Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

 

 

 

 

 

Rodrigo Petronio

Transversal do Tempo


 

I - A máquina do mundo

 

Lucrécio vai a um bosque ermo em meio a ciprestes; lá encontra o amigo Memio, com quem troca algumas palavras e para quem ensina a filosofia de Epicuro. Ao voltar para casa, observa sua mulher desmanchando retroses de lã; olha cada floco que esvoaça sobre a mesa de madeira, pequenos seres amorfos que correm caoticamente pela sala. Sabe que assim também o universo não se encontra estático; que há em toda a matéria a unidade mínima dos átomos, e que todos os seres criados têm como última instância o vácuo, se dispersam e nunca se contraem. É inútil o amor dos homens pelo centro: nada pode se manter unido. Desviando os olhos, vê um povo revolto sob tudo o que toca. No cânhamo, na flor, no tronco, na areia, nos objetos corriqueiros persiste a marcha inexorável e divergente dessa multidão. Os deuses são mera ilusão; ao fim, com a morte, a forma dos seres se transmuta, é impossível inverter a lógica do tempo e a substância de que é feito, ao morrer, levará todas as qualidades que o enformam e nele participam. Tudo o que o fogo queima em si resume – pensa. Olha a africana nos olhos, como quem trava um acordo tácito. Ela vai à gamela, mexe-a por alguns minutos em silêncio e logo lhe ministra algumas gotas de veneno.

Essa pequena história, narrada por Marcel Schwob no estilo conciso e lapidar de suas saborosas Vidas Imaginárias, tem como motivação a vida dos filósofos gregos de Diógenes Laércio e a Vida dos Pintores, de Giorgio Vasari, biografia de artistas ilustres publicada em 1550. Mas Schwob inverte a sua natureza: além de homens insignes, aparecem em suas histórias piratas e mercenários cujos feitos são recuperados hipoteticamente. Valem muito como ficção, mas nos importam muito pouco como fato. No caso de Lucrécio, e dos autores gregos e latinos, que vale o conhecimento de suas respectivas vidas? De quase todos eles sabemos muito pouco, quase nada, e na maioria das vezes nos guiamos por conjecturas. Qual a importância que a biografia de um escritor tem para as letras? Poderia se dizer que, felizmente, nenhuma. Afinal, morto, o autor não passa de um conjunto de sentenças que construímos mentalmente, e se fosse substituído o nome de Lucrécio por qualquer outro, continuaríamos a ler a mesma obra. Não há porque ir buscar na falibilidade de um cotidiano tudo aquilo que alguém se propôs a tornar perfeito transfigurando com artifícios. Apenas na nossa época, onde a crítica literária ora parece uma extensão da fofoca e da conversa de bar, e tenta ver a obra como um subproduto dos humores desse hipotético autor, essas coisas tomam vulto. Afinal, não há mais Schwob, Diógenes e Vasari para nos salvar.

Digo isso pois não importa a disposição mental que levou Lucrécio a escrever o De Rerum Natura, e alguns historiadores que lêem os autores antigos buscando neles algum tipo de não se sabe qual misteriosa psicologia chegam a supor um estado próximo da loucura. O fato é que há poucas obras literárias que conseguem encenar dramaticamente os processos da natureza com a sua intensidade e resolução. Poeta atípico dentro do panorama das letras romanas, Lucrécio parece ter desenvolvido uma tradição literária que vem dos gregos, dos poemas de Parmênides e de certo tom reflexivo de Píndaro, mas que encontra nele o seu único porta-voz em língua latina. Contemporâneo de Cícero, de Propércio e dos neóteroi, os poetas novos, como Catulo, e de uma geração imediatamente anterior a Virgílio e Horácio, Lucrécio destoa tanto dos poetas do primeiro século antes da era cristã quanto daqueles que viveram a época de Jesus, e cujas obras nos chegaram. Enquanto Virgílio é o poeta oficial, e promove, com a Eneida, o elogio do Império de Augusto, período de maior prosperidade intelectual e econômica dos povos do Lácio, Horácio exercita a sátira a partir de Pérsio e Juvenal. Já os poetas novos propõem novos temas e uma urbanização da poesia a partir de uma crítica à épica, e Propércio tece sua trama erótica e amorosa ornando-a com a erudictio das referências. Ao contrário, Lucrécio se dispõe a fazer uma cosmogonia a partir da filosofia de Epicuro. Se fôssemos pensar em termos cronológicos superficiais, julgaríamos sua proposta como um grande anacronismo para a época. Mas seu poema cósmico não tem nada a ver com a Teogonia de Hesíodo. Pois a base do De Rerum Natura é exatamente a crítica aos deuses, e a descrição dinâmica e conceitual da natureza como a faria um filósofo materialista. No lugar de heróis, deuses, adivinhos e imperadores Lucrécio pôs os átomos, as forças de contração e repulsão, as relações do espírito com a matéria, o vácuo, o acaso, os astros, as vidas vegetal, animal e mineral, o universo em sua mudança contínua, as qualidades e o funcionamento de cada um dos nossos afetos e a origem das nossas faculdades. A Natureza é o Odisseus de Lucrécio, e creio que ele inaugura a poesia dramática ocidental, por não ser nem épico, nem trágico, nem lírico, cômico ou satírico, já que é o velho Aristóteles quem nos ensina a classificar o gênero de uma obra a partir do que ela não é.  

Poema reflexivo, seu objetivo didático não tem nenhuma correspondência com a acepção moderna deste termo e da própria literatura, vista como instrumento útil à defesa de uma tese ou à exposição e veiculação de uma filosofia. Não há precedência de algo a ser exposto e maneira de o fazermos, e pensar assim é pensar como se fosse possível um raciocínio instrumental, típico da nossa sociedade, no mundo antigo, o que é, em suas premissas, algo sem fundamento. Há sim a matéria a ser narrada, e os meios retóricos de fazê-lo; e ambos são simultâneos. Lucrécio não se apropriou de Epicuro para difundi-lo em sua poesia: ele efetivamente viveu as idéias de Epicuro na sua poesia. Daí o casamento entre a matéria – a invenção, diria Quintiliano – e a técnica ser perfeito, o que dá a força poética de sua obra. No decorrer dos seis cantos, vemos uma série de teses serem levantadas, umas refutadas outras aceitas. Uma das primeiras invectivas é contra a própria pátria, segundo Lucrécio tomada por adorações infundadas e vítima da superstição. É muito curioso ver um poeta pagão imprecar contra as divindades, e dizer que os numes e os deuses são um engodo sem sentido que só estiola o nosso crescimento intelectual, se pensarmos que Ovídio, no século III, irá escrever as Metamorfoses, e repisar o mais que repisado enredo mitológico com uma finalidade, no entanto, mais ornamental que vital, como o é em Homero. Daí em diante, a mitologia grega e latina atravessará toda a literatura, passará por Camões e desembocará em Ezra Pound. No entanto, já se trata de uma conjunção de crença e de estilo – essa parece ser a diferença principal entre esses extremos.

Após a invocação de Vênus, Lucrécio já iniciará suas críticas. Cito a boa tradução de Lima Leitão, erudito português do século XIX:

Não me é decente desferir meus cantos

No tempo iníquo de aflições da pátria[i].

É claro que, num sentido extremo, essa exclamação poderia ser entendida como um mero tropos retórico. Em todos os tempos encontramos escritores que vilipendiam sua própria época. Montaigne se dizia contemporâneo dos costumes mais baixos de que se tinha notícia; achava que os cortesãos se pavoneavam demais e entendiam de menos; muitas vezes, ainda, que vacilavam a sua discrição e o seu decoro. Menos de um século mais tarde, Baltasar Gracián, no Oráculo Manual, diz que seu século é o mais fútil e abominável que já existiu, e a maioria das pessoas parecem viver felizes em sua vulgaridade, fato que escapa ao seu entendimento. Sabemos o quanto Nietzsche criticou os alemães, chamando-os de um povo sem espírito, rudimentar e grosseiro, em detrimento dos russos e franceses, seus adorados. Também falou de seu tempo, e o que disse não é nada agradável, já que era contra o avanço das formas democráticas de governo, formas essas, segundo o filósofo, de domesticar o rebanho, e avesso ao espírito de negação e ao pessimismo que ele identificou no cristianismo, e dos quais o século XIX se tornou um porta-voz. Nós, no século XX, glosamos esse tema ad infinitum. Não sem razão, é óbvio. Mas, se todos a tem, estaremos coagidos a ver o mundo como um grande purgatório, às vezes sem redenção – esse é o agravante. No caso de Lucrécio, é bem provável que suas críticas tenham um fundamento empírico, não porque possamos deduzir isso de uma suspeita intenção do autor, mas porque é adequado às suas crenças. As superstições são o maior entrave à inteligência e à compreensão real dos fatos, diz nosso autor, e são elas que embotam a nossa percepção às custas de legitimar o poder de quem as usa:

Sempre a superstição em toda parte

Crimes brotou, brotou ímpios sucessos.

Um outro ponto polêmico de Lucrécio é que ele nega, sem o saber, um dos princípios da doutrina cristã então nascente: a Criação a partir do nada. Como para o poeta há dois elementos fundamentais na Natureza, o vácuo e os átomos, e um depende do outro já que, não havendo o primeiro, a própria idéia de movimento e, portanto, de vida, seria impossível, a ausência e a presença se complementam, e seria estranho se pudéssemos depreender uma da outra, tirar todo o criado de um Incriado absoluto e vice-versa. Heráclito cria no fogo primordial, Tales na água, Empédocles nos quatro elementos conjugados. Lucrécio não só descrê dessas premissas como as refuta, porque perto do atomismo de Epicuro essas propostas parecem algo inverossímeis. Como subordinar a existência de todos os demais elementos a um, de qualidades equivalentes às deles? Parte então do princípio de que nada pode sair do nada, nem voltar a ele – e deixa assim implícita mais uma invectiva contra os deuses, que podiam gerar ex nihilo. Além disso, crê que tudo se transforma e nada permanece; os seres mudam sua aparência mas não se aniquilam, pois sua substância é a mesma de todo o universo: as partículas elementares, força unificadora da diversidade perceptível. E diz:

O que as metas transpõe de sua essência

Morre logo, e o que foi não é como antes.

Percebemos então que a base de toda a existência é indestrutível, porque os átomos são indestrutíveis, e são eles que dão estabilidade ao que seria, ao contrário, caótico. Não se trata de um instante único da Criação, localizado fora do tempo: a criação está em constante processo, ainda não foi acabada e nem haverá de ser. O universo existe desde sempre na eternidade. Só que seus seres, ao morrer, se transformam em outros seres: a forma define a substância mesma de que somos feitos, e, se uma é mortal, ambas o são, porque estão atreladas indissociavelmente. Para Lucrécio, há sim uma força eterna. Mas ela é puramente material, e não comporta nenhuma transcendência. Uma espécie de terror mortis se apresenta dessa maneira, e estamos diante do mesmo problema de Aquiles e da tartaruga, proposto por Zenão de Eléia. Porque, se o universo é a representação, sob formas efêmeras e mortais, dessa Unidade imanente incorruptível, tudo o que morre o faz como se dançasse e sugerisse por trás de sua máscara a Matéria imóvel e eterna de Parmênides, que para Lucrécio são os átomos, e fosse apenas uma modificação superficial sobre a essência comum e constante, sempre idêntica a si mesma e anterior às manifestações sensíveis. Assim, se imaginamos que o universo também é infinito, infinitos tem de ser os corpúsculos mais tênues de que ele é feito:

 

Que diferença então se imagina

Que entre o máximo e o mínimo se dera?

Nenhuma: a crermos infinito o mundo,

Também de partes infinitas consta

Desse mundo o corpúsculo mais tênue.

 

Ou então:

 

Presta ao que vou dizer: os elementos,

Que tem finito o número das formas,

São infinitos em cada uma delas.

 

Se a matéria é finita em suas formas, cada uma das formas que a compõe não o é, e seria preciso imaginarmos um infinito discreto, intrínseco às próprias criaturas, cujas propriedades principais já não fossem a extensão e a duração, como geralmente estamos acostumados a pensar, e às quais, por fim, sem respostas, acabamos sempre delegando uma explicação metafísica. Há então um movimento duplo: as formas são mortais em suas manifestações aparentes, mas imortais em sua substância – o homem, ao morrer, estará cerrando definitivamente o curso de sua existência, mas não barrando a continuidade perpétua dos átomos que o constituem e são imortais. Assim também, se o universo é finito na variedade de suas formas, é infinito na Substância que as fundamenta e que participa nelas. Não há nisso, como se crê, necessariamente a ausência de Deus ou sua negação. Porque ele pode facilmente identificado a essa Substância, como o fará mais tarde Espinosa, incorruptível e sem extensão, já que, se a tivesse, estaria sujeita a ser referida pelos mesmos predicados que limita todas as criaturas e seres mortais, ou seja, deixaria de ser uma força perfeita, fora do tempo e do devir das criaturas. A partir dessa trama, Lucrécio poderá criar suas analogias entre cosmo e microcosmo, que são de grande beleza quando arquitetadas a partir de um fundo filosófico altamente bem amarrado, como é o caso do De Rerum Natura.

No Livro I, Lucrécio vai dar as bases de seu poema, e dizer-nos que tudo aquilo que não é nem vácuo nem átomo é deles propriedade ou acidente, seguindo a famosa distinção de Aristóteles na Física e na Metafísica. Assim, criará a concepção do universo como uma engrenagem, e sua obra será uma das maiores expressões do que, no século XVII principalmente, viria a se entender por máquina do mundo, tópica cara a Camões, que a usou no Canto X dos Lusíadas, e às letras seiscentistas de modo geral, a partir das quais essa noção será vulgarizada e apropriada em momentos de extrema beleza. Basta lembrar que o poema homônimo de Drummond, além de dialogar com o Little Giddens, última instância dos Four Quartets de Eliot, também recupera essa tradição que, por hábito, rotina ou falta de imaginação, chamamos barroca. Muito antes disso, no entanto, a natureza já tinha sido posta como protagonista das obras, por intermédio da mitologia e sob a figura da deusa Natura. Basta lembrar das obras de Marciano Capela, Claudiano, das Nuptiae de Bernardo Silvestre e do Planctu Naturae de Alain de Lille, esta datada do século XII[ii]. Todas elas podem ser genericamente definidas como poemas científicos; a diferença é que a presença dos deuses e um intrincado aparato mitológico atenuam seu fundo especulativo, aproximando-as mais de um tipo de visão alegórica das mesmas forças que, em Lucrécio, são motivo de reflexão.

Se a Criação ainda não está pronta, podemos supor, em tom de pessimismo, que a própria vida não é mais que um caminhar para a morte:  

Vivo não vês tu que a própria vida

Quase, quase da morte não difere?

 

Tudo está permeado pelo vácuo; não há redenção possível porque a essência da alma é material, não há um mundo além, um Hades ou um Tártaro, para onde as almas migram depois de destacadas da sua vida orgânica:

 

Do ânimo e da alma eis pois corpórea a essência

 

Vemos a alma e o corpo nascerem unidos, amalgamados em um único ser compacto. Todas as almas mortas não retornam, pois já não são dotadas de um complexo sensível e biológico sem o qual não podem formalizar nenhum tipo de afeto nem entrever qualquer fenômeno. O que pode dividir-se em partes não pode aspirar a ser eterno – diz o poeta. E nos revela então que a eternidade de seres individualizados em características singulares é um simulacro, uma falácia do raciocínio, porque é impossível transpor os umbrais do tempo se ele multiplica, divide e cinde todas as coisas. Concepção aparentemente atéia, a única transcendência possível para Lucrécio não é de ordem metafísica, mas ética, formada a partir de valores estóicos como a firmeza do ânimo, a fuga das multidões, a resignação, a contenção das paixões, o domínio sobre a ação dos males externos e o domínio de si, além de outros expostos por Epicuro, Sêneca, Epicteto e Cícero:

 

Claro acaso não é que a natureza

Mais nada exige que isenção de dores,

A paz na mente, e o coração sem sustos?

 

Assim, cria uma ética, que é diferente de uma moral, cujos representantes últimos são a miríade dos deuses, e a relaciona o tempo todo com sua filosofia da natureza, expondo-as como complementares e derivadas. Vendo cada um de nossos sentidos – do tato à audição, do paladar à visão – como fundamentos materiais das nossas faculdades e do espírito, Lucrécio descreve o nosso processo de conhecimento baseando-se na apreensão da realidade sensível. Cada qualidade que depreendemos dos objetos só nos é dada como uma representação destes mesmos objetos; existem objetivamente neles, em decorrência da disposição e do movimento dos átomos de que são compostos, mas sua relação com nossa percepção é indireta, porque também nosso corpo e, portanto, nossos sentidos, são formados por átomos. Há uma distância intransponível entre os fenômenos e nossa capacidade de interpretá-los. Devido a isso, Platão chama esses mesmos fenômenos de aparência, que nada mais é que uma sombra pálida da Idéia, e elege a filosofia como o melhor (e único) instrumento para a ascensão ao pensamento das esferas, e à transposição dessa barreira. Lucrécio os chamará de simulacros – mais pessimista e, se acreditarmos que o pessimismo é o estado mais concentrado da inteligência, mais inteligente que Platão, não nos dá nenhuma saída. Cores, sons, movimentos, formas elaboradas e relações geométricas: quando os apreendemos, não os apreendemos como realidade, mas sim como imagens construídas. São simulações aproximadas, cuja ordem e sentido variam conforme o nosso ânimo. No Livro IV, lemos uma longa e bela especulação sobre a visão, o som, o sabor, o cheiro, o tato e, finalmente, sobre as idéias, e suas relações com os simulacros, essas “emanações da superfície da matéria”. Depois dessa teoria das sensações e das idéias, discorre, em belas passagens, sobre o amor e o sexo. No Livro V, reforça a importância dos sentidos para o pensamento:

 

Dos sentidos vê pois que nos dimanam

Da verdade as idéias primitivas.

 

Num sentido mais abrangente, a idéia do ser como fruto e produtor de simulacros nos leva a um questionamento bastante radical. Pode-se dizer que Lucrécio, ao negar a unidade da matéria, nega também a unidade ontológica do indivíduo, fornecida pelos arquétipos ideais, e que atravessou os tempos sob a insígnia cândida e frágil de uma criação do imaginário religioso: a alma. É como se ele nos dissesse que não há matrizes, não há uma Causa Primeira que forma todas as causas secundárias e participa nelas. Se nós, homens, só podemos apreender as coisas por intermédio dos sentidos, é sinal de que não há uma essência que os constitui, a elas e a nós, pois a realidade se esgota em sua simulação. O homem, como todas as outras criaturas, é um ponto para onde convergem forças, movimentos e intensidades que, no entanto, não param nele. Assim, o universo seria regido por uma pura imanência: os fenômenos e os seres não têm uma arché, um sentido platônico ideal que justifique todas as ocorrências particulares. Uma metáfora perfeita para isso seria a de um tecido: cada ponto só existe como tal pela interseção com os outros pontos. Nós, ou melhor, cada uma das qualidades que cremos intrínsecas a nós mesmos é apenas um desses pontos minúsculos nas malhas da Natureza.

Os últimos versos do sexto e último Canto falam de um hábito comum entre os romanos: a incineração de seus mortos. Lucrécio compara-o às antigas imolações aos deuses, e diz que nele, na verdade, não há nada de simbólico ou transcendente. O fogo, ao consumi-los, está pondo fim definitivo às suas vidas. Essa parece ser a alegoria perfeita e ilustrativa de seu pessimismo, para o qual não há redenção possível. Talvez possamos dizer que o fogo seja o elemento principal de sua filosofia, não como genitor de todas as coisas, mas como corolário do ser terreno, do qual ninguém escapa.

Protegido de Cícero, admirador de sua poesia e de sua personalidade, o nome de Lucrécio foi varrido das obras literárias didáticas e das bibliotecas com a instituição do cristianismo, embora alimentasse uma tradição subterrânea que permaneceu viva por toda a Idade Média. Começou a ser reeditado em 1417, e essa é a partir de então a edição príncipe que deu ensejo às demais, muito esporádicas, numa média de uma por século até os dias de hoje. A Igreja sempre manteve um misto de silêncio e repúdio à sua obra. Porque suas críticas à mitologia pagã, à idolatria e à possibilidade da reencarnação poderiam muito bem ser absorvidas pela doutrina católica, mas não o seu materialismo, e isso parece ter obstado a sua incorporação. Os florilégios e gramáticas jesuíticas podiam ter versos picantes de Ovídio e Catulo animando-os, mas não uma sentença do De Rerum Natura. O impacto foi tão grande que em 1747, praticamente dezoito séculos depois da morte do autor, o cardeal Melchor de Polignac publicava o seu Anti-Lucrécio, e bania a figura do poeta romano dos círculos intelectuais. Goethe, em virtude de suas inclinações filosóficas e de seu gosto pelas ciências naturais, era um entusiasta de sua obra. Até que o espírito de Lucrécio, por ironia, renasceu na obra de Paul Valéry. Talvez seja ele quem melhor encarne, na literatura moderna, o caráter reflexivo e as inflexões dramáticas desse autor singular, e isso podemos depreender tanto de sua poesia quanto da sua prosa dispersa, onde o discípulo de Mallarmé expõe uma verdadeira filosofia da forma, relacionando-a aos movimentos da nossa consciência. Lucrécio compôs um teatro animado pelas forças da Natureza, Valéry uma farsa onde a Idéia, a consciência e a linguagem encenam seus papéis e se espelham à revelia das regras dessa mesma natureza.

Hoje, quando temos todo o nosso planeta palmilhado, acumulamos um grande avanço da ciência no campo da astronomia e da física atômica, mas, ao mesmo tempo, estamos cercados de mistificações e crenças das mais grosseiras, é urgente recuperar a obra de Lucrécio, e, mais que isso, revivê-la. Se, dentre os poetas antigos, me fosse dada a tarefa difícil de escolher qual deles considero o mais atual, arriscaria todas as minhas fichas no autor do De Rerum Natura, esse poema em seis Cantos que mal ultrapassa as trezentas páginas, mas que é capaz de criar celeumas religiosas, literárias e existenciais significativas.



A MÁQUINA DO MUNDO

 

[i] LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas. Tradução de Antonio José de Lima Leitão. São Paulo, Edições Cultura, 1941.

[ii] Cf. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo, Edusp, 1996, p. 153-177.

 

 

 

 

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