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			Pero Vaz de Caminha 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
			Senhor: 
                 
                
				Posto que o
                Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros
                capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta
                navegação agora se achou, não deixarei também
                de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor
                que eu puder, ainda que para o bem contar e
                falar, o saiba fazer pior que todos.    
                
				Tome Vossa Alteza,
                porém, minha ignorância por boa vontade, e
                creia bem por certo que, para alindar nem afear,
                não porei aqui mais do que aquilo que vi e me
                pareceu.    
                
				Da marinhagem e
                singraduras do caminho não darei aqui conta a
                Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os
                pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor,
                do que hei de falar começo e digo:    
                
				A partida de
                Belém, como Vossa Alteza sabe, foi
                segunda-feira, 9 de Março. Sábado, 14 do dito
                mês, entre as oito e nove horas, nos achamos
                entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária,
                onde andamos todo aquele dia em calma, à vista
                delas, obra de três a quatro léguas. E domingo,
                22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou
                menos, houvemos vista das Ilhas de Cabo Verde, ou
                melhor, da Ilha de S. Nicolau, segundo o dito
                Pero Escolar, piloto.    
                
				Na noite seguinte,
                segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota
                Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo
                forte nem contrário para que tal acontecesse.
                Fez o Capitão suas diligências para o achar, a
                uma e outra parte, mas não apareceu mais! 
                
                 
                
				E assim seguimos
                nosso caminho, por este mar, de longo, até que,
                terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram
                vinte e um dias de Abril, estando da dita ilha
                obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos
                diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais
                eram muita quantidade de ervas compridas, a que
                os mareantes chamam botelho, assim como outras a
                que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira
                seguinte, pela manhã topamos aves a que chamam
                fura-buxos.    
                
				Neste dia, a horas
                de véspera, houvemos vista de terra!    
                
				Primeiramente dum
                grande monte, mui alto e redondo; e doutras
                serras mais baixas ao sul dele; e de terra chá,
                com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão
                pôs nome - o MONTE PASCOAL e à terra - a TERRA
                DA VERA CRUZ.    
                
				Mandou lançar o
                prumo. Acharam vinte e cinco braças; e, ao sol
                posto, obra de seis léguas da terra, surgimos
                âncoras em dezenove braças - ancoragem limpa.
                Ali permanecemos toda aquela noite. E à
                quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e
                seguimos direitos à terra, indo os navios
                pequenos diante, por dezessete, dezesseis,
                quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças,
                até meia légua da terra, onde todos lançamos
                âncoras em frente à boca de um rio. E
                chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco
                mais ou menos.    
                
				Dali avistamos
                homens que andavam pela praia, obra de sete ou
                oito, segundo disseram os navios pequenos, por
                chegarem primeiro.    
                
				Então lançamos
                fora os batéis e esquifes; e vieram logo todos
                os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor,
                onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em
                terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele
                rio. E tanto que ele começou de ir para lá,
                acudiram pela praia homens, quando aos dois,
                quando aos três, de maneira. que, ao chegar o
                batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou
                vinte homens.    
                
				Eram pardos, todos
                nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas
                vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas
                setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e
                Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os
                arcos. E eles os pousaram.    
                
				Ali não pôde
                deles haver fala, nem entendimento de proveito,
                por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um
                barrete vermelho e uma carapuça de linho que
                levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles
                deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas,
                com uma copazinha pequena de penas vermelhas e
                pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal
                grande de continhas brancas, miúdas, que querem
                parecer de aljaveira, as quais peças creio que o
                Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se
                volveu às naus por ser tarde e não poder haver
                deles mais fala, por causa do mar.    
                
				Na noite seguinte
                ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez
                caçar as naus, e especialmente a capitânia. E
                sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou
                menos, por conselho dos pilotos, mandou o
                Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos
                ao longo da costa, com os batéis e esquifes
                amarrados à popa na direção do Norte, para ver
                se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde
                nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não
                que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos. 
                
                 
                
				Quando fizemos
                vela, estariam já na praia assentados perto do
                rio obra de sessenta ou setenta homens que se
                haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de
                longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos
                que seguissem mais chegados à terra e, se
                achassem pouso seguro para as naus, que
                amainassem.    
                
				E, velejando nós
                pela costa, acharam os ditos navios pequenos,
                obra de dez léguas do sítio donde tínhamos
                levantado ferro, um recife com um porto dentro,
                muito bom e muito seguro, com uma mui larga
                entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus
                arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol
                posto amainaram também, obra de uma légua do
                recife, e ancoraram em onze braças.    
                
				E estando Afonso
                Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios
                pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem
                vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife
                a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles
                homens da terra, mancebos e de bons corpos, que
                estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e
                seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com
                seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram.
                Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em
                cuja nau foram recebidos com muito prazer e
                festa.    
                
				A feição deles
                é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons
                rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem
                cobertura alguma. Não fazem o menor caso de
                encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso
                têm tanta inocência como em mostrar o rosto.
                Ambos traziam os beiços de baixo furados e
                metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros,
                do comprimento duma mão travessa, da grossura de
                um fuso de algodão, agudos na ponta como
                furador. Metem-nos pela parte de dentro do
                beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e
                os dentes é feita como roque de xadrez, ali
                encaixado de tal sorte que não os molesta, nem
                os estorva no falar, no comer ou no beber. 
                
                 
                
				Os cabelos seus
                são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia
                alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e
                rapados até por cima das orelhas. E um deles
                trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para
                detrás, uma espécie de cabeleira de penas de
                ave amarelas, que seria do comprimento de um
                coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
                toutiço e as orelhas. E andava pegada aos
                cabelos, pena e pena, com uma confeição branda
                como cera (mas não o era), de maneira que a
                cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui
                igual, e não fazia míngua mais lavagem para a
                levantar.    
                
				O Capitão, quando
                eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem
                vestido, com um colar de ouro mui grande ao
                pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado.
                Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau
                Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na
                nau com ele vamos, sentados no chão, pela
                alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não
                fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao
                Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs
                olho no colar do Capitão, e começou de acenar
                com a mão para a terra e depois para o colar,
                como que nos dizendo que ali havia ouro. Também
                olhou para um castiçal de prata e assim mesmo
                acenava para a terra e novamente para o castiçal
                como se lá também houvesse prata.    
                
				Mostraram-lhes um
                papagaio pardo que o Capitão traz consigo;
                tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra,
                como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um
                carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma
                galinha; quase tiveram medo dela: não lhe
                queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que
                espantados.    
                
				Deram-lhes ali de
                comer: pão e peixe cozido, confeites, fartéis,
                mel e figos passados. Não quiseram comer quase
                nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a
                lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça;
                mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem
                quiseram mais. Trouxeram-lhes água em unia
                albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca
                que lavaram, e logo a lançaram fora.    
                
				Viu um deles umas
                contas do rosário, brancas; acenou que lhes
                dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao
                pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço
                e acenava para a terra e de novo para as contas e
                para o colar do Capitão, como dizendo que dariam
                ouro por aquilo.    
                
				Isto tomávamos
                nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele
                queria dizer que levaria as contas e mais o
                colar, isto não o queríamos nós entender,
                porque não lho havíamos de dar. E depois tornou
                as contas a quem lhas dera.    
                
				Então
                estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem
                buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as
                quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas
                estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes
                mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e
                o da cabeleira esforçava-se por a não quebrar.
                E lançaram-lhes um manto por cima; e eles
                consentiram, quedaram-se e dormiram.    
                
				Ao sábado pela
                manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos
                demandar a entrada, a qual era mui larga e alta
                de seis a sete braças. Entraram todas as naus
                dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças -
                ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão
                segura que podem abrigar-se nela mais de duzentos
                navios e naus. E tanto que as naus quedaram
                ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau
                do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a
                Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em
                terra e levassem aqueles dois homens e os
                deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois
                que fez dar a cada um sua camisa nova, sua
                carapuça vermelha e um rosário de contas
                brancas de osso, que eles levaram nos braços,
                seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com
                eles, para lá ficar, um mancebo degredado,
                criado de D. João Telo, a que chamam Afonso
                Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu
                viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com
                Nicolau Coelho.    
                
				Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra
                de duzentos homens, todos nus, e com arcos e
                setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos
                acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os
                arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram
                muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os
                que nós levávamos, e o mancebo degredado com
                eles. E saídos não pararam mais; riem esperava
                um pelo outro, mas antes corriam a quem mais
                corria. E passaram um rio que por ali corre, de
                água doce, de muita água que lhes dava pela
                braga; e outros muitos com eles. E foram assim
                correndo, além do rio, entre umas moitas de
                palmas onde estavam outros. Ali pararam.
                Entretanto foi-se o degredado com um homem que,
                logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até
                lá. Mas logo tornaram a nós; e com eles vieram
                os outros que nós leváramos, os quais vinham
                já nus e sem carapuças.    
                
				Então se
                começaram de chegar muitos. Entravam pela beira
                do mar para os batéis, até que mais não
                podiam; traziam cabaços de água, e tomavam
                alguns barris que nós levávamos; enchiam-nos de
                água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de
                todo chegassem à borda do batel. Mas junto a
                ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e
                pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava
                Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns
                dava um cascavel, a outros uma manilha, de
                maneira que com aquele engodo quase nos queriam
                dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por
                sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer
                coisa que homem lhes queria dar.    
                
				Dali se partiram
                os outros dois mancebos, que os não vimos mais. 
                
                 
                
				Muitos deles ou
                quase a maior parte dos que andavam ali traziam
                aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que
                andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos
                buracos uns espelhos de pau, que pareciam
                espelhos de borracha; outros traziam três
                daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos
                cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores,
                a saber, metade deles da sua própria cor, e
                metade de tintura preta, a modos de azulada; e
                outros quartejados de escaques. Ali andavam entre
                eles três ou quatro moças, bem moças e bem
                gentis, com cabelos muito pretos e compridos
                pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas,
                tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras
                que, de as muito bem olharmos, não tínhamos
                nenhuma vergonha.    
                
				Ali por então
                não houve mais fala nem entendimento com eles,
                por a berberia deles ser tamanha que se não
                entendia nem ouvia ninguém.    
                
				Acenamo-lhes que
                se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do
                rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos
                batéis, e encheram não sei quantos barris de
                água que nós levávamos e tornamo-nos às naus.
                Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que
                tornássemos. Tornamos e eles mandaram o
                degredado e não quiseram que ficasse lá com
                eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou
                três carapuças vermelhas para lá as dar ao
                Senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe
                tirar coisa alguma, antes o mandaram com tudo.
                Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez
                tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele
                tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da
                primeira vez o agasalhara. Logo voltou e nós
                trouxemo-lo.    
                
				Esse que o
                agasalhou era já de idade, e andava por
                louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo
                corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião.
                Outros traziam carapuças de penas amarelas;
                outros, de vermelhas; e outros, de verdes. E uma
                daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima
                daquela tintura; e certo era tão bem feita e
                tão redonda, e sua vergonha (que ela não
                tinha), tão graciosa, que a muitas mulheres da
                nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
                vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum
                deles era fanado, mas todos assim como nós. E
                com isto nos tornamos e eles foram-se.    
                
				À tarde saiu o
                Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e
                com os outros capitães das naus em seus batéis
                a folgar pela baía, em frente da praia. Mas
                ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não
                quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente
                saiu - ele com todos nós - em um ilhéu grande,
                que na baía está e que na baixa-mar fica mui
                vazio. Porém é por toda parte cercado de água,
                de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de
                barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós
                outros, bem uma hora e meia. E alguns
                marinheiros, que ali andavam com um chinchorro,
                pescaram peixe miúdo, não muito. Então
                volvemo-nos às naus, já bem de noite. 
                
                 
                
				Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir
                ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a
                todos os capitães que se aprestassem nos batéis
                e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou
                naquele ilhéu armar um esparavel, e dentro dele
                um altar mui bem corregido. E ali com todos nós
                outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo
                padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada
                com aquela mesma voz pelos outros padres e
                sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa,
                segundo meu parecer, foi ouvida por todos com
                muito prazer e devoção.    
                
				Ali era com o
                Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de
                Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte
                do Evangelho.    
                
				Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta;
                e nós todos lançados por essa areia. E pregou
                uma solene e proveitosa pregação da História
                do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa
                vinda e do achamento desta terra, conformando-se
                com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos,
                o que foi muito a propósito e fez muita
                devoção.    
                
				Enquanto estivemos
                à missa e a pregação, seria na praia outra
                tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem,
                com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E
                olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a
                missa, assentados nós à pregação,
                levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou
                buzina e começaram a saltar e a dançar um
                pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -
                duas ou três que aí tinham - as quais não são
                feitas como as que eu já vi; somente são três
                traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro
                ou, cinco, ou esses que queriam, não se
                afastando quase nada da terra, senão enquanto
                podiam tomar pé.    
                
				Acabada a
                pregação, voltou o Capitão, com todos nós,
                para os batéis, com nossa bandeira alta.
                Embarcamos e fomos todos em direção à terra
                para passarmos ao longo por onde eles estavam,
                indo na dianteira, por ordem do Capitão,
                Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e
                nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele. 
                
                 
                
				Como viram o
                esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo
                todos à água, metendo-se nela até onde mais
                podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e
                muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros
                não. Andava aí um que falava muito aos outros
                que se afastassem, mas não que a mim me
                parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este
                que os assim andava afastando trazia seu arco e
                setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos
                peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até
                baixo, mas os vazios com a barriga e estômago
                eram de sua própria cor. E a tintura era assim
                vermelha que a água a não comia nem desfazia,
                antes, quando saía da água, parecia mais
                vermelha.    
                
				Saiu um homem do
                esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles,
                sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal.
                Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos
                do esquife que saíssem em terra.    
                
				Com isto se volveu
                Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às
                naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem
                lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a
                assentar na praia e assim por então ficaram. 
                
                 
                
				Neste ilhéu, onde
                fomos ouvir missa e pregação, a água espraia
                muito, deixando muita areia e muito cascalho a
                descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns
                buscar marisco e apenas acharam alguns camarões
                grossos e curtos, entre os quais vinha um tão
                grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi
                tamanho. Também acharam cascas de berbigões e
                amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça
                inteira.    
                
				E tanto que
                comemos, vieram logo todos os capitães a esta
                nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele
                se apartou, e eu na companhia. E perguntou a
                todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio
                dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e
                saber dela mais do que nós agora podíamos
                saber, por irmos de nossa viagem.    
                
				E entre muitas
                falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a
                maior parte dito que seria muito bem. E nisto
                concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada,
                perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por
                força um par destes homens para os mandar a
                Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois
                destes degredados.    
                
				Sobre isto
                acordaram que não era necessário tomar por
                força homens, porque era geral costume dos que
                assim levavam por força para alguma parte
                dizerem que há ali de tudo quanto lhes
                perguntam; e que melhor e muito melhor
                informação da terra dariam dois homens destes
                degredados que aqui deixassem, do que eles dariam
                se os levassem, por ser gente que ninguém
                entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar
                para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá
                mandar. E que portanto não cuidassem de aqui
                tomar ninguém por força nem de fazer
                escândalo, para de todo mais os amansar e
                apacificar, senão somente deixar aqui os dois
                degredados, quando daqui partíssemos.    
                
				E assim, por
                melhor a todos parecer, ficou determinado. 
                
                 
                
				Acabado isto,
                disse o Capitão que fôssemos nos batéis em
                terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também
                para folgarmos.    
                
				Fomos todos nos
                batéis em terra, armados e a bandeira conosco.
                Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para
                onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo
                ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos,
                e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os
                batéis puseram as proas em terra, passaram-se
                logo todos além do rio, o qual não é mais
                largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos,
                alguns dos nossos passaram logo o rio, e
                meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros
                afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que
                todos andavam misturados. Eles ofereciam desses
                arcos com suas setas por sombreiros e carapuças
                de linho ou por qualquer coisa que lhes davam. 
                
                 
                
				Passaram além
                tantos dos nossos, e andavam assim misturados com
                eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E
                deles alguns iam-se para cima onde outros
                estavam.    
                
				Então o Capitão
                fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o
                rio, e fez tornar a todos.    
                
				A gente que ali
                estava não seria mais que a costumada. E tanto
                que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele
                alguns daqueles, não porque o conhecessem por
                Senhor, pois me parece que não entendem, nem
                tomavam disso conhecimento; mas porque a gente
                nossa passava já para aquém do rio.    
                
				Ali falavam e
                traziam muitos arcos e continhas daquelas já
                ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em
                tal maneira que os nossos trouxeram dali para as
                naus muitos arcos e setas e contas.    
                
				Então tornou-se o
                Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à
                beira dele.    
                
				Ali veríeis
                galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas,
                que, certo, pareciam bem assim.    
                
				Também andavam,
                entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas
                como eles, que não pareciam mal. Entre elas
                andava uma com uma coxa, do joelho até ao
                quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura
                preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra
                trazia ambos os joelhos com as curvas assim
                tintas, e também os colos dos pés; e suas
                vergonhas tão nuas e com tanta inocência
                descobertas, que nisso não havia vergonha
                alguma.    
                
				Também andava aí
                outra mulher moça, com um menino ou menina ao
                colo, atado com um pano (não sei de que), aos
                peitos, de modo que apenas as perninhas lhe
                apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não
                traziam pano algum.    
                
				Depois andou o
                Capitão para cima ao longo do rio, que corre
                sempre chegado à praia. Ali esperou um velho,
                que trazia na mão uma pá de almadia. Falava,
                enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós
                todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a
                nós quantas cousas lhe demandávamos acerca
                d'oiro, que nós desejávamos saber se na terra
                havia.    
                
				Trazia este velho
                o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo
                um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra
                verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O
                Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo
                falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha
                meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um
                pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o.
                E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro
                velho, não por ela valer alguma coisa, mas por
                amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo
                creio, para, com as outras coisas, a mandar a
                Vossa Alteza.    
                
				Andamos por aí
                vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito
                boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui
                altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e
                comemos deles muitos.    
                
				Então tornou-se o
                Capitão para baixo para a boca do rio, onde
                havíamos desembarcado.    
                
				Além do rio,
                andavam muitos deles dançando e folgando, uns
                diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E
                faziam-no bem. Passou-se então além do rio
                Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que
                é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um
                gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles
                a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
                folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao
                som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali,
                andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto
                real, de que eles se espantavam e riam e folgavam
                muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e
                afagou, tomavam logo uma esquiveza como de
                animais monteses, e foram-se para cima. 
                
                 
                
				E então o
                Capitão passou o rio com todos nós outros, e
                fomos pela praia de longo, indo os batéis,
                assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa
                grande de água doce, que está junto com a
                praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos
                lugares.    
                
				E depois de
                passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles
                andar entre os marinheiros que se recolhiam aos
                batéis. E levaram dali um tubarão, que
                Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na
                praia.    
                
				Bastará dizer-vos
                que até aqui, como quer que eles um pouco se
                amansassem, logo duma mão para a outra se
                esquivavam, como pardais do cevadouro. Homem não
                lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem
                mais; e tudo se passa como eles querem, para os
                bem amansar.    
                
				O Capitão ao
                velho, com quem falou, deu uma carapuça
                vermelha. E com toda a fala que entre ambos se
                passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que
                se apartou e começou de passar o rio, foi-se
                logo recatando e não quis mais tornar de lá
                para aquém.    
                
				Os outros dois,
                que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já
                disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro
                ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão
                esquiva. Porém e com tudo isto andam muito bem
                curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda
                mais que são como aves ou alimárias monteses,
                às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo
                que às mansas, porque os corpos seus são tão
                limpos, tão gordos e formosos, que não podem
                mais ser.    
                
				Isto me faz
                presumir que não têm casas nem moradas a que se
                acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem
                nós ainda até agora vimos casa alguma ou
                maneira delas.    
                
				Mandou o Capitão
                àquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse
                outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom
                pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram
                eles vir e não o quiseram lá consentir. E derarn-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram
                nenhuma cousa do seu. Antes - disse ele - que um
                lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e
                fugia com elas, e ele se queixou e os outros
                foram logo aos, e lhas tomaram e tornaram-lhas a
                dar; e então mandaram-no vir. Disse que não
                vira lá entre eles senão umas choupaninhas de
                rama verde e de fetos muito grandes, como de
                Entre Doiro e Minho.    
                
				E assim nos
                tomamos às naus, já quase noite, a dormir. 
                
                 
                
				À segunda-feira,
                depois de comer, saímos todos em terra a tomar
                água. Ali vieram então muitos, mas não tantos
                como as outras vezes. já muito poucos traziam
                arcos. Estiveram assim um pouco afastados de
                nós; e depois pouco a pouco misturaram-se
                conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns
                deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos
                por folhas de papel e por alguma carapucinha
                velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto
                se passou que bem vinte ou trinta pessoas das
                nossas se foram com eles, onde outros muitos
                estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá
                muitos arcos e barretes de penas de aves, deles
                verdes e deles amarelos, dos quais, segundo
                creio, o Capitão há-de mandar amostra a Vossa
                Alteza.    
                
				E, segundo diziam
                esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia
                os vimos mais de perto e mais à nossa vontade,
                por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns
                andavam daquelas tinturas quartejados; outros de
                metades; outros de tanta feição, como em panos
                de armar, e todos com os beiços furados, e
                muitos com os ossos neles, e outros sem ossos. 
                
                 
                
				Alguns traziam uns
                ouriços verdes, de árvores, que, na cor,
                queriam parecer de castanheiras, embora mais
                pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos
                pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam
                tintura muito vermelha, de que eles andavam
                tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais
                vermelhos ficavam.    
                
				Todos andam
                rapados até cima das orelhas; e assim as
                sobrancelhas e pestanas.    
                
				Trazem todos as
                testas, de fonte a fonte, tintas de tintura
                preta, que parece uma fita preta, da largura de
                dois dedos.    
                
				E o Capitão
                mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a
                outros dois degredados que fossem lá andar entre
                eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo,
                com que eles folgavam. Aos degredados mandou que
                ficassem lá esta noite.    
                
				Foram-se lá
                todos, e andaram entre eles. E, segundo eles
                diziam, foram bem uma légua e meia a uma
                povoação, em que haveria nove ou dez casas, as
                quais eram tão compridas, cada uma, como esta
                nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas
                de tábuas, e cobertas de palha, de razoada
                altura; todas duma só peça, sem nenhum
                repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de
                esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos,
                alta, em que dormiam. Debaixo, para se
                aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa
                duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no
                outro.    
                
				Diziam que em cada
                casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e
                que assim os achavam; e que lhes davam de comer
                daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito
                inhame e outras sementes, que na terra há e eles
                comem. Mas, quando se fez tarde, fizeram-nos logo
                tornar a todos e não quiseram que lá ficasse
                nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com
                eles.    
                
				Resgataram lá por
                cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor,
                que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e
                formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças
                de penas verdes, e um pano de penas de muitas
                cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo
                Vossa Alteza todas estas cousas verá, porque o
                Capitão vô-las há-de mandar, segundo ele
                disse.    
                
				E como isto
                vieram; e nós tornamo-nos às naus.    
                
				À terça-feira,
                depois de comer, fomos em terra dar guarda de
                lenha e lavar roupa.    
                
				Estavam na praia,
                quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem
                arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo
                para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram
                muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos;
                e misturaram-se todos tanto conosco que alguns
                nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos
                batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito
                prazer.    
                
				Enquanto
                cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma
                grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se
                cortou.    
                
				Muitos deles
                vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que
                o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com
                que a faziam, do que por verem a Cruz, porque
                eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam
                sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas,
                metidas em um pau entre duas talas, mui bem
                atadas e por tal maneira que andam fortes,
                segundo diziam os homens, que ontem a suas casas
                foram, porque lhas viram lá.    
                
				Era já a
                conversação deles conosco tanta que quase nos
                estorvavam no que havíamos de fazer.    
                
				O Capitão mandou
                a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá
                à aldeia (e a outras, se houvesse novas delas),
                e que, em toda a maneira, não viessem dormir às
                naus, ainda que eles os mandassem. E assim se
                foram.    
                
				Enquanto
                andávamos nessa mata a cortar lenha,
                atravessavam alguns papagaios por essas árvores,
                deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos,
                de maneira que me parece haverá muitos nesta
                terra. Porém eu não veria mais que até nove ou
                dez. Outras aves então não vimos, somente
                algumas pombas seixas, e pareceram-me bastante
                maiores que as de Portugal. Alguns diziam que
                viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os
                arvoredos são mui muitos e grandes, e de
                infindas maneiras, não duvido que por esse
                sertão haja muitas aves!    
                
				Cerca da noite nos
                volvemos para as naus com nossa lenha.    
                
				Eu creio, Senhor,
                que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da
                feição de seus arcos e setas. Os arcos são
                pretos e compridos, as setas também compridas e
                os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa
                Alteza verá por alguns que - eu creio - o
                Capitão a Ela há-de enviar.    
                
				À quarta-feira
                não fomos em terra, porque o Capitão andou todo
                o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e
                fazer levar às naus isso que cada uma podia
                levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo
                das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que
                lá foi, seriam obra de trezentos.    
                
				Diogo Dias e
                Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão
                ontem mandou que em toda maneira lá dormissem,
                volveram-se já de noite, por eles não quererem
                que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e
                outras aves pretas, quase como pegas, a não ser
                que tinham o bico branco e os rabos curtos. 
                
                 
                
				Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele
                alguns, mas ele não quis senão dois mancebos
                dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite
                mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda
                que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de
                lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram
                aquela noite.    
                
				E assim não houve
                mais este dia que para escrever seja.    
                
				À quinta-feira,
                derradeiro de Abril, comemos logo, quase pela
                manhã, e fomos em terra por mais lenha e água.
                E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou
                Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por
                ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas,
                trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes,
                sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que
                lhes deram comeram mui bem, especialmente ladão
                cozido, frio, e arroz.    
                
				Não lhes deram
                vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não
                bebiam bem.    
                
				Acabado o comer,
                metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um
                grumete a um deles uma armadura grande de porco
                montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a
                logo no beiço, e, porque se lhe não queria
                segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E
                ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar
                segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para
                cima. E vinha tão contente com ela, como se
                tivera uma grande jóia. E tanto que saímos em
                terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais
                aí.    
                
				Andariam na praia,
                quando saímos, oito ou dez deles; e de aí pouco
                começaram a vir mais. E parece-me que viriam,
                este da, à praia, quatrocentos ou quatrocentos e
                cinqüenta.    
                
				Traziam alguns
                deles arcos e setas, que todos trocaram por
                carapuças ou por qualquer cousa que lhes davam.
                Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam
                alguns deles vinho; outros o não podiam beber.
                Mas parece-me que se lho avezarem o beberão de
                boa vontade.    
                
				Andavam todos tão
                dispostos, tão bem feitos e garantes com suas
                tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa
                lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e
                levavam-na aos batéis.    
                
				Andavam já mais
                mansos e seguros entre nós, do que nós
                andávamos entre eles.    
                
				Foi o Capitão com
                alguns de nós um pedaço por este arvoredo até
                uma ribeira grande e de muita água, que a nosso
                parecer era esta mesma, que vem ter à praia, e
                em que nós tomamos água.    
                
				Ali ficamos um
                pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre
                esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto
                e de tantas prumagens, que homem as não pode
                contar. Há entre ele muitas palmas, de que
                colhemos muitos e bons palmitos.    
                
				Quando saímos do
                batel, disse o Capitão que seria bom irmos
                direitos à Cruz, que estava encostada a uma
                árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã,
                que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos
                em joelhos e a beijássemos para eles verem o
                acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A
                esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhes
                que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la. 
                
                 
                
				Parece-me gente de
                tal inocência que, se homem os entendesse e eles
                a nós, seriam logo cristãos, porque eles,
                segundo parece, não têm, nem entendem em
                nenhuma crença.    
                
				E portanto, se os
                degredados que aqui hão-de ficar aprenderem bem
                a sua fala e os entenderem, não duvido que eles,
                segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se
                hão-de fazer cristãos e crer em nossa santa
                fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga,
                porque, certo, esta gente é boa e de boa
                simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles
                qualquer cunho que lhes quiserem dar. E pois
                Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons
                rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe,
                creio que não foi sem causa.    
                
				Portanto Vossa
                Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé
                católica, deve cuidar da sua salvação. E
                prazerá a Deus que com pouco trabalho seja
                assim.    
                
				Eles não lavram,
                nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem
                cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer
                outra alimária, que costumada seja ao viver dos
                homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui
                há muito, e dessa semente e frutos, que a terra
                e as árvores de si lançam. E com isto andam
                tais e tão rijos e tão nédios que o não somos
                nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. 
                
                 
                
				Neste dia,
                enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre
                com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em
                maneira que são muito mais nossos amigos que
                nós seus.    
                
				Se lhes homem
                acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo
                prestes para isso, em tal maneira que se a gente
                todos quisera convidar, todos viriam. Porém não
                trouxemos esta noite às naus senão quatro ou
                cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; Simão de
                Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires
                Gomes, outro, também por pajem.    
                
				Um dos que o
                Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe
                trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos,
                o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e
                com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem
                agasalhados, assim de vianda, como de cama, de
                colchões e lençóis, para os mais amansar. 
                
                 
                
				E hoje, que é
                sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã,
                saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos
                desembarcar acima do rio contra o Sul, onde nos
                pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para
                melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o
                lugar, onde fizessem a cova para a chantar. 
                
                 
                
				Enquanto a ficaram
                fazendo, ele com todos nós outros fomos pela
                Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a
                trouxemos com esses religiosos e sacerdotes
                diante cantando, em maneira de procissão. 
                
                 
                
				Eram já aí
                alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e,
                quando nos viram assim vir, alguns se foram meter
                debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao
                longo da praia, e fomo-la por onde havia de
                ficar, que será do rio obra de dois tiros de
                besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e
                cinqüenta ou mais.    
                
				Chantada a Cruz,
                com as Armas e a divisa de Vossa Alteza, que
                primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé
                dela. Ali disse missa o padre Frei Henrique, a
                qual foi cantada e oficiada por esses já ditos.
                Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou
                sessenta deles, assentados todos de joelhos,
                assim como nós.    
                
				E quando veio ao
                Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as
                mãos levantadas, eles se levantaram conosco e
                alçaram as mãos ficando assim, até ser
                acabado; e então tornaram-se a assentar como
                nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos
                de joelhos, eles se puseram assim todos, como
                nós estávamos, com as mãos levantadas, e em
                tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa
                Alteza, nos fez muita devoção.    
                
				Estiveram assim
                conosco até acabada a comunhão, depois da qual
                comungaram esses religiosos e sacerdotes e o
                Capitão com alguns de nós outros.    
                
				Alguns deles, por
                o sol ser grande, quando estávamos comungando,
                levantaram-se e outros estiveram e ficaram. Um
                deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco
                anos, continuou ali com aqueles que ficaram.
                Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali
                ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim
                entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o
                altar e depois apontou o dedo para o céu, como
                se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós
                assim o tomamos.    
                
				Acabada a missa,
                tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em
                alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma
                cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos
                Apóstolos, cujo é o dia, tratando, ao fim da
                pregação, deste vosso prosseguimento tão santo
                e virtuoso, o que nos aumentou a devoção. 
                
                 
                
				Esses, que
                estiveram sempre à pregação, quedaram-se como
                nós olhando para ele. E aquele, que digo,
                chamava alguns que viessem para ali. Alguns
                vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação,
                como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de
                estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da
                outra vinda, houveram por bem que se lançasse
                uma ao pescoço de cada um. Pelo que o padre Frei
                Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um
                por um, lançava a sua atada em um fio ao
                pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar
                as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas
                todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. 
                
                 
                
				Isto acabado - era
                já bem uma hora depois do meio-dia - viemos a
                comer às naus, trazendo o Capitão consigo
                aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança
                para o altar e para o céu e um seu irmão com
                ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa
                mourisca e ao outro uma camisa destoutras. 
                
                 
                
				E, segundo que a
                mim, e a todos pareceu, esta gente não lhes
                falece outra coisa para ser toda cristã, senão
                entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos
                viam fazer, como nós mesmos, por onde nos
                pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem
                adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza
                aqui mandar quem entre eles mais devagar ande,
                que todos serão tornados ao desejo de Vossa
                Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe
                logo de vir clérigo para os batizar, porque já
                então terão mais conhecimento de nossa fé,
                pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam,
                os quais hoje também   
                comungaram ambos.    
                
				Entre todos estes
                que hoje vieram, não veio mais que uma mulher
                moça, a qual esteve sempre à missa e a quem
                deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a
                redor de si. Porém, ao assentar, não fazia
                grande memória de o estender bem, para se
                cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente
                é tal, que a de Adão não seria maior, quanto
                à vergonha.    
                
				Ora veja Vossa
                Alteza se quem em tal inocência vive se
                converterá ou não, ensinando-lhes o que
                pertence à sua salvação.    
                
				Acabado isto,
                fomos assim perante eles beijar a Cruz,
                despedimo-nos e viemos comer.    
                
				Creio, Senhor, que
                com estes dois degredados ficam mais dois
                grumetes, que esta noite se saíram desta nau no
                esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E
                cremos que ficarão aqui, porque de manhã,
                prazendo a Deus, fazemos daqui partida. 
                
                 
                
				Esta terra,
                Senhor, me parece que da ponta que mais contra o
                Sul vimos até outra ponta que contra o Norte
                vem, de que nós deste porto houvemos vista,
                será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte
                cinco léguas por conta. Tem, ao longo do mar,
                nalgumas partes, grandes barreiras, delas
                vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda
                chá e muito cheia de grandes arvoredos, de ponta
                a ponta, é tudo praia palma, muito chá e muito
                formosa.    
                
				Pelo sertão nos
                pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a
                estender olhos, não podíamos ver senão terra
                com arvoredos, que nos parecia muito longa. 
                
                 
                
				Nela, até agora,
                não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem
                coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos.
                Porém a terra em si é muito bons ares, assim
                frios e temperados, como os de Entre Doiro e
                Minho, porque neste tempo de agora os achávamos
                como os de lá.    
                
				Águas são
                muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa
                que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo,
                por bem das águas que tem.    
                
				Porém o melhor
                fruto que dela se pode tirar me parece que será
                salvar esta gente. E esta deve ser a principal
                semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. 
                
                 
                
				E que aí não
                houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta
                navegação de Calecute, isso bastaria. Quanto
                mais disposição para se nela cumprir e fazer o
                que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
                acrescentamento da nossa santa fé.    
                
				E nesta maneira,
                Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que
                nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei,
                Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo
                vos dizer, mo fez por assim pelo miúdo. 
                
                 
                
				E pois que,
                Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer cousa que de vosso
                serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim
                muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer
                graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé
                a Jorge de Osório, meu genro - o que d'Ela
                receberei em muita mercê.    
                
				Beijo as mãos de
                Vossa Alteza.    
                
				Deste Porto
                Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje,
                sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500. 
                 
                    
                
				                                                     
				Pero Vaz de Caminha  
                
             
                                                     |