Adolescíamos

Esta névoa do chocolate
quente;
muito mais, Ela
do que a filha do circo,
bonita:

era um dia, domingo e suas vestes,
enquanto as nossas mães conversavam,
nós nos recostávamos à máquina de costura,

Singer, a velha máquina —
se não tínhamos um piano;
quando me dei conta,
suavemente eu lhe olhava os cabelos,
que também lhe olhava
rapidamente os olhos calmos.

Se algum gesto foi feito à tesoura
era apenas um disfarce:
nada haveria de nenhum corte.

E se confundem todas as luzes
numa névoa fina
de xícara e cálice:
Mirtes —
adolescíamos.

 

Fortaleza, noite alta, 8.2.1999

 

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Este, o 12º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ADRIANA BERNARDI: Que lindo é “Adolescíamos”, não? Que coisa... Outra vez a música de fundo o acompanha... como nos outros versos seus... mais suave talvez… mais lúdica… que bonito, meu amigo… que bonito! Singelo… de um frescor lindo… quase reconheço a Mirtes perambulando, graciosa que só, nas ruas durante o dia… Tantas Mirtes existem por aí, não??? Mas… ah, que lindo!!! Me trouxe de volta o cheiro da adolescência… os sonhos dali, já agora outros… os sons, o mundo ainda encoberto e por isso mesmo tão mágico… facinho, facinho de ser conquistado, né??? – risos – Êhhhh, Feitosa… mais uma emoção que lhe devo.

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BEATRIZ FERNANDES: Algumas coisas mudam: A névoa do chocolate quente agora é a fumaça do cigarro ou o ar poluído das cidades.... As mães trocam-se em pessoas barulhentas, maridos ciumentos, simples testemunhas inconscientes, Singer, a velha máquina – agora um piano, uma mesa, um apoio qualquer. Outras coisas permanecem: olhar os cabelos, olhar os olhos, os gestos disfarces.... Caro Feitosa, adolescemos sempre. Mas só você consegue nos mostrar. Lindíssimo. Bia

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CRISTINA BITTENCOURT: Soares Feitosa: elegante e suave - nos raros momentos que temos desse fogo desordenado crescendo aos borbotões, suando, trepidando, adolescente. Cristina

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DAVID MEDEIROS OLIVEIRA: Feitosa, adorei... Ainda mais hoje, que é um dia de domingo; um domingo tão perto de minha adolescência. Interessante como as figuras da máquina e da tesoura dão vida a suas palavras. Parecem cenas de um curta. É isso! Um poema-roteiro. Prova maior? Como você mesmo diz, Poeta, espiemos:

“Singer, a velha máquina
– se não tínhamos um piano;
quando me dei conta,
suavemente eu lhe olhava os cabelos,
que também lhe olhava
rapidamente os olhos calmos”

Luzes, gestos, névoas... são palavras ou imagens? Nossas lembranças são (principalmente) imagens, não palavras. Você as resgatou. E como. Forte abraço, David

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DAVINO RIBEIRO DE SENA: Névoa do chocolate quente: primoroso! Davino

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FLORA FIGUEIREDO: Caro Soares Feitosa: ao chegar em casa após vários dias ausente de São Paulo, vejo-me premiada pelos seus textos, que roubam a cena e nos dão o alento de saber que a boa Literatura ainda é possível. O poema “Adolescíamos” é ternura pura e nos remete à inocência há tanto esquecida. Faz ranger saudades nos pedais da velha Singer. Feliz por estar entre os merecedores de sua palavra, estarei sempre atenta à procura de outras “noites altas” e “tardes leves”. Receba meu aplauso e meu carinho. Flora

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JOÃO CARLOS DA SILVA: Um dos mais belos poemas que eu já li: “Adolescíamos”.

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JOCA DA COSTA: Quisera o cálice, farto de bebida límpida e forte, daquela que afrouxa a alma, e tua companhia na leitura, compadre Feitosa. Os silêncios de teus poemas ribombam! Joca

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MARIA DA GRAÇA ALMEIDA:
Dia frio,
do chocolate,
o vazio,
da adolescência,
também.

Saudade,
calor que arde
dentro de uma xícara
do laticínio
tardio.

Lindo!

Chego a perceber
os passos moribundos
da velha máquina
e, do outro lado,
bem cerzido,
o retrato da menina,
abotoado.

Maria da Graça Almeida

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MARILIA MESQUITA GUEDES PEREIRA: Parabéns, poeta. Belíssimo Adolescíamos!

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PAULO DE TARSO PARDAL: Caro poeta Soares Feitosa, “Adolescíamos” já é poesia pelo título, um sugestivo e bem-achado neologismo de que vai partir toda a recordação de um ser sem mágoas de outros tempos, principalmente aquele em a descoberta do amor, é pedra fundamental para o entendimento de que a vida não precisa de explicação, mas de sensibilidade para se enxergar, nos pequenos gestos, o verdadeiro sentido dela. Este é o tempero fundamental para que poetas, como você, transfigurem o real em algo que só eles enxergam. Cada vez mais, convenço-me da imensa responsabilidade que os poetas da vida pós-industrial carregam nas costas. Fazer poesia é algo muito sério, que precisa ser trabalhado com responsabilidade temática e com domínio linguístico. Essencialmente, acho que a poesia das coisas está no preciso olhar do poeta e na cunhagem exata da linguagem. Neste poema, há tudo isto, além da clara visão madura do ser que está por trás dele. Os versos “Se algum gesto foi feito à tesoura/ era apenas um disfarce” (acho que aqui está a alma do seu poema) deixam uns sugestivos vazios na semântica do texto que instigam o imaginário do leitor, o que demonstra que você tem consciência de que o leitor pós-moderno é um ser necessariamente participante do poema. Esta, talvez, seja a condição mais essencial da poesia de hoje. Foi muito bom ler este seu poema. Gostaria de ler outros do mesmo quilate. Um grande abraço. Pardal

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REGINE LIMAVERDE: Que encanto de poesia, Feitosa. A fumaça é um pano de fundo para os sonhos. E o chocolate é doce na nossa boca. A paquera é açúcar para nossa alma. Que lindas pontes você faz entre o gesto e o ato, entre o pensar e o agir, entre o olhar e o sonhar. Gosto de sua poesia. Regine

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REMISSON ANICETO: POÉTICA me surpreende, como dizem quando nada deixamos escapar, "de cabo a rabo" ou "de fio a pavio". Até mesmo porque após ler "Adolescíamos", creio na impossibilidade de o leitor que tem fome e sede da palavra lapidada e servida com a nobreza que ela merece, não continuar a pedir e a degustar todas as outras porções do livro. Os textos de POÉTICA revelam pra muita gente um poeta que mistura com a sutileza de um gênio a prosa com a poesia, revelando um escritor que não só flerta com a literatura, mas que com ela nasceu casado, vive, convive e a compreende e a respeita. Neste apanhado de textos, Soares Feitosa diz o que sabe e sabe o que diz -- e diz como poucos saberiam dizer sobre a arte da sedução através da poesia, da crônica, da escrita e da leitura na sua melhor tradução. Eu devo admitir que fiquei sim bastante emocionado com a leitura, só não fiquei mais porque já sabia da competência do autor, por tudo que já li dele há muitos e muitos anos, no saudoso JP, jornal com aquela característica faixa vermelha vertical no canto da página. Ah! também preciso dizer da máquina Singer, que me reportou a uma antiga fazenda e a uma pessoa lá nos cafundós de Minas. A fazenda já morreu, nem destroços há onde ela ficava, mas permanece muito real, vivíssima na minha lembrança, por conta da pessoa que, apesar das dezenas de anos passados, permanece a mesma criatura encantadora, jovem e linda, viva e me fazendo continuar vivo. Um abraço, Feitosa. (Face, 01.07.2023)

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ROSANA PICCOLO: No meio de tanto lixo, encontro um diamante! A “máquina de costura” é um tema que me enternece. Tenho em casa uma Singer antiquíssima, herança da avó, que uso até hoje e funciona muito bem. Venho de família de costureiras, pude ver a cena. O que não sabia é que você é um poeta magnífico. Faço questão de ler mais.

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RUTH DE PAULA: Te descobri por “adolescíamos”! Até bem poucas horas não havia lido nada seu ou sobre você, nada; juro! Comecei a ler o jornal por sugestão de um poeta amigo meu, e de vez em quando via Pessoa, Adélia, Cecília, Ana Cristina César e Augusto dos Anjos. Poxa, domingo, numa daquelas horas mornas foi quando li pela primeira vez um poema teu, “Adolescíamos” e aí... A forma como o poeta fala sobre o encantamento pela Mirtes e a intensidade do encontro é tão forte, cortante como a tesoura que serviu de adereço. Digo adereço, pois deixou a cena mais cortante, a paixão mais sangrenta, própria da adolescência. O verso que toca na relação olho/cabelo, cabelo/olho traduz o jeito especial de falar do corpo. Percebo também com alegria que você trata o feminino com o maior conhecimento de causa. Interessante isso! Não é muito fácil compreender o universo feminino; temos movimentos sinuosos, caminhos tortuosos, rimos da dor, choramos de prazer...

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WENIO PINHEIRO ARAÚJO: Soares: Este poema é “.............”, algo indizível. Qualquer coisa que eu escreva será uma tentativa frustrada de te passar o que senti. Ele inunda a gente de uma nostalgia imensa.

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