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                            Gêmeas eram as senhas das torres gêmeasou
 O Homem limpo de coisas é a medida do Homem
  
                                
                                    Guardo no memorial dos olhos um velho trem, numa tarde de quase sol posto, entre 
                                    Senador Pompeu e Quixeramobim, Ceará, comigo dentro dele. Éramos eu, minha mãe e 
                                    tio (Adaucto), mais algumas centenas de passageiros e outro quase tanto de bichos 
                                    de vasta fauna. Num ranger súbito, lá s'estava o velho trem a se espatifar lá 
                                    embaixo, ali na curva: dez, os mortos. 
                                    Ah, meu caro leitor, se você estivesse aqui agora, veria com seus olhos o meu 
                                    arribar de beiço, fazendo o gesto: "ali", e, com as mãos, a virada do trem, 
                                    pei-pei! Contente-se pois com o meu descrever canhestro e amplie tudo com sua 
                                    imaginação, por favor. 
                                    Uma montanha de feridos, inclusive minha mãe, um galo de sangue na testa, do 
                                    tamanho de um limão, lá nela, tonta e zonza por quase um mês. Eu, uns 16 anos, 
                                    forte como um bicho bruto, ganhei apenas umas boas pancadas nas costelas — para 
                                    aprender a andar de trem! —, mangofava o tio, Adaucto, que ganhara só uns 
                                    arranhões, dizendo que a cerveja o salvara, no que a irmã (minha mãe) 
                                    recriminou: 
                                    — Foi Nossa Senhora, meu irmão, quem nos salvou! — E, ligeira, benzeu-se três 
                                    vezes e três vezes beijou os escapulários bentos. Também por três vezes, 
                                    exigiu ouvir, bem alto, a voz do filho (eu), dizendo que estava bem. Sim, 
                                    estava. 
                                    — Graças a Deus! — e três vezes se benzeu novamente  — ela disse, dissemos. 
                                    Desordem plena no trem. E, em paralelo com o agora, como se o tempo fosse um 
                                    tempo-unitário — talvez até seja mesmo —, dois aviões entupidos de 
                                    trevor-suicidas: o ataque às torres gêmeas do nunca mais. 
                                    Lições? Eis o desafio: o que poderia haver de senhas comuns entre transportes 
                                    tão díspares e gentes tão distantes? Que julgados a elaborar? Dentro ou fora 
                                    dos autos, o quê? 
                                    Não, não havia terroristas dentro do meu. Era apenas um velho trem pacífico, 
                                    da linha Sul, entre Crato e Fortaleza, correndo no mormaço da tarde no 
                                    longínquo ano de 1960. A eles — o trem daqui e os aviões de lá —, comum 
                                    foi-lhes a morte. Também comuns foram-lhes coisas. Porque no trem daqui 
                                    e nos aviões de lá, as pessoas portavam e levavam coisas. 
                                    Já lhe conto como eram as coisas nossas, dentro do trem, naquele tempo. Havia 
                                    os vagões de primeira e os vagões de segunda. Na segunda classe, os bancos de pau 
                                    rústico, de conforto nenhum. Na primeira, poltronas estofadas e escamoteáveis 
                                    de um jeito que botávamos duas frente a frente, ótimas para conversar e olhar. 
                                    Em ambos os graus, de pobre ou de rico, janelas, amplas, fartas, cheias de 
                                    paisagem. 
                                    Um dia, noutras viagens, um menino chegara a se assustar com a estreitura dos 
                                    vergalhões das pontes altas, ainda lá de longe, à curva- precipício, de uma 
                                    certeza de quase não... 
                                    
                                        Por que o senhor engenheiro não botou estas pedras bem pra longe,
 as longarinas e as traves
 da ponte
 — no olho, a trave —
 não as afastou?
 
                                        Riu-se ele do susto: 
                                        — Não vai bater! [foi o que ele disse,
 malicioso, na ponta do lápis].
 
                                        Não consigo confiar — o olho —,
 maldigo a régua
 que poderia
 ter chamado
 bem pra pertinho
 a paisagem, o cordeirinho,
 para pousá-los
 nos paus desta janela.
 
                                        [Soares Feitosa - O trem e o cordeiro] 
                                O problema não era o risco dos varões das pontes altas, calculadas de correto como 
                                garantira o imaginário engenheiro-agrimensor. O problema eram as coisas. Surrões 
                                de rapadura, sacos de farinha, bodetes devidamente engaiolados em cestos de cipós 
                                trançados, chamados grajaus. Porcos, ditos bacorotes, desde que não muito taludos, 
                                à mesma embalagem. Malas, caixas, caixotes, sacos de todo o gênero, achas de lenha, 
                                caibros, ripas, carvão. Baforadas de cachimbos e cigarros de palha; cusparadas 
                                ingênuas dos mascantes de fumo de rolo. Rezas, terços, cegos e cantorias. Tudo, 
                                em suma, devidamente misturado com as gentes, porque aqui, ou pelo menos lá, 
                                aquelas coisas eram uma coisa só: coisas & gentes — nós. 
                                Claro que aquilo tudo não era permitido. O passageiro, da primeira ou da segunda 
                                classes, deveria pelas normas da companhia de trens, despachar a bagagem. 
                                Contudo, por não confiar no "despacho", nem querer pagar nada quando o peso 
                                excedesse o limite permitido, ou ainda para desembarcar bem rápido, sem os 
                                atropelos de esperar bagagens quase sempre extraviadas, ninguém despachava 
                                (nem pagava!) coisa alguma. Sob um consenso mudo, ainda que pesasse em 
                                desconforto contra todos, ninguém reclamava. Nem mesmo os fiscais do trem 
                                diziam nada, eles também gente dali mesmo, compadres, comadres. 
                                No trem da primeira classe não se chegava a ponto de embarcar bacorinhos, bodes 
                                e cordeiros. Mas as malas, as caixas, os embrulhos, os pacotes, tal qual na banda 
                                pobre do trem, lá estavam, em toda parte, no piso, por entre os bancos, em cima dos 
                                bancos, debaixo dos bancos. Até mesmo os cabides, próprios para um chapéu ou uma 
                                toalha, entupiam-nos com rapaduras, queijos de coalho, garrafas de 
                                manteiga-da-terra, fardos de carne-seca, atilhos de avoantes, cestas 
                                de ovos e alfenins. 
                                Janelas! 
                                E o trem no mundo. 
                                Quando, senão quando, nessas mínimas traições do destino, o trem a se desmanchar 
                                ao abismo. Lembro, sim — eu estava lá, dentro dele! — o bicho-trem girando, 
                                virando, louco, manco, torto, virado, morto. Retorcido. No durante, um instante 
                                só, de jamais apagar, eu vi uma quartinha. Sabe o leitor distinto o que é uma 
                                quartinha? Pois já lhe conto, com sua licença: 
                                Ora, a sede, porque afinal, somos da Seca! Naquele tempo não havia essa ideia 
                                de vender água. Parecia-nos bíblica a obrigação de dar, gratuita, a água de 
                                beber, de modo que soaria blasfemo cobrar dinheiro por um copo d'água. Logo, 
                                se não havia água para comprar, quem não levasse a sua, é óbvio, ficaria com 
                                sede. Daí a quartinha. Dita noutros cantos lusófonos moringa, bilha, bulhão, 
                                aqui é quartinha. De barro cozido, vermelha, algumas com enfeites coloridos, 
                                outras com o sinal do oleiro ou arabescos de santidade. Arte!, e cheias d'água, 
                                uns quatro  litros. Pesadas! 
                                Então, por detrás de cada poltrona, tanto nos vagões da segunda como nos da 
                                primeira, a prosaica quartinha, ali, de plantão, e um caneco de alumínio, de 
                                uso múltiplo (para todos!) a lhe tampar a boca. 
                                Primeiro, foi a chuva de canecos, com seus sons de chocalho. Como se os buscassem, 
                                desesperadas por terem sido destampadas assim de surpresa — eu vi, conto que vi, 
                                eu estava lá! — uma multidão de quartinhas aos emboleus, voando atrás dos 
                                respectivos canecos, a se espatifarem rijas na cabeça dos viventes. As malas, 
                                as caixas, os caixotes, e os caixões, como se subitamente enlouquecidos, 
                                voando, caindo, ferindo, matando. Os animais de asas, também os de quatro pés, 
                                súbitos papagaios, galinhas, araras, perus, pebas e teiús, em fuga por entre os 
                                moribundos. Ah desassossego! Bodes, carneiros, porcos, ovos, farinhas, bolos de 
                                feira e muita água a espoucar das quartinhas. 
                                Contamos os mortos, dez, e socorremos os vivos, muitos. Ninguém esmagado. Os 
                                mortos e os feridos foram-no sob a grossa pancadaria dos OVPIs, Objetos Voadores 
                                Perfeitamente Identificados: coisas. 
                                Depois, me mudei do velho trem para os aviões de carreira. Porcos, patos, bodes, 
                                perus, não, nunca os vi na cabine de um avião. Contudo, um gato maracajá conto 
                                que vi. Era um militar que retornava da selva numa época em que nem se pensava 
                                em proteger bicho feroz. Trazia de lembrança ao filho pequeno aquele filhote de 
                                fera. Solto. Era novinho, mas taludo o suficiente para uma boa unhada. Manso, 
                                todavia. Ninguém lhe opôs um pio: o dono do gato, fardado de oficial, jovem e 
                                garbo. Por cima, os tempos eram de chumbo. 
                                Pecado meu, sou doido por gatos. Entre a repugnância do gesto em si — trazer um 
                                bicho selvagem ali entre os passageiros — e a beleza mesma do gato, desempatei 
                                pró fera. Acarinhei-o como se fosse a uma criança pequena. [E se fosse uma 
                                serpente...? E... se a farda do oficial fosse falsa?] 
                                Voltemos ao trem, por favor. Em poucos minutos, uns caminhões de carregar pedras 
                                que trabalhavam no trecho, muitos, encostaram e subimos neles em direção à cidade, 
                                Quixeramobim, uns 10 quilômetros, não mais. A cidade esperava-nos. Puxavam-nos à 
                                hospitalidade. Os mortos, devidamente encaminhados em rezas; os doentes ao modesto 
                                hospital; os demais, às casas da cidade. Tocou-nos uma casa de negros. Não, não 
                                eram ricos. Gente modesta, não lhes guardo os nomes — afinal, eu era apenas um 
                                adolescente —, e a quem poderia perguntar, mãe e tio, cum Christo sunt. 
                                Um parêntese sobre as "coisas": basta proibir que os viajantes de avião levem 
                                coisas. Nenhuma bolsa, nem maleta, nem frasqueira, nem estojos de barbear. Nada! 
                                De mãos abanando. Nem livros, que dentro de livros cabem lâminas, revólveres, 
                                pistolas. O homem limpo de coisas é a medida do homem. 
                                Quem viaja de avião sabe o transtorno do monte de pacotes, maletas, berimbaus, 
                                embrulhos que muitos carregam. É o sufoco de acomodá-los nos gavetões, sem caber, 
                                que atrasa o embarque ou desembarque. Se o trem meu e o avião dos americanos 
                                viajassem sem "coisas", não teríamos morrido tantos. Volto, agora, aos negros. 
                                Qualquer descrição que tente fazer daquela hospitalidade será pura blasfêmia. 
                                A água para lavar os pés, as mãos, o rosto, que esse negócio de banho à toa não 
                                é coisa com que se gaste água assim sem mais nem menos. As redes e os lençóis, 
                                modestos mas limpos. E o riso amplo. Alvar! 
                                Desconfio que foi ali, naquela casa de negros, que me dei conta que os livros, 
                                muitos, de Agassiz a Sílvio Romero, estavam completamente errados. O Homem é único. 
                                Isonômico. Árabe, judeu, nórdico, nordestino, negro, mulher, tanto faz: Homem. 
                                A isonomia absoluta. Não é apenas uma isonomia-perante-a-lei; é ela pura, total, 
                                sem adjetivos: à face do Homem! 
                                No dia seguinte, depois do café com tapioca, ali, quentinha, feita pela dona da 
                                casa e filhas; o pai a nos animar em boa palestra — e palestra de nordestinos 
                                obviamente passa pelas chuvas vindoiras — fomos todos levados à praça da cidade. 
                                Lá, uma placa de loja que já nem lembro o que vendia. Guardo-a no memorial dos 
                                olhos: um nome incomum nesta selva de Silvas, Oliveiras, Franciscos, Raimundos — 
                                era Skeff. 
                                Se ele, o dono da loja, é judeu, se é árabe? Peço até que ninguém nunca me conte. 
                                Tanto faz! Se é ele parente do Bin Laden, primo do Saddan, sobrinho do Ariel? 
                                Cunhado do Sharon? Pois o tal Skeff, que não lhe sei o primeiro nome, junto 
                                com os cidadãos daquela pólis grega implantada no sertão, partilhavam, ali, 
                                àqueles aflitos, aquela mesma sofreguidão de servir, dos negros, da noite 
                                bem-dormida — eu, a mãe, o tio. Era a única possível... a face de Deus ... 
                                no... Outro. Qualquer um, Deus, e todos ao mesmo tempo, Deus, incluso (e 
                                sobretudo) o Não-Acreditado. 
                                Ah, ia esquecendo: os livros e as revistas do avião já estarão lá dentro. 
                                Escrevo uma ficção (Salomão) em que um prisioneiro do Carandiru (em cima de 
                                fatos reais) funda uma Biblioteca a ser inaugurada na noite do Século Cem, de 
                                Ésquilo. Os livros do senhor Bibliotecário Djalma, meu caro Skeff, esperam por 
                                ti —  sob todos os nomes e raças que possas ter, porque Todos é o meu nome, 
                                porque Todas é a minha raça —  na noite súbita do Século Cem, de Ésquilo!   
                                        Fortaleza, Ceará, Brasil,16.9.2001, 5º dia a contar da queda das torres gêmeas
   
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.   
                                    Este, o 2º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, 
                                    participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, 
                                    a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: 
                                    abrir o debate, uma multivisão.  
                                    — Livro vivo, como assim? 
                                     
                                    — Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo 
                                    como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta 
                                    ordem alfabética. Seja bem-vindo! 
                                    
                                    POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas  
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.     
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.   Anterior: Dedicatória Próximo: Nunca direi que te amo   
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.   
                                Comentários: 
                                
                                ANA LUISA PELUSO: Depois do Hélio, do Willer, do amigo Di Cavalcanti, entro 
                                eu com meus devaneios ao que me remeteste. Se eu falar de sua obra como um todo, passarei a tarde sentada aqui, escrevendo, 
                                porque para mim, de longe é o único escritor também presente na web, com uma 
                                proposta (não seria bem esse termo) nova. Talvez o correto seja “colocador de 
                                palavras e situações”. Ontem meu irmão e eu lemos juntos “No céu tem Prozac” 
                                (eu pela enésima vez, ele pela primeira) e nos arrepiamos com seu canto. 
                                Ele pela primeira vez, eu pela enésima o que me fez verter água dos olhos. 
                                Ele jogou o corpo para trás na poltrona do escritório (coisa que ele sempre 
                                faz, quando algo atinge seu coronário).
 É isso, seus escritos são cantos! Como o teatro do Zé Celso. Com Bacantes e 
                                Dionísio vindos de todas as partes. Vi uma Bacante despencar das gêmeas 
                                gritando às cabras do pasto que Dionísio vencia a guerra. Vi um infante no 
                                trem, sabendo que os deuses são ímpios.
 Vi um teatro de realidade cantado, porque em cada verso de seu texto há o 
                                que encanta, cantando.
 Você, Francisco, meu amigo, meu poeta, é mais do que escritor. É escultor 
                                de cenas.
 Digo das torres, o que senti: contemporâneo no acontecimento, antigo na 
                                intenção de homens que não prestam muita atenção ao que fazem da vida.
 Para isso há de existir um certo Francisco, dito Feitosa, pelos feitos e 
                                pela glosa, que nos mostre, senão caminhos, mas nos conte dos atalhos que 
                                homens tomam em favor da própria preguiça/inércia diante de fatos sociais 
                                arrasadores.
 Sim, há de ter. E calo-me, pensativa diante da narrativa do susto e dor 
                                diante do choque do trem. Diante dos choques anormais de gente contra 
                                gente, nesses novos tempos, que sequer em número não são novos. Lá se 
                                vão dois mil e um anos, fora os incontáveis pelos cristãos, e Nero ainda 
                                tasca fogo em Roma.
 Com o respeito, o carinho e a admiração de sempre, 
                                Ana Luísa
 
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                                    CLAUDIO WILLER: Feitosa, esplêndida prosa. A abordagem mais original, 
                                    menos cabeça de jornalista ou de professor universitário, de tudo o que 
                                    foi escrito a respeito. Quando eu digo que não é coisa de jornalista, 
                                    sociólogo, politicólogo, qualquercoisólogo, é que é o único texto que 
                                    situou isso tudo em uma perspectiva propriamente humana, escrevendo feito 
                                    gente e não feito profissional que domina algum repertório especializado. 
                                    Abrs, Claudio Willer
 
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                                    FLORIANO MARTINS: Gosto muito dessa maneira autorreferencial do que escreves, 
                                    esse grande achado do estilo, de estar por vezes remetendo ao já escrito por 
                                    ti mesmo, um fragmento do já escrito, dando circularidade à escrita. Abraxas. Floriano
 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    GUILHERME NETO: Questiono-me, no primeiro registro da coluna, por que os 
                                    amigos me querem cantando novamente. Agora, “arengo” comigo mesmo por 
                                    permanecer escrevendo. É que acabo de receber “Gêmeas eram as senhas das 
                                    torres gêmeas” ou “O homem limpo de coisas é a medida do homem” – prosa e 
                                    poesia – de Soares Feitosa. Leio e releio as cinco laudas e meia. 
                                    Envaidece-me a distinção do amigo. Há que se ser teimoso para continuar presente neste espaço. Meus 
                                    agradecimentos, caro amigo. [“Diário do Nordeste”, 30.9.2001]
 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    HELIO POLVORA: Parábola.  Feitosa, li com agrado a sua parábola sobre a destruição 
                                    das torres do capitalismo predador e o desastre de trem em que viajava um menino 
                                    imaginoso, no Ceará de 1960. E comprovei que de fato o homem é isonômico, tanto 
                                    faz o Mr. Bush quanto o Bin Laden, o Gandhi ou o judeu da prestação. 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    ILDASIO TAVARES: Poeta Feitosa. Danado, tu, danado, captando as analogias, 
                                    construindo e reconstruindo o real quer seja Ceará, quer seja NY, buscando lá 
                                    no fundo o seu sentimento comum à Humanitas de Cícero, de Sêneca; tu é o cão, 
                                    Poeta Feitosa! Abraços. Ildásio 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    IVO BARROSO: Caro Soares Feitosa, desculpe o atraso com que falo de sua 
                                    admirável prosa, mas o entusiasmo ainda é o mesmo ao fazê-lo agora. Não 
                                    poderia deixar de cumprimentá-lo pelo estilo ao mesmo tempo enxuto e sensível com 
                                    que você escreve sobre assunto tão difícil. Abraços do Ivo Barroso 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    J. ROMERO ANTONIALLI:REMOENDO…  “AS SENHAS DAS TORRES GÊMEAS”
 Poeta amigo: Um convite teu seria intimação... É com prazer, é com 
                                    zelo, é com cuidado, que o acolho. E tomei a mim o desafio. O Hélio 
                                    Pólvora  (haja senha no nome!)  acendeu o rastilho. Parábola, disse 
                                    ele.
 E pus-me a averiguar. Mas, antes, umas palavras mais ... íntimas. 
                                    Intimantes. Não sou psicômetra. Sinto, entretanto, em tuas palavras 
                                    parcas e fartas, um halo de algo não dito e muito profundo. E aqui as 
                                    palavras falecem. Ah! as senhas!
 Chamaste-me Romero amigo. Caminheiro amigo. Companheiro de jornadear. 
                                    Sou-o. Fui-o.  Sou-o. Somos amigos antigos, muito mais antigos do que 
                                    permitem, permitiriam, supor as barreiras do cartesiano tempo. Senti-o, 
                                    num momento de insight-comoção. Assombras-te, como eu, diante da 
                                    inesgotabilidade do Verbo! Viajas, mais desimpedido do que eu, nas 
                                    cascatas de luz! Comoves-te, como eu, na fímbria dos abismos de caos! 
                                    Glorificas o UM, como eu, na contemplação dos torvelinhos de sombraluz! 
                                    A emoção, quando é grande e autêntica, a tudo se impõe. Precisava falar-te 
                                    nesses termos. Hoje. Voltando ao trem, às torres. Para além do teu jeito 
                                    gostoso de falar-escrever, em que não me deterei  (não hoje), gostaria de 
                                    fazer algumas reflexões tíbias sobre o que li e reli... Uma e muitas 
                                    vezes. Senti-me o caçador das senhas perdidas.  Perdidas?  Veladas... 
                                    Distribuídas fartamente. Holograficamente. A partir desse entendimento, 
                                    pode-se fazer uma tabela analógica, unindo o trem e a ponte de um lado 
                                    e os aviões e as torres do outro.  De um lado o singular, o simples.  
                                    Do outro, o plural, o complexo.
 E isso impresso em um vívido painel unificado pelo tempo-unitário. 
                                    O mesmo drama, os mesmos motivos, a mesma explicação:  o coração ácido 
                                    do homem. Antes de começar, alguns momentos, algumas maravalhas de 
                                    sombraluz. – “tempo-unitário” –  “dois aviões entupidos de trevor-suicidas: 
                                    o ataque às torres gêmeas do nunca mais.” – “Lições? Eis o desafio:  
                                    o que poderia haver de senhas comuns entre transportes tão díspares e 
                                    gentes tão distantes? Que julgados a elaborar? Dentro ou fora dos autos, 
                                    o quê?” –  “Não, não havia terroristas dentro do meu.” –   “ – no olho, 
                                    a trave –”
 – “Não consigo confiar  – o olho  – maldigo a régua” –  “Por cima, os 
                                    tempos eram de chumbo.” –  “Se o meu trem e o avião dos americanos viajassem 
                                    sem 'coisas', não teríamos morrido tantos.” –  “Era a única possível... a 
                                    face de Deus... no... Outro.  Qualquer um, Deus, e todos ao mesmo tempo, 
                                    Deus!, incluso o Não Acreditado.” O tempo unitário! Que rege peças 
                                    diferentes (?) com um mesmo moto: as “coisas” por detrás... As mesmas 
                                    coisas, as mesmas cousas, as mesmas causas, travestidas a caráter, para 
                                    diferentes mesmas tragédias... “Se o meu trem e o avião  dos  americanos  
                                    viajassem sem 'coisas'...”.
 “O homem limpo de coisas é a medida do homem”. O homem sem acúmulo de coisas, 
                                    de causas que se agregam a si e que buscam uma explosão em efeitos. A causa, 
                                    as coisas: “Porque  (o grifo é meu) no trem daqui e nos aviões de lá, as 
                                    pessoas portavam e levavam coisas”. “Que julgados a elaborar?”. A causa, e 
                                    então o juízo, e o julgado (a coisa julgada) e o efeito. E o juízo é justo, 
                                    equânime, equalizador. Isonômico. X = X. Dor = Dor.  Dor como causa, dor como 
                                    efeito. Morte = Morte. Morte recebida? Morte plantada. Terror recebido? Terror 
                                    semeado. O depois buscando inexoravelmente o antes  no impulso espontâneo da 
                                    justiça. Da Justiça. Não há inocentes. Não há culpados. Não há ofensores. Não 
                                    há ofendidos. A vítima é o terrorista; o terrorista é a vítima, só que ambos 
                                    se esqueceram disso. Desse pacto trevoso. Não há inocentes. Não há culpados. 
                                    Há as “coisas” e a senha universal e intransgredível da coisa: a mesma coisa. 
                                    Nada mais, nada menos. Em verdade. O homem, isonômico. Regido pelas mesmas 
                                    leis. A lei de um é a lei do outro. Não há tergiversar...  A lei do bandido 
                                    é a lei do herói: o bandido é o herói;  o herói é o bandido. O palco muda, 
                                    mas conserva a senha básica, a peça a mesma, os papéis se alternam, numa 
                                    tendência à perpetuação... “Quousque tandem”, POTESTAS, “abutere patientia 
                                    nostra?” Não há tergiversar. Ninguém pode se eximir. Ésquilo deu a senha: 
                                    o sofrimento humano traduzido como responsabilidade total e inarredável 
                                    do homem, que pela culpa  (hybris) (= o ter sido causa) atrai o castigo 
                                    divino (o efeito correspondente à causa). Esse tema da responsabilidade 
                                    total em tudo, por tudo, explicaria muita coisa que passa por nebulosa na 
                                    existência do ser humano. “Ele era tão bom...  Por que tanto sofrimento? 
                                    Onde está a justiça divina?” Quem o pergunta, já o diz. Essa a lição da 
                                    responsabilidade. Ela nos diz que todo ser é responsável por tudo que lhe 
                                    acontece. E por mais ainda, se maior é a envergadura do espírito em ação... 
                                    Mata toda tentativa de autojustificativa. Pela raiz. Mas difícil coisa é 
                                    deixar de dar impulso à roda da alternância cármica... Mais fácil é promover 
                                    uma cruzada, dar uma de herói. Quixotesco. Como todo herói... desse jaez! 
                                    Mais fácil é escandalizar-se pelas coisas do outro e (tentar) ocultar as 
                                    mazelas da própria alma... CAUSA —» EFEITO TERROR TERROR Hiroshima, ETC. 
                                    WTC, ETC. O ETC (e Hiroshima), ainda à espreita. E atuará, se não for 
                                    lavado pelo perdão, pelo gesto de misericórdia! CAUSA  —» EFEITO
 O pavor-porta – O pavor do desastre consciência coletiva do menino. 
                                    “Não, não havia terroristas dentro do meu (trem)”.
 Mas havia o susto, o pavor, o terror (profético) do menino...
 E há o carma coletivo, e há o carma individual, e ambos se conjugam 
                                    no desdobrar-se do efeito... que chega envolto em alienante amnésia...
 No sertão, holograficamente transplantada, uma amostra do mundo, do mundo-cão, 
                                    do mundo-são. O trem e o seu carma.  O homem bom, lhano, e o seu coração. 
                                    Mas o sertão é diferente. O sertão, o deserto do coração do homem, é 
                                    diferente: nada tem a ver com WTC...
 Ali, o negro, de coração puro, de gestos lhanos, fraternalmente acolhedores... 
                                    Ali, o oriental  (de que banda do Oriente? Da do Sharon? Da do Sadam? Da 
                                    do ...?  E isso importa?)  com “aquela mesma sofreguidão de servir”... 
                                    Ali, o Oriente e o Ocidente iluminados por uma mesma luz... Onde isso? 
                                    No sertão, no deserto do coração homem, limpo de coisas, de cousas, de 
                                    causas. Pesadas. Pesantes. Pesares. Causas, só as leves: as do sorriso, 
                                    as da acolhida, as da simplicidade, as da sofreguidão de servir. Nunca 
                                    no brilho tredo dos ouropéis! Nunca no burburinho enceguecedor dos 
                                    cifrões! Nunca no espírito tacanho da vindita, da retaliação! Nunca 
                                    na face satânica do PODER, do póDER!... Fico a pensar se as torres 
                                    não ficavam, uma a oeste, outra a leste... Seria isso uma bruta duma 
                                    senha, não é, meu caríssimo Feitosa? Agora, arrematemos essas 
                                    considerações sobre  o teu instigante conto-crônica-poema: “GÊMEAS ERAM 
                                    AS SENHAS DAS TORRES GÊMEAS”
 ou
 “O HOMEM LIMPO DE COISAS É A MEDIDA DO HOMEM”.
 Aí, magistralmente, tu guardas as senhas identificadoras...  
                                    e a carta de navegação... O título é a chave. Não pode haver 
                                    maniqueísmos, não pode haver parcialidades. Para o cronista do 
                                    tempo-nenhum, para o cronista do holotempo. Torres duas. Torres 
                                    duais: feitas de corações limpos (que em todo lugar os há); feitas 
                                    de cifrões, que comandam torpemente o mundo. Não há heróis.  Não há 
                                    bandidos. Só há heróis. Só há bandidos. Eternamente alternantes. Para 
                                    arrematar: A questão do olho! A trave no olho. O olho travado. O olho 
                                    limitado, ultralimitado. O olho relativo, sujeito às leis da perspectiva... 
                                    amesquinhante. Hora de alforria! Agora ou nunca! Agora ou... agora! 
                                    (Estou aprendendo, meu caro amigo,  ainda que canhestramente, navegar 
                                    nos teus [desafiantes] mares... Estou!, não?) Do amigo e admirador de 
                                    sempre, Romero.
 
 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    LUCIANO MAIA:  Poeta, obrigado pelo envio do teu ensaio-conto-ponto crítico. 
                                    Bin Laden? Ariel Sharon? Pouco importa, como tu bem referes. Porém muito importa 
                                    o registro – variado, rico – que fazes dos eventos trágicos (e rotineiros...) da 
                                    vida. Abraços do Luciano Maia 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    JOÃO BATISTA SILVA: Caríssimo poeta SF, “Nova Iorque e Quixeramobim“, 
                                    só a isonomia absoluta e sua poesia surpreendente para tornarem semelhantes 
                                    os humanos de lá, de cá e alhures. (O homem limpo de coisas é a medida do 
                                    homem). 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    JOSÉ P. DI CAVALCANTI JR: Caro amigo. Comovente. Um texto mais que necessário, 
                                    quase concreto porque construído como escultura. Quisera receber sempre 
                                    “zonzeiras” assim. Primeiro, obrigado pela deferência e pela generosidade de 
                                    incluir-me entre os destinatários. Em seguida, não deixe, por favor, de mandar-me 
                                    sempre textos assim, belos, comoventes, essencialmente bem escritos. Há trechos de 
                                    fazer com que, mais que marejados, a gente traga olhos de sol-pôr com pássaros 
                                    exaustos mas felizes pousados nos bordos. Noutros, eu pensei perceber o quimérico 
                                    lugar do encontro do sol e da lua. Ansiei o tempo todo pela conclusão; fiquei 
                                    apreensivo porque queria ver como você concluiria. Valeu a pena. Parabéns e 
                                    obrigado. Um grande abraço; perdão se não respondi imediatamente, mas li e reli, 
                                    e reli, e reli... (o que farei novamente, tenha certeza). Di 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    NELLY NOVAES COELHO: Caríssimo e sempre lembrado Poeta. Há quanto 
                                    tempo não tinha notícias suas! Há pouco voltando de mais uma das milhentas 
                                    viagens que fiz neste ano, encontro o seu texto sobre o acidente vivido na 
                                    adolescência e o comparando com a catástrofe mundial da destruição das 
                                    Torres Gêmeas, símbolo maior do poder do Dinheiro, que tanto bem e tanto 
                                    mal vem fazendo no mundo. E o que é mais terrível: aprofundando cada vez 
                                    mais as diferenças entre os homens! Tens razão: “O Homem é único. Isonômico, 
                                    árabe, judeu, nórdico, nordestino, negro, mulher, tanto faz: Homem. 
                                    A isonomia absoluta. Não apenas uma isonomia-perante-a-lei; é ela pura, 
                                    total, sem adjetivos: à face do Homem!”. Na verdade, estamos tendo o 
                                    privilégio de viver numa época em que é facilmente percebido o fim de 
                                    uma Era que foi fantástica e abriu amplos espaços para a inteligência 
                                    do homem... E deu tão certo que criou um outro homem que já não cabe nos 
                                    limites em que foi criado e está abrindo novas veredas, a torto e a 
                                    direito... Como será o homem do futuro? Minha imaginação não ousa 
                                    pressenti-lo... O que se sente é que estamos entrando numa grande bolha 
                                    de realidade virtual... que se passa a impor como realidade concreta. Só 
                                    os poetas podem falar. Podem falar, agora e durante muito tempo ainda. 
                                    Com o abraço amigo da Nelly 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    PEDRO NUNES FILHO: Caríssimo Poeta Feitosa: Ao retornar do trabalho, 
                                    como de costume, apanhei a correspondência e subi. Não havia ninguém em casa. 
                                    Jantei sozinho. Galinha de capoeira ao forno e arroz branco, bem branco mesmo, 
                                    como eu gosto. Depois, sem me levantar da mesa, peguei sua correspondência. 
                                    Não foi preciso abrir porque o envelope já estava aberto. Creio que para não 
                                    assustar ninguém. Ávido como quem abre uma lata de goiabada Pesqueira, 
                                    retirei do envelope seu texto. Foi a sobremesa. Li-o com sabor. Sem parar 
                                    nem para refletir. Tudo que você escreve é muito original. Do vocabulário 
                                    utilizado à construção do texto.  Impressiona-me a capacidade de perceber 
                                    o que há de singular no mundo. Coisas que aparentemente não têm importância 
                                    ganham um significado profundo no seu texto. É justamente essa maneira 
                                    diferente de perceber o mundo que lhe faz um escritor. A espontaneidade 
                                    com que fala das coisas do dia-a-dia torna sua linguagem simples, bonita 
                                    e de leitura prazerosa, muito agradável mesmo. Há um aspecto que me encanta 
                                    em você, como escritor: a capacidade de ligar e interligar fatos e universos 
                                    distantes. No mundo tudo foi sempre interligado. Por isso, as escolas hoje estão tentando 
                                    juntar os conhecimentos que nunca deveriam ter separado. É preciso fazer uma 
                                    tentativa de preservar o fenômeno humano profundamente ameaçado no labirinto 
                                    da alienação existencial, na separação do saber especializado, no egoísmo das 
                                    atividades progressistas e produtivas. É preciso a escola esboçar uma reação 
                                    à fragmentação do saber para resgatar uma visão interdisciplinar do mundo. A 
                                    fragmentação separa as partes do todo, de uma forma brutal.
 Você sabe juntar o trem velho que descarrilou serra abaixo com o episódio 
                                    das Torres Gêmeas. Aparentemente uma coisa não tem nada a ver com a outra. 
                                    Mas é só aparência. Tudo tem relação com tudo. Basta ter capacidade de 
                                    enxergar o TODO. No fundo, o que atrapalha mesmo o homem são as coisas ou 
                                    o arraigado apego às coisas. Não há dúvida de que é necessário o homem se 
                                    libertar das coisas para viver melhor e ser um pouco mais feliz.
 O que está acontecendo no mundo é uma prova de que há algo profundamente 
                                    errado. É preciso resgatar as coisas do pé da serra para compreender o 
                                    mundo. Você sabe fazer isto melhor que ninguém.
 Sim, ia esquecendo de dizer que texto bom é como doce de coco. A gente lê 
                                    e fica querendo mais. Terminei de ler o capítulo que me mandou e fiquei 
                                    procurando se não continuava no verso. Quando percebi que tinha mesmo 
                                    terminado, aí parei para pensar. Fiquei quase uma hora sentado à mesa, 
                                    sozinho, pensando em tudo que você havia dito. Texto bom é aquele que 
                                    provoca reflexão no leitor.
 Parabéns! Pedro Nunes
 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. 
                                
                                    TERESA RIVERO: Soares Feitosa, gostei das janelas amplas, fartas de 
                                    paisagem. Aí se resumia o mistério do trem. Obrigada! 
                                .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. |