Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Sidney Andrade

sidneyandrade23@hotmail.com

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Poesia:

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Ruth, by Francesco Hayez

 

Maria Azenha

 

 

 

 

 

 

 

 

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Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

  

 

 
 

Sidney Andrade
 


 

Considerações sobre mim e todo o respeito

 

Eu preferiria que não lessem estas palavras. Elas vêm do fundo do meu mais vazio escuro. Escrevo-as porque não há outro recurso, não escrevê-las seria morrer definitivamente da morte que me acomete um tanto mais a cada martelar de tecla nesta tábua. Não escrever o que me mata seria desistir de viver, porque não há remédio: respirar é uma agressão necessária, queimar umas células pra que outras sobrevivam. Escrevo porque preciso me livrar desse gás venenoso oculto no oco dos meus dedos. Escrevo porque preciso de uma morte natural, não escrever seria um suicídio. Queria não ter que responder por estas palavras. Peço que me isentem da responsabilidade sobre meu sopro. Se me lêem, façam por vontade e decisão. Não posso suportar hoje o peso de um leitor embalado, contagiado, curioso com o que vem adiante. Os curiosos parem por aqui. Escrevo porque preciso pôr pra fora, esta folha é apenas um depósito provisório. Quem não se proponha a limpar os dejetos de desconhecidos, pare.

Estou para completar outra idade, e quanto mais idades tenho tido, menos enxergo o que se concebe por evolução. Eu não sou um insatisfeito, sou apenas indefinido no tempo. Lembro que quando completei quinze anos, os mais velhos me alertaram para aproveitar bem, depois dos quinze, tudo passaria voando. Deve ser verdade, porque meu décimo quinto “até parece que foi ontem”. E isso é tão verdade porque quando me lembro do décimo quarto, não parece que foi anteontem. Gerações e gerações decorreram entre um e outro. Outras vidas me passaram desde então. À medida que o número em cima do bolo aumenta, à medida que não vou tendo mais bolos pra pôr velas em cima, a vida vai ficando mais grave. Depois dos quinze, amei, odiei, experimentei, sofri, ri, chorei, fui e estou sendo feliz e infeliz. Como diria Caeiro: estou sendo natural... E agora, no lugar de sentir-me mais maduro, sinto-me cada vez mais vulnerável.

De ontem pra hoje, não posso negar que o fato mais relevante tenha sido a cegueira. Já me perguntaram com solenidade: qual a coisa mais importante que lhe aconteceu até hoje, o dia que você jamais vai esquecer? Respondi sem o lamento esperado: a bela noite em que pisquei os olhos e a luz não voltou do instante do piscar. E isso não é necessidade de analogia, poeticidade gratuita. Foi simples assim, literalmente, como tudo precisava ser. Mas não é por enxergar menos que me sinto vulnerável. As pessoas costumam reduzir tudo ao “isso ou aquilo”, e se esquecem que há níveis pras coisas. Quando me proclamo cego, não é por algum tipo sádico de auto-piedade ou necessidade de chamar atenção. É que também há níveis de cegueira, não é apenas enxergar ou não enxergar. Uma colega minha, recentemente, espantou-se com como tinha se habituado a ver pouco, depois que descobriu precisar de óculos para corrigir seu 1 grau de miopia. Expressou o assombro que teve quando pôs as lentes à sua frente. De modo que todo mundo é mais ou menos cego, irreversivelmente. Eu me apropriei da alcunha apenas porque estou num nível mais profundo (e não mais avançado) de escuridão. O hábito pode não fazer o monge, mas pruma festa à fantasia, calha bastante.

Quando os óculos ainda me valiam de alguma coisa, eu usava lentes para corrigir treze graus de miopia. Aposto que se alguém veio lendo até aqui, vai tomar minhas dores e rir do problema da garota também. Não faça isso. Eu me odiei quando a colega ali de cima me contou a historia e eu dei-lhe um sorrisinho condescendente, como se o problema dela fosse pequeno demais pra ser levado a sério. De novo a história do “isso ou aquilo”. Eu já ouvi falarem muito por aí, e concordo sem ressalvas: o pior problema do mundo é o meu problema. Também já ouvi que a cruz não nos seria dada se não a conseguíssemos carregar. Como não sou tão cristão quanto conviria, suponho mesmo que a melhor explicação seja a famosa teoria da relatividade.

Por sinal, Einstein foi o único Físico que nos apresentou algo realmente aproveitável para a vida. Newton, por exemplo, perdeu tanto tempo pensando na gravidade que aposto como esqueceu a maçã lá no chão, ela apodreceu e cá estamos, presos por leis “naturais” que o homem inventou. Pra provar que a gravidade existia, bastava mostrar o galo na cabeça depois do impacto e ponto. Então era só aproveitar o doce da fruta que molestou o corpo, há que se dar um proveito pra tudo. Mas não nos importamos muito em dar proveitos, importamo-nos mais em dar nomes pra tudo, até para a queda duma maçã, e aí esquecemos que a maçã caída podia ser apreciada sem mesmo a chamarmos de maçã. Aliás, elas caem sem serem chamadas.

Mas a tal da relatividade é mesmo genial. Ora, se algum estudioso das ciências exatas me estiver lendo (o que eu acharia, ao mesmo tempo, lisonjeiro e absurdo), vai achar ridículo tudo o que eu acabei de dizer. Provavelmente alguém que estude as humanidades me achará, no mínimo, interessante. Os mais ávidos podem me considerar muito esperto; os mais comedidos, apenas leviano. Mas eu não preciso ser interessante nem inteligente, eu preciso existir e ponto. Cair e permanecer no silêncio da minha queda. Sem nenhuma gravidade. Toda dor é necessária. Por que achar que não? Estou mais vulnerável porque, a cada dia que passa, teimo mais em pensar na gravidade das minhas dores. Agora mesmo, estou arrumando justificativas e mais justificativas pro fato de ter perdido alguma visão. Agora mesmo, estou lamentando e lamentando o fato de não saber o que fazer com minha vulnerabilidade.

Ainda há pouco afirmei ter amado de ontem pra hoje. E isso é definitivamente a única verdade incontestável que disse até aqui. Veja como dar nomes às coisas não adianta, como nenhuma teoria é genial o suficiente: o amor não é relativo. E tampouco é questão de “isso ou aquilo”, de ou ama ou não ama. Ama-se sempre, irremediavelmente. Mas ainda há jeitos diferentes de amar, e eu tenho amado de um jeito diferente a cada dia. Se eu parar pra pensar direito, vou perceber que estou mesmo é amando com mais urgência. É a urgência de amar que me sufoca. Como se para dar um sentido àquilo que faço, eu precise me sentir fértil por amar alguma coisa. Como se não me sentir amado anulasse as minhas considerações sobre todo o resto. E tem estado tão urgente o meu amor, que qualquer coisa serve. A última vítima foi um Girassol, quem sabe o que amarei depois? A vantagem de amar uma flor é poder pensar que o perfume dela é a correspondência. Por isso não costumamos dizer que amamos qualquer arbusto. A urgência de amar pressupõe uma súplica breve, que quando não é atendida, revolta. Amar é estar predisposto a ser amado em retorno, e, mesmo assim, nem sempre se está realmente predisposto, assim como nem sempre o retorno se concretiza. E, não se engane, nada disso impede ninguém, no mundo, de amar. Mas eu ainda não sei lidar com a incorrespondência, porque julgo nunca ter sido correspondido. E é triste precisar admitir que talvez eu não conseguisse tampouco lidar com a correspondência, no caso dela chegar um dia. Um dia ela chega, eu sei, talvez até já tenha chegado. É só que eu perdi muita visão, e pareço não me sensibilizar com determinadas sutilezas. O amor correspondido é uma sutileza, requer olhos de águia. E eu ando tateando o amor, botando perto do nariz pra sentir se tem perfume de Girassol, apalpando, chacoalhando, e quando dou por mim, meu amor ficou todo deformado e torto. O amor é frágil demais, não suporta a falta de retinas, a ausência da contemplação à distância. O meu amor. O meu.

 

 

 
 

 

 

 
Xenia Antunes

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Edna Menezes

 

 

 

 

20.9.2009