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			Zemaria Pinto 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
			
			Thiago de Mello, de uma vez por 
			todas, agora 
			 
  
			
			Na majestade de seus setenta anos, o 
			poeta ensaia despedir-se: "alguém dirá: que pena, já se cala / o 
			poeta cujo verso me deu voz / à tímida ternura e asas ao sonho. / 
			Outros dirão que me despeço tarde." Pois "De Uma Vez Por Todas" é 
			mais que uma despedida - é um inventário da vida e da obra deste que 
			é não apenas o maior poeta do Amazonas, mas também o mais produtivo: 
			Thiago não se contentou em deitar na fama que lhe conferiram os 
			primeiros livros, que já o colocavam, pela repercussão, entre os 
			mais importantes poetas brasileiros da segunda metade deste século, 
			incensado que fora pelos mais importantes críticos da época. Álvaro 
			Lins, Tristão de Athayde, Sérgio Milliet, M. Cavalcanti Proença, 
			José Lins do Rego, Otto Maria Carpeaux e Manuel Bandeira, entre 
			outros, jamais pouparam elogios ao jovem poeta. Thiago, entretanto, 
			optou por ir mais além, mudando o rumo de sua poesia, desafiando a 
			crítica e mantendo uma coerência inatacável, para concluir, agora: 
			"lúcido escrevo, de uma vez por todas, / que confio no amor e na 
			utopia." À critica esquizóide ele reserva fina ironia: "mas dito 
			seja, de uma vez por todas, / que nada faço por literatura, / que 
			nada tenho a ver com a história, / mesmo concisa, das letras 
			brasileiras." Tem, sim.  
			
			"De Uma Vez Por Todas" é um livro 
			uniformemente desigual, e é aí que reside o charme de seu caráter de 
			inventário. Há um fio condutor, tênue, em tom de despedida, mas o 
			poeta não parece preocupado com a possibilidade de uma crítica 
			negativa em função disso. Pelo contrário, nas 9 partes em que se 
			divide o livro, Thiago dá-se por inteiro a essa entidade 
			desconhecida que é o leitor. Mistura poesia e prosa, e, no mais das 
			vezes, esta é poética, o que nos dá grandes esperanças quanto ao 
			futuro: o poeta confidenciou-me que não pretende parar de escrever, 
			mas o fará em prosa, dando continuidade aos estudos sobre a 
			Amazônia, desfiados em "Amazonas, Pátria da Água" e em "Amazônia, a 
			Menina dos Olhos do Mundo".  
			
			"De Uma Vez Por Todas" não tem o vezo 
			lamuriento de um canto do cisne. Antes, é uma prestação de contas - 
			prematura - do poeta com seu leitor, "cada um dos meus leitores 
			brasileiros a quem não conheço, mas de cuja vida sei que participo", 
			como ele mesmo diz em sua dedicatória. Consciente do dever cumprido, 
			o poeta se recolhe ao silêncio da floresta, no aconchego dos braços 
			da mulher amada, para criar novos ritmos, novas florações de 
			palavras. Pois está dito, nesse testemunho-testamento, que "da 
			poesia não poderei, jamais, / me separar: ela nasceu comigo (...) / 
			sou simplesmente um cantor (...) / sou poeta, só sei cantar (...) / 
			só cantando me sou todo (...) / fiz cantando a minha parte (...) / 
			faço poemas como quem faz amor (...) outra coisa não tenho além do 
			canto (...) / este poema sou eu (...) / o livro inteiro sou eu, é a 
			minha vida / dentro das palavras." A poesia e o poeta não se 
			dissociam: fazem parte da humana paisagem, como o bando de garças e 
			os gaviões ou o rio com sua fúria tranqüila e os seres que o 
			habitam.  
			
			"A Metáfora Nua", primeira parte do 
			livro, revela o poeta na plenitude de seu fazer. As palavras 
			iniciais, no poema "O livro", são reveladoras do que o leitor pode 
			encontrar na viagem: "este livro, de um homem e sua vida, / que nada 
			traz de novo, além do amor, / me despede da mágica aventura / de dar 
			sonho sonoro à humana argila / e transformar estrelas em palavras: / 
			mistura de alegria e de agonia." Thiago de Mello tece poemas com a 
			calma e a serenidade de quem não precisa, e não quer, promover 
			revoluções. À "arte revolucionária", que aponta caminhos às 
			contradições da própria arte, ele contrapõe a "arte revoltada", que 
			trabalha com as contradições do presente cotidiano. Em "A difícil 
			transparência", ele fornece pistas de como vê seu trabalho: "meu 
			poema está construído / com a matéria verbal dos homens / para os 
			quais escrevo. / Arrumo por música o verso / ao qual dou minha 
			cadência / quando preciso dizer / o que em mim lateja límpido / no 
			pensar e no sentir." Despojado, o poeta constrói imagens e canções 
			como um obreiro da palavra, "trabalho que nem um mouro, / estou 
			sempre começando", e sorri das vanguardas que o põem à margem: "nada 
			criei de novo. / Nada acrescentei às formas / tradicionais do verso. 
			/ Quem sou eu para criar coisas novas, / pôr no verso, Deus me 
			livre, uma / invenção." ("Canto do meu canto")  
			
			"Memorial das Águas" cuida da 
			recuperação da memória pela poesia. São lembranças, fragmentos, que 
			fluem trazendo os amigos anônimos, a gente do povo, em meio aos 
			notáveis com quem o poeta conviveu: Bandeira, Rosa, Drummond, 
			Villa-Lobos, Zé Lins, Portinari, Vallejo, Miró, Neruda e tantos 
			outros. Nesse contexto, "Cidadania" parece deslocado. Mas o poema 
			"Vi", que encerra esse bloco, dá bem a dimensão do pretendido, 
			quando o poeta sussurra ao leitor: "e vi quando os olhos da Pálida, 
			num / hospital de Buenos Aires, / já muito próximos, começaram a 
			recuar, / com medo do diamante, do diamante / que brilhava, brilhava 
			em meu olhar."  
			
			"Barro Enamorado" traz poemas de 
			temática amorosa, como o belo "Sugestão", onde o homem vivido 
			aconselha a jovem amante enciumada: "alguma sombra azul do que 
			passou / vive no amor que nos abraça agora." "Diário de Um 
			Brasileiro", a quarta parte do livro, traz o velho Thiago de Mello, 
			cultor dessa arte revoltada, indignado com as injustiças e com a 
			pouca vergonha que ele testemunha e denuncia: "tenho vergonha, / 
			morro de vergonha, morro também de / raiva, / deste país que é o 
			meu, / e no meio de cujo povo miserável / consigo caminhar 
			cantando." O tom, às vezes panfletário, faz com que algum candidato 
			a poeta pense o quanto é fácil fazer poesia. Mas ao Thiago pode-se, 
			e deve-se, fazer concessões, afinal, de uma vez por todas, ele crê 
			na utopia. E quem escreveu "Os Estatutos do Homem" não deve 
			satisfações a ninguém.  
			
			"Os Bens que Perduram" trata da arte 
			da amizade e constitui-se numa extensão de "Memorial das Águas ", na 
			medida em que retoma a busca pelos desvãos da memória: "a amizade é 
			assim: quando ela atinge / o poder silencioso das estrelas, / 
			prescinde de convívio, elide o tempo, / é diamante sereno na 
			memória." Em "Os Encantados do Verde", o poeta enfeixa quatro poemas 
			sobre temas regionais. Um deles, "A caranguejeira feliz", mereceu de 
			Carlos Heitor Cony, na orelha do livro, um comentário apaixonado - 
			"um dos melhores poemas de nossa língua": "ferrões afáveis, pernas 
			distendidas, / indiferente à claridão, a aranha / amazônica dorme, e 
			talvez sonhe / com quem feliz a fez antes da aurora."  
			
			"Travessia", a sétima parte do livro, 
			é densa e sombria sem ser triste. A morte, um dos temas recorrentes 
			dos primeiros livros, quando o intimismo era a tônica de sua 
			expressão, retorna com toda sua dignidade e grandeza. O poeta não se 
			furta em preparar-se para o encontro inevitável e o faz como quem a 
			vida inteira soube disso. Não sofre. Antes, dá lições: "deixo o que 
			já não é meu: / o amor, os filhos, os poemas, / que, de mudança em 
			mudança, / deixarão de ser um dia / flores e estrelas, que são." Há 
			um fino humor bandeiriano, que não se furta a relembrar o próprio: 
			"se a Indesejável das Gentes / chegasse agora, não encontraria / a 
			casa limpa, como a de Bandeira. / Minha casa ainda carece / de uma 
			boa varredura".  
			
			"Poesia Gosta de Prosa, Quando Ela 
			Sabe Cantar" reúne quatro textos em prosa. Outros há nas outras 
			partes também. O poeta se exercita. "Arco-íris", que fecha o volume, 
			traz os convidados "para a festa de despedida". São poetas mui 
			amados que o poeta Thiago recita em "voz alta, caminhando pela 
			floresta": Dante, Camões, Pessoa, Bandeira, Drummond, Gullar, 
			Vallejo, Lorca, Neruda, Borges, Cecília, Astrid, Elson, Tufic, 
			Anibal...  
			Imenso, em sua ternura vestida de branco, o poeta passeia por entre 
			a bruma da memória. E não tropeça, e não vacila, porque esse é o 
			caminho que ele trilha, com seu andar cambaio de caboclo suburucu, 
			desde sempre.  
			 
			 
			Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e 
			Fragmentos de Silêncio. 
			 
			  
			
			  
			
         
         
           
			
			Leia Thiago de Mello 
			
			  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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