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Soares  Feitosa

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Soares Feitosa, dez anos
   
 
 

A menina afegã

Neste bloco:

Celso Moliterno

César Coelho

Juarez Leitão

Leila Míccolis

Lucila Cândida Sobrinha

Natércia Campos

Nelly Novaes Coelho

Nilto Maciel

Osael de Carvalho

Weydson Barros Leal

 

 

Culpa

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

 

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Um cronômetro para piscinas

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

César Coelho


A poesia de Soares Feitosa é forte, bela, autêntica e encantadora.  Fico empolgado quando  passo a ler e reler seus magníficos poemas.  De repente, luz; entro no mais elevado clima espiritual.  A sua poesia vem do êxtase mais profundo. O poeta é iluminado e mágico em todos os temas da vida.

A alma sertaneja, de modo especial, é retratada por inteiro, da maneira mais fiel, no verso fascinante de Soares Feitosa. Penetrando agora nos segredos e mistérios desta  poesia, vejo com maior clareza, porque Gerardo Mourão ficou tão intensamente encantado com o fantástico autor de pérolas poéticas como “Convite à Saudade”, “Panos Passados” e “Convite à Flor”.

O destino  de Soares Feitosa veio bem traçado:  ele nasceu para ser poeta. Ou mais precisamente, trouxe-lhe o destino as medidas exatas, perfeitas para ser um grande poeta. Agora, é seguir e viajar em sua poesia deslumbrante.

 

 

 

 

 

 

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A menina afegã

 

 

Leila Míccolis


Psi, a Penúltima

 

Como fascina a poesia de Soares Feitosa! Repleta de referências que fazem viajar em um fabuloso túnel do tempo, ou em um mágico tapete voador sobre outras eras, culturas e literaturas. Pois Psi, a Penúltima, representa por excelência sua obra, pela genialidade de unir o candelabro (tão místico) ao mandacaru (tão terra), através de uma única letra grega, em suas grafias maiúscula e minúscula. 

A partir dessas alegorias, Feitosa se debruça, hábil, sobre a alma humana, e, através de uma notícia de imprensa, embrenha-se pelos intrincados arquétipos do inconsciente coletivo, criando uma inteligentíssima saga a favor dos oprimidos, da legítima resistência e da justiça, em oposição à impiedade. Psi, a penúltima é um brado contra a lei do mais forte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Celso Moliterno


 

Caro Soares Feitosa

Muito te agradeço o livro Psi, a penúltima, consistente e cheio de sortilégios. És um ótimo poeta, inovador dessa poesia chão ou terra-terra.

Além do mais, ainda não conheço o Ceará. Parabéns — sua lírica muito me encantou...

Celso Moliterno

 

PS: Não falo grego


 





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Nelly Novaes Coelho

 

 

São Paulo 11 de setembro de 1996

 

Home, tu tá demais da conta!!! 

Entre a volumosíssima correspondência de sempre, o teu opúsculo. Emerjo à superfície do oceano de escrita em que estou mergulhada e leio Rio Macacos... e releio Os Poemas da Besta...   Estás realmente de tirar o fôlego a Hércules! Que bom!

Que enorme alegria descobrir neste mundo tresloucado de punks, danceterias, epidemias de "bundites" ou nudezas descaradas (ou totalmente alienadas?), de vulgaridades e grosserias, encontrar alguém que viva com tal intensidade a vida que outrora foi vivida por outros em dimensões geniais. 

Viva o POETA! Se você não existisse, precisava ser inventado. Os poetas devem estar fazendo festa na Eternidade por serem assim "curtidos"!!!


 

As Carnaubeiras de Catuana

 

Meu caro e sempre lembrado poeta Soares Feitosa 

Há tempos que estou para te esrever, comovida e agradecida pela lembrança amiga de me mandar a homenagem ao Mestre Octavio Paz, com seu "Dio insaciable que mi insomnio alimenta..." e tua caminhada pela Rodovia Catuana e teu olhar que transfigurou metaforicamente as carnaubeiras... e que interroga o "Senhor Engenheiro" que nos oculta o mistério de Sua presença e criação... Chorei como uma criança, quando ao abrir o Estadão na manhã do dia 20 de abril, li na primeira página a morte da Grande Presença de Octavio Paz... mas teu poema tem razão: 

— ¿Dom Octavio Paz? 
        — ¡Presente! 

Criou para nós um universo tão rico, amor, paixões, inteligência, generosidade, interrogações vitais... que nos fez a todos seus habitantes...Fisicamente, ele se foi, mas o universo que ele criou para nós continua aí, cada vez mais aberto a novas descobertas. Octavio Paz foi um dos meus primeiros mestres-guias, a ajudar-me a encontrar meus próprios caminhos no mundo da literatura, sondado em suas profundezas. 

Ainda não mergulhei fundo no teu poema final "Não é aqui não". Emocionou-me; é denso e vibrante de paixão, como tudo o que escreves.


 

Poeta Soares Feitosa

 

Recebi o seu Roma, — um soco no estômago e uma dor funda na alma! Que magia, que poder tem a palavra da Poesia! Como pode em tão poucas frases abarcar toda a maldade e selvageria!?

Nelly
  

Weydson Barros Leal

Os poemas de Soares Feitosa - este novo poeta, que surge aos cinqüenta anos - são, antes de poemas, uma explosão de amor. O amor de um poeta que dormia, ou do poeta adormecido em si, e que acorda para cantar a sua terra, a sua história pessoal (e ao mesmo tempo universal), a sua e a nossa existência. 

Os seus poemas, todos de nomes e estruturas particulares, ora por sua simplicidade de aldeia, ora por sua mesma universalidade, revelam ao leitor atento a cultura e a erudição dos seminaristas de ontem, sabedores do latim e do grego, leitores dos antigos almanaques e de múltiplas traduções bíblicas. Pois este é o caso do nosso poeta.

Também por isso, a leitura dos poemas de Soares Feitosa requer cuidado. Como um Pound, ele utiliza com intimidade os seus conhecimentos de latim e grego; e como os ideogramas chineses nos Cantos do próprio Pound, essas inserções, sempre buscando reforçar o sentido primordial da palavra, pedem um leitor identificado com sua busca. 

Isto não quer dizer que esse leitor precise de uma erudição ou de um conhecimento que lhe permita a leitura de línguas mortas. Pois o mesmo “miglior fabbro” que sabia fundamental o conhecimento de outras línguas nessa nossa época mas não dominava por completo outro idioma além do inglês, também sabia que “nenhuma língua é completa” e que “um mestre poderá expandir continuamente sua própria língua, adequando-a para conter alguma carga até então presente somente em alguma língua estrangeira”. 

Conheci o poeta Soares Feitosa através de um amigo comum que lhe indicara meu nome a fim de que conhecesse sua poesia. Desde o nosso primeiro contato, procurei desvendar o mistério que envolvia aquela voz explosiva que me falava de seus poemas. 

E seu processo criativo, ou da feitura de seus poemas, sabe-se - como se sabe de uma explosão no meio da noite - que são fruto de uma emoção que, provavelmente represada durante décadas, rompera os muros de seu inconsciente passando a fazer parte de sua linguagem. 

Isto me fez lembrar I. A. Richards quando diz que “muito do que colabora na produção de um poema é, naturalmente, inconsciente. “E muito provavelmente, os processos inconscientes são mais importantes do que os conscientes”. Este, no entanto, é um ponto polêmico, e bons poetas-críticos, como Baudelaire e Auden, têm posições opostas. 

Mas I. A. Richards poderia nos ajudar a esclarecer outros aspectos da poesia de Soares Feitosa, comuns em toda boa poesia: a dificuldade de compreensão por parte do leitor, ou mesmo a sua incomunicabilidade. 

Em seus versos, a sintaxe, assim como o encadeamento de algumas “passagens”, é proposital e duramente rompida, o que transforma o poema em um labirinto de luzes, em um terreno acidentado por declives e aclives de compreensão onde, de uma passagem simples e clara, passa-se a uma absoluta falta de direção. Esse desnorteamento, entretanto, é sempre protegido pela estrofe seguinte ou pelas notas que, abundantes, são como guias de sua “commedia” pessoal.

Por isso, na Poesia, (como em outras artes), o que muitas vezes é visto como dificuldade, é o simples resultado da busca do poeta em “ajustar” o seu poema de forma a este refletir com precisão a sua “experiência”, harmonizando-se a ele e representando-a. E mesmo que na obra artística a comunicação seja um de seus principais objetivos, é preciso não identificar, via de regra, “beleza” com “eficiência comunicativa”. 

Outro aspecto que não deve ser confundido nos poemas de Soares Feitosa é a sua estrutura plástica. Pela utilização dos recursos de computador, como o simples aumento do tamanho dos caracteres ou utilização de letras e palavras do alfabeto grego ou latino, esta poesia não pode ser chamada de concreta. Não tem nada a ver!

Esses recursos, no caso, exclusivos e característicos de nossa época (quando os computadores fazem parte do mobiliário das casas, como uma cadeira ou uma velha máquina de escrever), são os recursos que marcaram o surgimento simultâneo da poesia visual.  

E apesar das invenções concretistas terem sido quase sempre marcadas por resultados visuais, isto não dá ao Concretismo uma sobrevida (equivocada) da nova poesia desenvolvida com a ajuda dos computadores.

A obra disponível de Soares Feitosa está inicialmente dividida em sete volumes ou poemas: PSI, a penúltima (que é o primeiro deles) é um longo poema sobre a migração de raposas no Maciço do Baturité, no interior do Ceará, cuja notícia o poeta lera em um jornal. As raposas estariam invadindo os municípios em torno das matas em busca de água, e infectadas pela Raiva, atacavam as pessoas. 

PSI, a penúltima, é um belo poema, e seja pela carga dramática, seja pela utilização de elementos regionais (nome de pessoas, lugares, expressões locais) ou ainda pela aparição de termos em grego e em latim no percurso do poema, o resultado é uma pequena peça que poderia ser declamada com os tempos e as impostações teatrais.

O segundo poema, Um Fractal - Ave, Pax!, remete seus elementos ao poema anterior. De extensão reduzida, é, no entanto, uma fábula; não por sua estrutura sintática - sempre recortada, como se um dos fantasmas de Guimarães Rosa lhe assaltasse a palavra - mas pela utilização, como no poema anterior, de animais que “agem” e “falam” como protagonistas.

Outro poema circunstancial, SIARAH, narra com a linguagem “cifrada” ou codificada pelo poeta - e por isso mesmo a necessidade absoluta das notas explicativas - a saga dos cearenses na construção do canal de 120 Km, recentemente concluído, que corta o sertão do estado.

A notícia, que ouviu pelo rádio juntamente com a informação de que a cidade de Caruaru, no interior de Pernambuco, devido à seca só recebia água a cada dez dias, foi a semente para o poema. 

Os outros poemas Compadre-Primo, Padre-Mestre e Castanholas de Toí são textos memorialísticos e têm suas raízes em lembranças do poeta, de sua infância e adolescência no Ceará, e até em recordações de seu tempo de Seminário. 

Pequenas variações quanto ao ritmo podem ser observadas nesses três poemas, no entanto, uma tendência dramática, como nos diálogos entre os personagens recordados ou inventados que habitam o poema, são uma marca constante até o último verso.

Chegamos então ao último volume: FORMAT CÊ DOIS PONTOS, que, como observou o poeta e crítico César Leal, é obra de um portador da verdadeira imaginação informática. 

Como encerramento do conjunto, este poema funciona como um final de rara força. O poeta une neste texto todos os recursos utilizados anteriormente, acrescentado-lhe, aí sim, termos em inglês que reproduzem o próprio “raciocínio” dos computadores.  

Palavras como Delete e Undelete (que parecem gritar no papel, como em: Undelete:/ Não O destruam, por favor,/ Recuperem-No!/ Meu files, meus thesouros!

Ou ainda em Enter, Copy, Copied, Save!, que aparecem quase sempre acompanhadas de exclamações que lhes reforçam o sentido de velocidade informática e do grito de sua poesia.

Ainda em FORMAT CÊ DOIS PONTOS as reminiscências da infância no Ceará são trazidas ao poema de forma curiosamente oportuna: a mistura dos arreios de prata, do gato Mimoso, do Cachorro Foguete, do gibão do capoeiro e outros elementos de um tempo passado ou (paralelo) de um bad command or file name criam o contraste do rústico com o contemporâneo, muito em voga, inclusive, na arquitetura atual.

FORMAT tem a velocidade da Informática, e é para ser lido, como faz o próprio poeta, com rapidez mas com a impostação que se dá sobre o palco ou o tablado.

Mas o poeta sabe que sua experiência, como uma busca no passado, corre o risco de não ser compreendida por todos:  

“Vigiai, vigiai, 
        é longo o caminho da Grécia 
        incerto o resultado da viagem à Grécia ! 
        Vigiai e orai!” 

 

Este receio, entretanto, não o impede em sua viagem, e a chegada ao final do poema - como se o poeta chegasse a uma Grécia do futuro - é o seu próprio conhecimento do Universo, e este, como a imaginação humana, é o Infinito: 
  
        c CHRIST 
        the soft, 
        the omega!!! 
        : 

UNIVERSE 
        the hard, 
        the infinite.  

 

Gostaria de encerrar essas observações sobre a poesia de Soares Feitosa lembrando um ensinamento e uma constatação de Shelley, o maior poeta lírico do romantismo inglês, autor da “Defesa da Poesia”.  

Este ensinamento concerne ao problema da incompreensão ou dos verdadeiros equívocos de interpretação em que podem incorrer os leitores comuns, ou analistas que não sejam verdadeiramente poetas, quando tentam conceituar determinada obra. 

Diz Shelley: “O júri - essencialmente intemporal - que julga um poeta, deve ser composto por seus pares; e estes devem ser eleitos pelo tempo e dentre os mais doutos de muitas gerações, pois os poetas são os espelhos das gigantescas sombras que a futuridade lança sobre o presente; as palavras exprimem o que não compreendem; as trombetas conduzem a batalha e não sentem o que inspiram; a influência que não é movida, mas move”. Soares Feitosa é certamente um poeta que deve ser considerado pela sua criação.

 

Lucila Cândida Sobrinha

Psi, a Penúltima

 

"Balançando Devagarinho" e sentindo o cheiro da imburana, que cheira a pessoas e lugares queridos, fui lendo seu livro, Psi, a Penúltima, sorvendo seus cantares, meio terra-terra, meio rústicos, deixando  a imaginação divagar aos sabores de cada poema, cada enfoque. 

          Sua linguagem, rica nas imagens e na correção do idioma, é uma fonte de aprendizado literário. Lembra, em certos aspectos, Guimarães Rosa, meu conterrâneo.

 

Natércia Campos

Fortaleza, 14/agosto/96

 

Louvado seja Nosso Jesus Cristo!

Meu compadre Soares Feitosa

 

Ando convivendo devagarinho com o "sol". Vou leve para não me encandear... Sinto que estou pegando estima, me afeiçoando como os domésticos xerimbabos. "Mundo, mundo, vasto mundo se  me chamasse... Esse mundo em "réquiem" é feito de ressurreições: viventes, cheiros, costumes, cânticos, mitos, "cacimba clara", fria e cheirosa. Já sentiu o cheiro da água, das levadas? E seus sussurros...!

"Mundo velho sem porteira"... Vontade de me apoiar na parte da porta-de-baixo de uma casa nordestina, perdendo o olhar nos caminhos  e sentir que longa será a nossa caminhada por este mundo de de meus Deus...

Havia de ter tido início no mês de agosto, de céu escampo e do mais belo luar. Do mês só me arrepia — o mais aziago dia do ano — em dia de São Bartolomeu. Tem o demo uma hora de seu, diziam assim em Beira, Portugal. Já o Leandro Gomes de Barros Cantava:

A 24 de agosto,

data este receosa

por ser a em que o diabo pode

soltar um dedo de prosa

 

Mas este agosto para mim chegou pleno de alvíssaras com o seu Réquiem em sol da tarde, que me transporta:

"Era assim

já foi assim:

a missa do Padrinaço

com toda a pompa...

fervoroso na batina

sacerdos in aeternum...

Cum laude!

 

Retorno da liturgia, do latim, da Missa Sollemnis, dos Cantos Gregorianos, aquela grandiosidade, a eloqüência, o Magnificat, o Bispo Conde, José Tupinambá e seu séqüito de glória...

"... a morte tangencida/ às vezes/ morrida!"

 

Antífona, sete, deu o número perpetuado desde a Babilônia, está na Bíblia, no Alcorão, misterioso, sagrado, sete-estrelo, sete as da lira, sete as forças do banho-de-cheiro, feito de sete-ervas; sete os céus que cobrem o mundo antiqüíssimo que você acalanta e nos faz pródigos no retorno à casa paterna.

Para sempre seja louvado.

Natércia

Juarez Leitão

A sina do eterno caminhador

 

Lá no Soares, lugarejo nos confins do Nordeste, sertão brabo de Independência, Ceará, onde todos os habitantes são primos entre si, um que passava para a roça cruzou com outro que ia chegando e perguntou: 

— Compadre, dizem que filho da Anísia do tio Zé Fenelon,   aquele que mora para as bandas do Pernambuco, foi mordido por uma raposa doida, você sabe?

— Sei - respondeu o outro - e também ouvi dizer que o rapaz ficou de tal modo afuleimado por causa do veneno da bicha, que agora anda espalhando a maior confusão pelo mundo todo, um grande labacé, que já 'tá saindo até em jornal, com retrato e tudo... 

O boato acendeu a confabulação naqueles longínquos sertões e tem rendido noites de prosa gorda por aquelas bandas, o pacato planeta dos soaristas, onde tudo é, a um tempo, importante e banal, e, onde a ventura, a desdita e próprio susto se medem pela régua fatal do destino. Neste caso, porém, a notícia saiu acanhada e os versos que aqueles cantadores do sertão estão glosando nas noites de lua cheia, sob o mote de - “a raposa mordeu Chico José” - está muito aquém do real. Não estão sabendo nem um terço da missa.

Devo ir lá - posto avançado que sou daquela pequeno e insignificante clã de matutos, na cidade grande - para repor a verdade junto à parentela. O filho da Tia‘Nísia não foi mordido por uma raposa, apenas. Foi muito mais. Devem ter sido mil, no mínimo, todas com os três cabelos do cão da ponta do rabo, as raposas que morderam o Chico José. 

Pelo mês do setembro do ano passado, Seca do 93, recebi de Soares Feitosa, o Chico José - de quem nunca se soube poeta - a notícia inesperada: estava fazendo versos. Sempre muito esquisito e surpreendente, anormal pelo gênio e capacidade de pensar, criar e fazer dar frutos aos mais desafiadores projetos de vida, parecia-me que desta vez estava caçando onça muito longe de seu território.

Mas ao primeiro contato com o seu novo empreendimento, o poema SIARAH, percebi que Chico José já vinha da estação da caça, e não só matara a onça como já dela se vestia, gibão de vaqueta da pintada, peito, pulo e destreza; pisada macia e urro de trovão!

Chico José, fiscal do consumo aos vinte anos de idade, também concursado brilhante do Banco do Brasil, desertor entediado da Faculdade de Direito, foca petulante aos 16, no jornal Gazeta de Notícias - de saudosa memória - "cassaco" aos 14, seca do 58, - no que levou uma belíssima reprimenda do Padre-Mestre - abridor de caminhos difíceis, herdeiro de algumas tragédias pessoais, açougueiro na praça do Recife, mil vezes vencedor... mas, poeta - quem haveria de suspeitar?

Pois é poeta e tem necessidade urgente de falar! Sua poesia tem a exuberância das festas sertanejas. É leite com espuma, paçoca de pilão, cozido de carneiro gordo, capote (guiné) morto a tiro de lazarina, gosto, tempero e sustança dos tempos de safra. Entretanto, é também alimento de absorção abrangente e intemporal. Não tem limites nem endereços curtos ou mesquinhos.

Argúi sobre o fato explícito - a notícia de jornal, o calor do cotidiano, prevalências subjetivas de alto resultado expressivo e humano. Da circunstância paroquial, ribeirinha, atinge sem problema o patamar universal dos temas clássicos do destino.

A dor, a injustiça, o infinito sofrimento e a resistência heróica da raposa do maciço de Baturité são a interminável e rude saga do pequeno homem frente à ambição de sua espécie. A história que esconde, não titubeia em apresentar com os nomes e os papéis trocados o resultado de sua luta. 

Notável não foi o massacre de Roma sobre a pátria de Aníbal, mas a certeza do opressor de que os cartagineses iriam sempre resistir! 

A poesia de Chico José quer pôr ordem na informação. Com o facão do açougue e o velho chiqueirador dos Feitosas dos Inhamuns, esse descendente dos audazes colonizadores do século XVIII não está mais em guerra de sangue com os Montes, seus inimigos remotos. Tem briga maior. 

Quer mostrar aos seus contemporâneos e aos que hão de vir que é preciso discutir, sempre, os caminhos do homem. A luz que vem de antes, dos primeiros vagidos da consciência, tem sempre que produzir auroras, não a brutalidade da morte muda, do golpe sem razão: Format Cê Dois Pontos.

E o verso dispara como um arcabuz, vindo das brenhas, do áspero chão da memória, às vezes num plano abstrato e imaterial, outras, e muito mais, terreno e duro como a pedra e os dias. É um homem do ontem, do agora e do futuro, revivendo com amor e macia mão ternural a história dos filhos do Sol. Com esperança e brilho. 

Nestas qualidades repousa essencialmente sua grandeza emocional, quando abraça com fervor os velhos fantasmas da infância, os bois, os jumentos, os gatos, os cachorros, a mata passarinheira, o rude cinturão das estradas com suas fivelas-cancelas rangedoras e toscas, o microcosmos do oeste cearense, que carrega por outros mundos e guarda no santuário da alma com devoção perene e vela acesa.

Conheci-o de perto - somos primos - na casa do padre Leitão, personagem de um dos poemas deste livro (Padre-Mestre). Assustou Nova Russas com sua inteligência largamente alardeada pelo padre, e pelo comportamento inusitado de matuto presepeiro e misterioso.

Mandigüeiro do surreal, agente metafísico, adquiriu nas fontes do conhecimento natural, o sertão, a arte de curar bicheiras e capar bichos, pasmem, NO RASTRO! Em Nova Russas dispôs-se a exercitar tais dotes de capador e, à falta de bodes e carneiros, anunciou que caparia alguns meninos, pondo em medo pânico todos os colegas. Alguns, sobre cujas passadas executou o sinistro ritual, até hoje se queixam de problemas no cumprimento das funções maritais e... culpam o Chico José! 

Tomando contato com um livro de hipnotismo, evoluiu rápido para outras danações, ponto sob seu controle, entre outros, o amigo José Pires, que também morava na casa do Padre-Mestre. 

Com gestos cabalísticos e severo comando, punha o Zépires a gargalhar à toa ou dançar freneticamente, num espetáculo que além de divertir muito o tornava temido e admirado no colégio: muitos tinham medo de ser a próxima vítima do feiticeiro adolescente.

Pois Chico José reedita agora, na poesia, com grande estilo, aqueles dons do feiticeiro adolescente: ele enfeitiça as palavras, tece e coze sentimentos, e, qualidade maior, sabe retirar do vazio como é aquela notícia de jornal sobre as raposas doentes e famintas - uma prosaica e inocente nota de saúde pública - e assentou sobre tão insignificante material, uma verdadeira catedral, um templo grego, gótico e moderno a um só tempo!

Leitor obsessivo de Kafka e de Shakespeare, é caboclo perfeito, com voz e passo, comedor de canjica e de rapadura, semeador de espantos, capaz de caminhar léguas sozinho pelas estradas ermas do interior com a desenvoltura de um romeiro. Quantas vezes ele partiu da fazenda Catuana, Santa Quitéria, CE, à margem do rio Macacos, (onde matou a cascavel gigante, do poema da Raposa), onde sua mãe construía um açude, para fazer as provas mensais no Ginásio de Nova Russas, percorrendo de noite, sozinho, quase 50 quilômetros. Saía à noitinha, livros no matulão - lençol enrolado em diagonal e carregado também em diagonal do ombro para o quadril oposto - e chegava ao clarear do dia, a tempo de ajudar a missa do tio Leitão.

Chico José está outra vez na estrada. Sabe que vai caminhar - longa é a viagem à Grécia - não escolhe lugares, mas os nomeia e canta os sentimentos com a força de um gigante. Atrás vem deixando uma renda tecida de grandes realizações telúricas: mergulhos nos riachos, filhos, cálculos fiscais, manhãs de perplexidade, aboios e canapuns. 

Pela frente tem o horizonte perpétuo dos filhos de Orfeu, a delirante aventura da Poesia, Deusa e Vampira, cujo abraço é de ventura extrema e de eterna maldição.

 




 

Continua

 

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