O poeta e ficcionista Dimas Carvalho, nascido, crescido e vivido no Acaraú, lança mais um livro – Fábulas
diversas, ou melhor, perversas. Um escritor que, na verdade, sabe
apreender as coisas invisíveis e materializá-las em palavras,
dentro das leis criativas e fora dos esquemas da lógica – e que
pratica largamente o que podemos chamar de humor adstringente,
restrito, antes rangente que negro, e que se situa a meio caminho
entre o humano e o desumano.
Vamos
entrar no túnel do tempo e visitar – Strawberry Hill, em 1750:
Uma construção gótica, bizarra e anacrônica, surge ao nosso
olhar surpreso e espantado. Quem é, pois, o ocupante deste estranho
edifício? Um louco? Não – um homem de letras, rico e ocioso.
Trata-se de Sir Horace Walpole, Conde de Oxford, que transformou sua
vila num castelo feudal. Deve-se precisamente a um desses seus típicos
sonhos o romance O Castelo de Otranto (1767), que povoará de
pesadelos, de fantasmas e de pobres heroínas, a literatura popular
e os filmes de horror da nossa era. Mas devem-se-lhe também páginas
notabilíssimas, autênticas obras-primas em que o absurdo e o
irracional, aprisionam e esmagam de terrores sombrios a nossa precária
condição humana.
Mas
o romance do “castelo” tem vida breve. Nasce com Walpole e morre
com Clara Reeve. Só que o grão semeado pelo estravagante Walpole não
tem tempo de estiolar. Ann Redcliffe, Gregory Lewis e o reverendo
Maturin transplantam-no para um terreno muito mais fértil, onde
produzirá flores duradouras – as do romance terrífico, ou,
melhor,
do “romance negro”.
No
entanto, o monstro mais famoso da literatura, ainda hoje muito
popular, é, indubitavelmente, o Frankenstein, de Mary Godwin,
segunda mulher do poeta Shelley, amiga de Byron e Milton.
Frankenstein foi publicado em 1818, obtendo imediatamente rumoroso
sucesso junto do público e da crítica.
Marquês
de Sade (1740-1814), autor de Justina e dos Cento e vinte dias de
Sodoma e Gomorra, usa os instrumentos do romance negro, vivificados
pelo racionalismo anti-religioso do século XVIII, levado às suas
extremas conseqüências, e entra definitivamente na cultura
moderna, concorrendo para formar o clima espiritual de que nascerão
o surrealismo e a
literatura de hoje.
O
primeiro homem de letras americano a fazer da literatura uma profissão
é justamente Brockden Brown, importador do medievalesco através
das obras de Ann Redcliffe, sendo ele, sem dúvida, o verdadeiro
precursor direto de Edgar Poe, autor das “Histórias extraordinárias”,
reconhecido hoje mundialmente, depois de ter se tornado pó do pó.
Vivendo
em países distantes, provenientes de culturas diversas, o irlandês
James Joice (1882-1941) e o tcheco Franz Kafka (1883-1924),
apresentam, todavia, vários pontos em comum. Ambos despontam como
ficcionistas durante a Primeira Guerra Mundial: Joice em 1914, com
“Dublinenses”; Kafka em 1916, com a “Sentença”. Ambos
abordam o tema do absurdo da condição humana, que desenvolveram ao
longo de toda a sua carreira: Kafka criando parábolas sobre
acontecimentos fantásticos no cotidiano de pessoas comuns; Joice
retratando o mundo interior numa linguagem elaborada e rica, na qual
se mesclam neologismos, expressões eruditas e palavrões. Ambos,
enfim, revolucionaram o estilo narrativo, exercendo profunda influência
sobre os ficcionistas que os sucederam.
A
história da literatura tem mostrado que todo período literário
tem suas características próprias, expressas por um conjunto de
escritores que refletem em suas obras a concepção de literatura e
a visão de mundo da época e da sociedade em que vivem.
Os
“pós-modernos” estenderam a busca modernista às
potencialidades da consciência humana e à distinção entre o
indivíduo e o mundo objetivo por meio de uma subversão deliberada
das convenções da ficção. Isso fez surgir uma vasta gama de técnicas,
abrindo a ficção para a fantasia, a alegoria surrealista e o
realismo fantástico.
Aqui
no Brasil temos também ficcionistas que se aproximam desse quase
“humor negro” – entre eles podemos destacar Moacyr Scliar e
Dimas Carvalho – contistas que procuram apresentar os seus
personagens em momentos de crise, como seres cuja essência implica
a própria existência problemática. Os personagens revelam-se
singulares pelo seu comportamento, num cotidiano de situações em
que se misturam o real e o fantástico.
Desde
sua estréia na ficção com “Itinerário do reino da
barra”(1993), Dimas Carvalho estabiliza algumas características
em seus contos. Uma delas é a preferência por personagens carentes
de identificação – a maioria com nomes – mas, às vezes, sem
traços que os individualize, assim eles representam tipos genéricos,
modelos de ação e comportamento, em vez de personalidades, cuja
intimidade e psicologia são vasculhadas pela pena do autor.
Entretanto,
em toda sua obra, ele não divide as pessoas em boas e más. Há
subdivisões no sistema, é claro, mas os reinos em que se
dicotomiza não são esses. O fantástico é a grande qualidade ao
longo de todos os seus contos, os personagens fictícios ou reais,
as coisas, as paisagens, as idéias. É que ele tem sede jamais
saciada de ternura humana, de comunicação. Daí essa fixação
para certo inconsciente, na poesia das coisas e das pessoas,
contraste à aspereza e a violência do mundo que o machuca,
resposta sempre buscada à própria solidão.
Vamos
conhecer um pouco seus personagens: Em Os gêmeos, p. 10 – Ageu e
Agesilau; Anaxágoras e Anaxímenes; Araquém e Araribóia; Zózimo
e Zuínglio; Zaratustra e Zoroastro, para terminar com Tomás ou
Tomiah. Em O manuscrito, p. 17 – Epaminondas Pitágoras da Cunha e
Eleutério. Em Odisséia de Bernardo Tracajá, p. 25 – Bernardo e
Teógenes, o sobrinho. Em Branca de Neve e os sete gigantes, p. 64
– Alquitofel, Adamastor, Judicael e outros. Em Tango em Itapemba,
p. 77 – D. Afonso, Lindaura, João Guilherme. Em Zé Tatu, p. 79
– velho Adonias, Severino, dona Zefinha. Em Quarentena, p. 85 –
José da Silva (Zé-povinho), encontrado em todas as veredas, becos
e ruas, em todas as páginas de todos os livros.
Outra
característica do autor é sua preferência pelo insólito, quando
narra, vez por outra, acontecimentos impossíveis – fatos, no mínimo,
inusitados, mistura de normalidade e fantasia; do real e
sobrenatural, maneira típica do realismo fantástico, num estilo de
narrativa característico do pós-moderno.
Nascido
a 28 de janeiro de 1964; aos doze anos começou a escrever poemas e
contos, tendo publicado alguns no jornalzinho “Jovens que se
comunicam”, mimeografado pelo Grêmio Cultural Irmã Consolação,
de Acaraú, publicando também no “Semeador”, órgão da
Pastoral da Juventude de Sobral, editado nas oficinas do Correio da
semana. Em 1978 escreveu o conto “As minas de ferro”, um
trabalho de classe, dirigido pelo professor de português
Mons. José Edson Magalhães.
Licenciado
em letras e com mestrado em literatura brasileira, pela Universidade
Federal do Ceará, é professor de teoria da literatura, na
Universidade Estadual Vale do Acaraú, UVA, em Sobral. Publicou os
seguintes livros: “Poemas”, 1988; “Frauta ruda agreste
avena”, 1993; “Itinerário do Reino da Barra”, 1993;
“Nicodemos Araújo, poeta e historiador” (em parceria) 1995;
“Mínimo plural”, 1998; “Histórias de zoologia humana”,
2000; “Fábulas perversas”, 2003, “Marquipélago”, 2004.
Dimas
Carvalho, nascido, crescido e vivido em berço de tantos
intelectuais ilustres, traz mais uma vez a marca de sua vocação
autêntica de ficcionista, no livro que ora apresentamos ao público,
e que ele intitulou Fábulas perversas. São histórias freqüentemente
fantásticas que deixam sempre o saldo crítico – em nível satírico
– da dolorida condição humana.