotaram os cofres de redes estrangeiras. Portugal modernizou-se na aquisição, na ostentação e no gasto, mantendo-se medieval na falta de instituições que recebessem aplicações e multiplicassem o capital. Modernizado pela metade, o pioneiro das grandes navegações sofria a ameaça da ruína já na fase do seu maior desenvolvimento.

Cortês, o conquistador do México, lembra Pedro Álvares na inclinação teatral. Aceita dos nativos o papel de Quetzalcoatl, o deus que parte e que retorna, e como tal o conquistador legitima o domínio sobre o combalido império de Montezuma. Cabral não teve a mesma sorte. A irreverência do índio brasileiro desorganiza o espetáculo. O que foi elaborado para produzir efeito de tragédia degenera em comédia quando o índio se aproxima descortês do navegador e passa a examinar sem constrangimento a medalha que lhe orna o peito. Teremos na atitude desse autóctone a espontânea aversão brasileira à seriedade ? Ainda que não seja assim, atitudes que produziram submissão respeitosa no México, viraram comédia no Brasil.

Obedientes aos acenos da gente de Cabral, os homens que se aproximam da praia depõem as armas. A informação é de Caminha. Podemos ter certeza dela? Não espanta que guerreiros se desarmem em presença de barcos gigantescos e de homens estranhos? Informados sobre os costumes dos nossos indígenas, a deposição das armas nos parece menos espantosa. Guerras de conquista não mobilizam tropas entre tupinambás, espalhados de norte a sul pelo litoral brasileiro. A vingança os punha em armas. Como os brancos emergidos do mar não lhes tinham feito nenhum mal nem sofrido afronta dos silvícolas, não havia razão para ataque e defesa. Deve-se a isso o convívio fraterno entre nativos e descobridores durante a primeira semana de mútua observação?

Sendo inviável comunicação verbal entre navegadores e nativos, outros signos devem falar. Testa-se o nível civilizacional dos nativos. Reprovados pelas leis da cortesia, quer-se apurar se ao menos atingem o estágio de um modesto camponês de Portugal. O resultado é decepcionante: não reconhecem o carneiro, rejeitam pão, peixe, mel e passas de figos, não sentem atração pelo vinho. Observa Cabral mais adiante: "de que tiro seer jente bestial e de pouco saber e que por ysso sam asy esqujvos." Cabral demora-se no esforço dos portugueses em extrair sinais que desdigam a impressão de bestialidade. Por mais compreensivo que o epistológrafo tente ser, permanece a opinião de que se trata de gente com "pouco saber". Não aventa a hipótese de estarem inseridos em outro saber. A oposição requinte/barbárie marcará a implantação da cultura portuguesa em todas as etapas.

Os portugueses incorrem em muitos equívocos nesses primeiros contatos. A desinteligência não se restringe à fala e aos gestos. Qual era o sentido das pinturas que revestiam o corpo dos silvícolas? Os descobridores estavam longe de imaginar que a finalidade daquelas formas coloridas, resistente ao contato da água, era mais que estética. Escapava-lhes que naquelas linhas estava inscrita hierarquia, função, nacionalidade. Advertidos de que impropriamente restringimos a escrita ao alfabeto, devemos considerar aquelas cores e traços signos de um sistema de escrita pictórica, exigido pela organização social. Se os descobridores viessem menos impressionados com a revolução operada pela imprensa, teriam visto nas epidermes coloridas cartas não traçadas em pergaminho, cartas pintadas na pele viva dos homens. Se tivessem adivinhado a mensagem desses documentos ambulantes, podiam ter revisto o juízo negativo que faziam da civilização estranha.

Depois de muitos enganos, civilizados e nativos descobrem uma linguagem em que se entendem, a dança. Quando Diego Dias de Sacavém entrou acompanhado de um gaiteiro numa roda de dança, esboça-se uma cena de alegria dionisíaca que derruba a barreira das culturas. Sabendo que a dança indígena tem caráter ritual, podemos partilhar da certeza dos navegadores? Poderiam os portugueses imaginar que os passos ritmados tinham significado sagrado ao nível da missa há pouco celebrada? O riso dos índios era de aprovação ou riam da inabilidade de Diego em imitá-los? Culturas diversas se desentendem mesmo em horas de confraternização.

 

 

5 - O rigor

 

O cipoal semiótico em que se enreda Caminha ao penetrar no mundo estranho não desmerece o propósito de observação exata. Se, depois da leitura de Homero, passarmos os olhos pela carta do escrivão de Cabral, notamos que, quanto ao tempo e ao espaço, o comportamento é bem diferente. Frouxas são em Homero as indicações que não estejam relacionadas ao alvorecer e ao ocaso; certos dias inflam-se de episódios, outros registram menos do que poderiam comportar. Os dias se dilatam e se contraem no interesse do narrador. Vale o mesmo para as referências ao espaço. Os gregos ora se encontram tão longe das muralhas de Tróia que se lhes exige força sobre-humana para atingi-las, ora se movem tão próximos que até as linhas do rosto podem ser reconhecidos do alto da muralha. A carta de Cabral está em outro extremo. Não registra apenas dias e meses, mas também horas e frações de horas: oito horas, nove horas, por volta das dez horas... O rigor na medição do espaço não é menor. Quando a frota se aproxima da costa brasileira, Caminha chega ao requinte de anotar a distância que separa cada uma das naus do litoral. O leitor, seguramente orientado no tempo e no espaço, adquire confiança no que lê. A seleção dos assuntos, a disposição das informações, a escolha do vocabulário, a elaboração dos períodos obedecem ao mesmo rigor. A carta se fecha como um conjunto exato e belo. Cabral nos oferece um documento que traz a medida como marca dos novos tempos. Os índios, familiarizados com o tempo cósmico como os heróis de Homero, entram na idade do cálculo. Quantos são? Quantos seriam? Desde o primeiro momento, Caminha os percebe em grupos de seis, vinte, setenta. O cálculo coopera para sujeitar os que se perdiam no inumerável.

 

 

6 - Degredados

 

Foram dois. De um deles sabe-se o nome. Chamava-se Afonso Ribeiro e fora criado de Dom João Toledo. Condenado pela justiça, conhecemos a sentença, pena de morte, abrandada com o degrado. Como ignoramos os crimes, não há como avaliar o acerto do castigo. Se estivéssemos melhor informados, seriam ainda considerados criminosos? Naqueles tempos os acusados não tinham acesso ao processo movidos contra eles e não contavam com defesa de advogado. Qualidades que dignificam o homem foram reprimidas com tortura e morte. Comportamento contrário aos interesses do rei ou de algum de seus protegidos podia dia desencadear ódio e punição. Para Michel Foucault, em Vigiar e punir, o delinqüente, antes do século XVIII, foi produto do sistema carcerário. Visto que Caminha espera que os degradados trabalhem pela coroa portuguesa nas terras descobertas, que difondam o evangelho entre os nativos, temos prova de que Afonso Ribeiro e seu companheiro não foram considerados criminosos vulgares nem pelos seus contemporâneos.

 

 

7 - Duas missas

 

A primeira ocorreu ao domingo, dia 26 de abril, pela manhã. Dita por Frei Henrique, foi ouvida, ao que pareceu a Caminha, com muita devoção.

O comportamento do missivista não confirma a observação. Que disse o padre? Num carta em que Caminha se desculpa da prolixidade; quanto ao sermão, ele se comporta reticente. Observa que, muito a propósito, o padre falou sobre a luz. Não é difícil conjeturar que, nas circunstâncias, o sacerdote tenha se demorado na providência divina que, através dos navegadores, iluminou os nativos afundados, sem conhecerem Deus, em trevas. Conjeturas. O brilho dos trópicos atrai o missivista mais do que o sermão. Caminha se demora no que vê. Fala sobre os movimentos do sacerdote, perde-se nos arredores, nas distrações dos índios, finda a parte litúrgica da cerimônia. Que atrativos poderiam oferecer aos índios palavras ditas em língua estranha? Caminha está mais interessado nos folguedos dos índios que, ao som de corno e buzina, dançam antes de se fazerem ao mar em jangadas. O epistológrafo vai ao detalhe de descrever a embarcação, três traves atadas entre si.

A pintura de Vítor Meireles é bem mais enfática do que a prosa chã de Caminha. O pintor eleva a cruz a proporções gigantescas. Do ângulo escolhido, a cruz, subindo ao azul iluminado do céu, domina florestas e homens. Esta versão romântica da missa contradiz o contido equilíbrio renascentista da carta.

A segunda missa foi rezada pelo mesmo Frei Henrique na manhã do dia primeiro de maio, uma sexta-feira, véspera da partida para a Índia, data em que Caminha data e assina a carta. O amigo de D. Manuel torna a exaltar a atitude respeitosa dos índios, destacando-lhes a inocência e facilidade com que poderão ser cristianizados. Mas a atitude distraída com que Caminha acompanha as circunstâncias em que a cerimônia se realiza é a mesma. Sua atenção fica presa a uma Índia que, presenteada com um vestido, não sabe cobrir-se com ele.

Trava-se, na carta, o conflito entre a cultura auditiva medieval e a cultura visual nascente. A visualidade que desponta, base da observação científica, inundará também a arte religiosa.

 

 

8 - Natureza e cultura

 

Embora o termo cultura ainda não exista, invenção do século XVIII que é, a noção de oposição da natureza à cultura e à civilização se esboça como nitidez. Os indígenas (sem governo, sem religião, sem cortesia...) pertencem à natureza. O esforço de impor-lhes hábitos civilizados reitera-se já nos primeiros contatos. Quanto empenho para convencê-los da conveniência de esconderem a nudez! Espera-se que a missa desperte neles sentimentos religiosos. O ruidoso ajuntamento indiático, qualificado de bárbaro, deverá ser emendado por fala ponderada, própria de homens cultivados. Em lugar da manifestação espontânea, a etiqueta.

Ao descrever os índios, Caminha observa que "nhuu~ deles nõ era fanado (circuncidado) mas todos asy coma nós". O "como nós" é expressivo, visto que a circuncisão abria barreiras. Cincuncisos apresentavam-se judeus e árabes, culturas repelidas e combatidas. A ausência de circuncisão nos moradores das terras descobertas franqueava acesso negado a povos com os quais os portugueses conviviam no Europa.

Acontece que a circuncisão não se restringe à incisão feita no membro viril. A Bíblia fala em circuncisão dos ouvidos, dos lábios e do coração. Atento ao corpo dos silvícolas, Caminha, reticente nas informações sobre a natureza, oferece de um botocudo descrição exemplar. Semelhanças e diferenças com os europeus orientam a descrição. Os traços dos descobridores figuram como padrão de perfeição. "Bons" são os rostos e os narizes por não se distanciarem do modelo. A tez escura não merece apreço. Mais do que características naturais, chama atenção a "circuncisão" dos lábios. A diferença naqueles tempos ergue embaraços à comunicação. O osso introduzido no lábio inferior não afasta menos do que os sons que soam bárbaros aos ouvidos dos portugueses. Observa Caminha que o adereço introduzido no lábio não prejudicava o falar, o comer e o beber. Na verdade, falar comer e beber colocam-se na mesma categoria do osso, marcas da cultura com que não se podia conviver. A circuncisão, que deveria ser o lugar de passagem, ponto em que povos se encontram para confraternizar, excluía.

Vendo os índios, os navegadores começam a reconhecer sua própria limitação (castração): comparadas às índias, as européias se envergonhariam de si mesmas, a amizade dos índios é mais sincera que a dos portugueses.

Embora as deficiências se anunciem, os portugueses se têm como nação central. Só quando perdemos a ilusão da centralidade, reconhecemos as marcas que nos colocam ao nível dos outros, diferenciando-nos. Só então nossas circuncisões, reconhecidas e expostas, abrirão sendas que aproximem.

A ciência munira os navegadores de instrumentos para atravessar os mares, mas para vencer barreiras culturais ainda não existiam aparelhos da mesma precisão.

Minucioso na caraterização e no comportamento da estranha gente, Caminha torna-se reticente e incorreto quando anota observações sobre flora e fauna ("ervas compridas, chamadas botelhos pelos mareantes", "rabo-de-asno", "grandes arvoredos", "muitas palmeiras, não muito altas, de muitos bons palmitos", "papagaios" ,"pombas seixas").Iguala-se nisso a Colombo. Entre os motivos da imprecisão está o estágio precário em que se encontra a zoologia e a botânica na virada do século em contraste à ênfase dada ao homem nos ensaios e nas artes. Os pintores do século XV retratam a eminência dos caracteres humanos sobre um fundo em que plantas e animais, quando presentes, comparecem inexpressivos e diminutos. A poesia bucólica, que ambienta conflitos sentimentais e paisagem campestre não se desprende de estereótipos copiados de Virgílio. A épica medieval, ainda lida, precisa ao caraterizar trajes e armas, não se demora na descrição da paisagem.

Na Itália já sopram outros ares. São Francisco de Assis dirige saudações amigas à natureza desdemonizada. Dante vê o brilho trêmulo nos movimentos do mar e ouve o rugir da tempestade na floresta. Petrarca emociona-se ao escalar um monte. A pintura flamenga de Hubert e Jan van Eyck representa, na entrada do XV, paisagens de interesse pictórico autônomo. Mas levará algum tempo para que essas experiências, ainda isoladas e indecisas, se generalizem. Destacando o homem em detrimento da natureza, Caminha se comporta como representante do seu tempo.

A natureza comparece, mas subordinada ao homem. Caminha, que passa em silêncio o comportamento do mar durante a travessia, alude a ele quando Niciolau Coelho procura comunicar-se com os indígenas. Observa que "o grande estrondo das ondas que quebravam na praia" dificultava a inteligibilidade dos sons emitidos pelos índios. O mar é lembrado, não pela beleza do espetáculo, mas como empecilho às intenções de comunicação. Vento e chuva são lembrados quando castigam as naus. À natureza se recorre como índice de informações sobre a presença de terra, de riquezas, de possibilidades de exploração. Para a natureza fora dessa subordinação não há vista.

Os índios resistiram atiladamente à infiltração dos estranhos. E com razão. As conseqüências da espionagem nos conta o triste fim do império asteca, esmagado por um punhado de aventureiros comandados por Cortês. Caminha não diz nada sobre os sentimentos dos degredados. De como não é cômoda a posição de quem se sente rejeitado por culturas antagônicas nos falam Martin Fierro, o poema de Hernandez e o romance de Maíra de Darcy Ribeiro. Indícios desse conflito, que atravessa os séculos, temos no primeiro contato de portugueses com nativos.

Para dois grumetes, recrutados, ao que tudo indica, à força, a floresta oferecia mais atrativos do que os trabalhos na gloriosa frota de Cabral. Fugiram para não mais voltar.

 

9 - Paródias de Caminha

 

Ao fim de uma tradição milenar, em que a memória coletiva dos indígenas se desfazia em som, eles ingressam na literatura escrita sem terem consciência da passagem para avaliar-lhe a importância.

Outro é o comportamento do chefe nhambiquara, visitado no fim da primeira metade do século por Lévi-Strauss. Segundo o depoimento do antropólogo, os nhambiquara, perdidos no fundo da floresta amazônica, diferenciam-se pouco dos índios encontrados por Caminha. Muitos deles viam brancos pela primeira vez. Lévi-Strauss registra o comportamento do chefe que, para fazer-se respeitar pelos seus subordinados, finge anotar numa caderneta os objetos que estavam sendo trocados. Lévi-Strauss deduz daí que a escrita é instrumento de dominação. Derrida, ao discutir as deduções de Lévi-Strauss, observa corretamente que a escrita só serve à dominação quando privilégio de alguns, ao passo que favorece a libertação quando generalizada. Surpreende que a concepção da pureza edênica dos índios acalentada por Caminha ainda afete um investigador atual do porte de Lévi-Strauss. Se os políticos brasileiros fossem sensíveis às conclusões do cientista, as campanhas de alfabetização brasileiras seriam seriamente prejudicadas.

Mário de Andrade elabora uma versão romance ada da escrita exercida para dominar populações analfabetas. Ao estilo de Caminha e de outros descobridores, Macunaíma se põe a escrever às icamiabas (amazonas), súditas ao que pensa, de seu reino imaginário. Dentro das inversões operadas pelo romancista, o mundo descoberto é agora a civilização representada pela cidade de São Paulo. O imperador da "mata virgem", título que o índio se arroga, pasticha o estilo bombástico da cultura que o deslumbra. Macunaíma imita os brancos como o chefe nhambiquara. E sua carta revela o mesmo caráter jocoso de imitação falida. Os muitos erros que comete ao se exprimir numa linguagem que não é a sua denunciam assimilação canhestra duma escrita estranha para se fazer passar por aquilo que ele não é. Mário de Andrade denuncia no ridículo comportamento de Macunaíma uma camada da intelectualidade brasileira que, para se fazer respeitada, continua a reverenciar gramática e dicionário dos antigos dominadores. Afrontando preceitos de pureza lingüística, Mário de Andrade escreve na incorreta linguagem que se ouve nas cidades e no interior brasileiros.

Outro que volta a Caminha é Oswald de
Andrade. Volta para demolir. Examinemos a primeira página de História do Brasil.

 

E asy segujmos nosso caminho per este mar de lomgo ataa terça feira de oitavas de pascoa

 

.............

 

E aa quarta feira segujnte pola manhã topamos aves que

chamã fura buchos e neeste dia e ora de bespera

ouvrmod vjsta de terra

 

..............

PERO VAZ DE CAMINHA

 

a descoberta

 

Seguimos nosso caminho por este mar de longo

Até a oitava da Páscoa

Topamos aves

E houvemos vista da terra

 

os selvagens

 

Mostraram-lhes uma galinha

Quase haviam medo dela

E não queriam pôr a mão

E depois a tomaram como espantados

 

primeiro chá

 

Depois de dançarem

Diogo Dias

Fez o salto real

 

as meninas da gare

 

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis

Com cabelos mui pretos pelas espáduas

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas

Que de nós as muito bem olharmos

Não tínhamos nenhuma vergonha

As passagens visitadas por Oswald são estas:

 

mostraranlhes uma galinha casy aviam medo dela e no lhe

queriam poer a maão e depois aa tomaram coma espantados.

 

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aly amdavam entre eles tres ou quatro moças bem moças

ebem jentijs com cabelos mujto pretos conprjdos pelas

espadoas e suas vergonhas tam altas e tã çaradinhas e

tam limpas das cabeleiras que as nos mujto bem olharmos

nõ tijnhamos nhuuma vergonha.

 

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pasouse emtam aalem do rrio Diego Dijz alxe que foi de

Sacavens que he home~ gracioso e de prazer e levou

comsigo huu~ gayteiro noso cõ sua gaita e meteose cõ

eles a dançar tomandoos pelas maãos e eles folgavam e

rriam e amdavam cõ ele muy bem ao soõ da gaita. despois

de dançarem fezlhe aly amdando no chaão mujtas voltas

ligeiras e salto rreal

 

Recorrendo à montagem, Oswald desarticula a seqüência cronológica observada por Caminha na elaboração da carta. O texto, livre de vínculos rigorosos com o referente, favorece, na rápida justaposição de conjuntos distantes, reflexões que a mera observação dos fatos desencoraja.

A colagem oswaldiana, feita com citações mutiladas agride os preceitos da poesia e da retórica vigentes. Contra o período bem construído, o fragmento ; contra o verso sonoro, a linha sem adorno.

Oswald devora antropofagicamente o Brasil do passado e o apresenta reelaborado; devoração e reelaboração semiótica, intertextual, em que a narrativa histórica se metamorfoseia em achado poético, conduzida pelo acaso como o alegado achamento da Terra de Vera Cruz. O requinte parnasiano vira singeleza, a tristeza cede à alegria, a seriedade importada é banida pela festa.

Oswald alcança a atualização do texto antigo com a inserção dos títulos que encabeçam os trechos destacados

Tendo na lembrança a chave de ouro parnasiana, Oswald inverte a seqüência dos dois episódios finais. A notícia hilariante deverá encerrar o poema. O tom irônico deixa claro, porém, que se trata de crítica, não de homenagem.

O chá não estava nos hábitos dos homens da renascença. Trazido da Índia e espalhado pelos ingleses, alude ao expansionismo britânico. O que Vaz de Caminha narrava como hora de confraternização entre europeus e silvícolas foi, na verdade, artimanha dos dominadores para conquistar a confiança dos incautos. O chá alude à perda da liberdade dos índios aos portugueses e destes aos ingleses. A artimanha da dominação desenvolve-se em cadeia.

Oswald de Andrade expõe na última estrofe a verdade que Caminha procurou jeitosamente esconder, as mulheres brasileiras prostituídas por visitantes licenciosos. O título "As meninas da gare", além de dar um toque erótico ao texto inocente de Caminha, justapõe dois estratos temporais, os séculos XV e XX, a navegação e a estrada de ferro. O que a navegação foi naqueles tempos, a ferrovia é agora: encurtamento das distâncias. O futurismo aplaudia a aceleração da velocidade. Com ela vai-se o estável, em lugar de sólidos vínculos matrimoniais, as ligações rápidas e inconseqüentes de quem passa.

Ao transformar trechos da carta de Caminha em poesia , a data, indispensável à mensagem da carta se apaga. O texto prosaico, transformado em poesia , já não está preso ao tempo rigorosamente marcado. Acompanhando a indecisão do tempo, o espaço torna-se impreciso: praia conota gare, ou qualquer outro lugar de encontros licenciosos, destinatário é o leitor incumbido de completar vazios, de evocar textos antigos e recentes, de completar nexos apenas sugeridos. Com Mário e Oswald, as qualidades literárias da carta de Caminha, no início apontadas se desdobram florescentes.

 

A carta de Pero Vaz de Caminha já foi declarada a certidão de nascimento do Brasil. Embora ingresse tardiamente na memória nacional, esquecida por séculos em arquivos de documentos oficiais, ignorá-la abriria um buraco em nossa consciência histórica. A carta faz o Brasil nascer. Sem a carta, o Brasil não teria sido o que foi. A carta lhe deu personalidade, caráter. Ilumina os poucos quilômetros percorridos, traça os primeiros contornos depois de milênios de vozes que se perderam no silêncio azul das tardes tropicais. O retrato da carta não é o definitivo tampouco se configura como texto invalidado por outros textos . A verdade não está em texto nenhum. O perfil, sempre provisório, se faz e se desfaz no desfilar dos textos . Pode-se dispor os textos cronologicamente, pode-se arranjá-los sincronicamente, ordem alguma os desautoriza. Não se trata de evolução, de formação. Por que solicitar progresso a transições?

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