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Renata Pallottini


 

Finisterrae


Aqui começa o fim
Feito de vento.

Enlouqueceu a bússola
Do tempo.

Naufragam as certezas
Do infinito.

Aqui se acaba o mapa
Nasce o mito.

Aqui começa a morte
Em naves findas .

Aqui começa o medo.
Como um grito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Chocolate Amargo


No mapa imaginário de todas as terras
Aí estás, país do grande sol,
Dos animais gigantes e das árvores sagradas
Terra da cachoeira de diamantes e
Do ouro sangrado

Continente sangrante
Teus filhos adormecem sem saber se ainda vivem
Depois que a liberdade abandonou as tribos
E os deuses de Mahoma, mais os deuses de
Cristo
E os deuses-orixás, mais os deuses perdidos
A ti te abandonaram , doce terra de elefantes,
Macia terra de desertos.

Ninguém te libertou, nem a deusa-Libéria
Nem a cor de Nigéria, de chocolate amargo,
A tua dor não para, ela se exaure em malatías
Em doenças exânimes, de sangue ,
Continente sangrado...

Lutando enlouqueceste e te fizeste algoz
Dos teus irmãos em preto e alma , em negro
E lama
As crianças armaste para despertá-las
Mas elas adormeceram
Como flores cortadas

E aí estão, em ti, carregando suas armas
Brinquedos terminais,
Se suicidando...

No mapa das desgraças, cartografia antiga,
Brilhas em negativo, com teus machos moldados
Homens esculturais, reis de toda corrida,
Reis do jogo e do corpo e da má sobrevida Reis da fuga humilhada
Do trabalho submisso

Escravo bom de sempre, quando te eriças
E empoas teu cabelo e foges para o mato
Buscam-te, seu cavalo, buscam-te, sua mina
Buscam em ti o seu desejo de reaver a serventia
Buscam a mão, a perna, o sexo
A carapinha
Que depois vão negar nas gerações futuras
Com um pé na cozinha...

No mapa dos exércitos, rebrilhas com teu riso
De quem não sabe mais a quem pedir auxílio

Queremos teus diamantes, queremos o teu óleo,
Queremos tua pele, queremos teu sabor
De carne de macaco, de serpente, de água.

Queremos destruir-te para depois chorarmos
A imensa mancha negra que ficará
nos mapas.

Só minha avó, agora, me consolaria
com sua cor romana de pão perfumado.

Só a avó e o pão duro que eu beijo
e o vinho roxo o vinho que me foge
podem me consolar
de haver perdido o jogo
que para todos os demais
para os normais
era só um brinquedo de crianças
a mais.

Ou então, ou então
Talvez a amiga
Que sabe todas as palavras escondidas

Podíamos passear no Cambuci
Lembrando o morro do Piolho e a Bastilha .
Podíamos chorar, se não fosse que ela
Tem pejo de chorar
E se não fosse assim
Já teria morrido de chorar
Decerto.

A amiga está tão longe
No deserto ...

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Márcio Catunda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Lágrimas na cadeira do dentista


Não, não é o dente que dói.
Não, o motor não incomoda.

Não me doem os dentes
mas quem morde.

Nunca o que dói é o aparente
senão o outro, de outra ordem
o oculto na cárie da vida, o tártaro
dos ossos ,
na intempérie incisiva da dentadura mole.

Nunca o que dói, doutor,
é o que fazem as máquinas,
senão
o humano dessas brocas
os buracos
da alma.

Ponha ouro, doutor,
e seja lá o que possa
morder o dente, ávido de amor,
a conta, ao fim, é nossa.

(outono de 2oo4)

 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Paulo de Toledo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

O cão abandonado


O pêlo
ainda espera

mas o olho
pergunta:

se tu não me querias
por que tanta acolhida ?

Vi a porta aberta ,
e era a nova vida
com cheiro de casa.

Como não entrar
nessa cava cálida?

Agora entretenho
meu frio com mágoa.

Por que me deixaste
se não te fiz nada ?

É medo o que sentes?
Medo de ter alma ?

 

 

 

Bernini_Apollo_and_Daphne_detail

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Sergio Godoy

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Primitivo


Eles sabem o centro da madeira.

Os pais passam aos filhos
Segredos de vinho.

O tesouro está neles
Feito lume no álcool.

Te ví quando construías tua casa
(primitiva colheita de castanhas).
Te vi nutrindo filhos
Na mulher que ainda não há.

Elas também conhecem
(mulheres e castanhas)
o centro da madeira
que transformam em doçura.

 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

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Jorge Pieiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Atores
Para o Lauro César Muniz


Vivam todos os atores
Os pequenos e os maiores
Os do palco e os das ruas
Saltando nas pedras nuas
Os que fazem estátua viva
Garantindo a sua vida
Os de cine e de TV
A quem todo mundo vê
E a quem todo mundo nega
(no meio da noite cega
sonhando com seus abraços)
vivam também os palhaços
ventríloquos e acrobatas
gente de todas as datas
e de todas as origens :
machos, lindos, putas, virgens.
Vivam todas as atrizes
As cômicas e as infelizes
Vivam as que não são nada
E também as aclamadas
Vivam as que eu pude amar
E as que morreram no mar
As mais bonitas e as feias
Que ganharam as platéias
Como Fernanda, a senhora
A quem todo mundo adora
Como Cacilda, a rainha
Que deu tudo quanto tinha
E mais: a vida e seu fim.

Os atores são assim.

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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José Inácio Vieira de Melo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Retorno a Ítaca

I
De volta a Ítaca,
Ferido a faca o sentimento
E os sonhos cortados,
O homem avalia as ondas que o conduzem
montanhas
(ninguém sabe a que semelham horizontes).

De longe vê o nada e pensa : será visto ?
Que mulher ainda espera
O homem ingrato ?
Que voto a castidade o infiel reivindica ?

E que merece um homem , semelhante
Aos deuses, sim, mas igualmente impuro ?

II
Já resta pouco tempo
Ao ardiloso Ulisses .
Os pés estão molhados
E pesam-lhe os cabelos.

Ninguém o reconhece
Nem vem ao seu encontro.
Quarenta vezes chama.
Quarenta vezes sua voz exígua
Busca encontrar o caminho da casa.

Ulisses sente a falta de sementes de açúcar.
De súbito, uma sombra
Velho pedaço de manto perdido
Madeira de naufrágio
Surge e de rastos, vem vindo e se agacha;
Fareja-lhe os artelhos
E lambe os seus pés frios.

Um cão, sozinho,
Argos, melhor que os homens,
Eleva o seu amor como uma chama.

O cão responde com o que lhe resta.
Pode Ulisses agora morrer quarenta vezes.
Podemos nós morrer
Frágeis peças de carne.

“A um cão não restam muitas
Maneiras de expressar-se.
Somos úmidos, ásperos e nossa língua
É suja, às vezes.
Urinamos humildemente e nem sabemos
Esconder nossas fezes.

Porem o coração de um cão é primoroso
Com sua profundidade abstrata
E sem contornos.

O coração de um cão é sempre aquele ,
Nunca postergará seu sentimento.

Os restos que lhe atiram
Se é a mão que os atira a doce mão amada
São suaves manjares.
O amor de um cão é sempre insaciável. “

IV
Ulisses, sua face exposta por vinte anos
à face ardente e fluida dos ventos
Encontra um patamar inesperado :

Argos, o cão, pode morrer . Está cumprido.
É difícil, porém, matar um cão para sempre.
Essa fidelidade abstrata volta
Todo dia à lembrança, como um sol.

Voltará quando o amigo o abandone.
Voltará quando o filho o desconheça.
Quarenta vezes volta a dor da traição.

Seu coração no teu, Ulisses,
Pulsará
No mesmo chão.


 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Juscelino Vieira Mendes