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Sérgio Cohn

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Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia :


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Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

Carlos Nóbrega

 

 

 

 

 

 

 

 

 

albano Martins

 

 

 

 

 

Urariano Mota

 

 

 

 

 

Mauro Gama

26.5.2006

 


O sonhador insone

 

O sonhador insone, de Sérgio Cohn. Azougue Editorial, 96 páginas. R$ 25

 

A poesia está viva, andando e pulsando por aí. Ela cintila, se insinua, invade o olhar e a percepção. Se o país apodrece, se o mundo se deteriora, se de repente (ou não) tudo parece perder-se, a expressão poética nos garante um ganho primordial: é a quintessência da comunicação entre os seres e, na palavra de um poeta como Sérgio Cohn, ela continua a se destilar, premente, na relação com o mundo. Em “O sonhador insone”, Cohn realiza uma síntese decisiva.

Em sua escrita de recortes essenciais, que se revela como uma arte de ponta-seca entre mágica e reflexiva, encontramos a confluência de raízes várias. Há desde traços bandeirianos (no modo de eleger, ou de saudar, as formas e os motivos), passando por um contido clamor de liberdade beat bem filtrada — “liberdade, palavra-erotismo/ puro fetiche” — até as lições de um concretismo lido criticamente, sem qualquer simplificação apressada. No sentido de que pôde, assim, contribuir para propiciar em Cohn o compromisso com a busca do máximo significado na máxima concisão.

Quem falou em minimalismo? Não nos vamos confundir nos nomes e nos conceitos.

Há, sim, um tanto da caprichosa vertente minimalista nos poemas de Cohn, mas a questão a ser apreciada é aquilo que o poeta, acrescido de sua abertura intertextual (bem descrita por ele na nota que lhe serve de posfácio), elaborou e praticou para fazer de “O sonhador insone” uma coletânea original. Nem reescreve o espanto — e o encanto — de Bandeira ante o dom da vida, nem reabilita algo da explosão americana de Ferlinghetti, Ginsberg et al ., nem se inscreve como um acólito ou repetidor dos concretistas, mas se mostra senhor de uma linguagem. Senhor de sua trama verbal que interage com a existência e se designa “numa perspectiva afetuosa/ de tudo”, tocado e ferido fundo pelo “amor mínimo/ que as coisas nos doam”, atento e suficiente diante do que afortunadamente nos ultrapassa, do que “foge/ à estrada, a trilha/ guaxinins, jaguatiricas”, e só se pode expressar pela nossa voz.

Assim como não se extraviou intelectualmente, perdendo-se como tantos no passado literário ou na filiação a matrizes estrangeiras, reincorporando formas esgotadas ou rebeldias alheias, também não se desgarrou em sua procura poética. Sabe que “não há como celebrar o raro/ sem o encontro” (conhecendo-se, neste, o que o integra e o supera ao mesmo tempo: revelação, entrega, às vezes êxtase).

Autenticidade da invenção sensorial

Daí a autenticidade de sua invenção sensorial. Seja numa dupla metonímia como “(mas se o olhar perco/ é uma asa de borboleta/ pura chama congelada/ o sol indo de encontro/ com a água)”, com sua plasticidade e suas sinestesias, ou nas metáforas concretas das “Aproximações, encantamentos”, particularmente na seção da Chama, com a alofonia dos erres no “começa a corroer/ a carne do ar” ou no “calor azul” das “línguas de vidro/ de Murano”, com a mobilidade e a agudeza de um Miró, ou do que Cabral, sobre o artista, chamou de “cifras da realidade”.

Nessa realidade transita o poeta Cohn, colhendo e reelaborando suas centelhas expressivas. Reparemos como não escreve versos. Os que dizem o contrário sobre autores como esse, e insistem na tolice de lhes apontar aqui os “versos” de três sílabas, ali de quatro, cinco ou sete, perdem tempo, e a essência da criação poética. Cohn cria em linhas descontínuas, que se equilibram pela sua respiração nesse trabalho, às vezes interrompido por parênteses de silêncio, ícones do “repouso do guerreiro”, ou de suas armas. Há, em seu espaço poético, um tanto de paganismo helênico, de fascínio pelos elementos, e pela estética do furto de Prometeu (do fogo da criação) — sendo de se torcer para que, como tantos de nós, não tenha o fígado para sempre bicado por um abutre: “chama/ você é o fruto / no galho da goiabeira/ de quem furta a sua vida?” (os grifos, nossos, acentuam a associação paronomástica do “fruto” com o “furto”, do invento substancioso com a sua conquista).

Mas o poeta não se limita a essa perspectiva, em que se apreenderia um toque neoclássico: tal como se abre à co-autoria, à poetização coletiva, se mostra disponível a toda sugestão criadora, se enleva com a ruptura surrealista (que valoriza em citação de Breton) sem se afastar das fontes culturalmente brasileiras (insere “a pele/ da cobra-grande” em seu mar de “azul e vertigem”, ou de “sede de Sísifo”...), e se envolve numa espécie de mística da natureza, que se materializa, mais do que nunca, nesta imagem viva que agrega perfume, ar, energia física e luz: “a carne do sândalo/ respirando/ tatua o sol/ no vento”.


MAURO GAMA é poeta e crítico literário

   
 
 

 

 

 

7.4.2007