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Micheliny Verunschk


 

Segredo de camarinha


Cora,
teu retrato amarelado de
moça
fala à minha dor.


Teu retrato-butterfly antigo
pousa,
pousa sobre
a rosa remendada
de minha dor.


Aquele rapaz, Cora,
que tinha o medo
(o medo que têm todos os homens)
e que não pressentiu a espera ancestral,
aquele rapaz, Cora,
o desencontrei também.


Ele vestia
o mesmo sorriso
e o mesmo cheiro bom de terra
e o mesmo medo
(ainda o medo)
o medo
ele vestia.


(O que há de se fazer,
Cora,
com um mal destes de amor ?)


Cora,
teu antigo retrato de moça
baila-bailarina
sobre a minha dor.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

Rápido monólogo do caçador com sua caça


Trago
Pardos
Os olhos
De cobiça
Que atiro
Sobre ti,
Teu verbo/teu sexo:


Tua presa
de
marfim.
 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Alphonsus Guimaraens Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

Cartório do 2º ofício


Cato os minutos,
Grãos de milho
Caídos na música
Datilográfica
Do relógio velho
Da parede;
Sementes loiras
De tão sonífera
Claridade
Que só os posso
Contemplar
Com os olhos
Semicerrados;
Óvulos de pó
Que ajunto
No bojo do avental
Para tentar
Saciar a fome
Desse galo voraz,
Desse expediente infindo.
 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Jorge Medauar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

Crescente e decrescente num mote de Conselheiro

 

À Lirinha



O sertão
Que eu trago
Junto ao peito
É como a estrela
Cortante
De uma espora,
Como a ave ribaçã
De uma pistola,
Como o olho severo
De um seteiro,
Mas em ti
O sertão
Se torna água
E escorre
Atlântico
Em minha garganta
E em dez pés
Meu galope
Se abranda
E meu pouso
É pacífico
À beira-mar.
 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Dimas Macedo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

Premissa perdida de Paracelsus


A alquimia das cozinhas
Se assemelha
À alquimia de escrever
E esta, por sua vez
À alquimia de pintar:
Digo do tempero ( A têmpera )
Das palavras,
Seus cheiros de orégano e coentro
E ainda das claras aquarelas
Batidas em neve
( Os conté, alvaiades e aguadas,
Seus doces e seus vinagres... )
Digo da transmutação
E também da mimésis camaleônica
Que tudo transforma,
Tudo com(funde):
Alimento,
Letra,
Tinta...
 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

Férias


A adstringência argilosa de tua carne
Pressupõe certas fúrias inauditas,
Iras cintilantes de matéria
Que desmentem toda metafísica.
Escrita em fogo e sal, a tua carne,
É experimentada em incoerentes heresias
( Poema linearmente metrificado
e também dissolutamente corrompido ).
Escrita em fogo e sal, a tua carne,
É carne-álgebra
Ou carne-geometria,
Carne ( e apenas carne )
Somente a carne —:
A carne sem qualquer filosofia.
 

 

 

Culpa

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Barros Pinho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

Isaura


Isaura
Sentia nos dedos
Das mãos
Os rios,
As epifanias,
Os cheiros
Dos cabelos de José.
Seus dedos brincavam
E sentiam
Os cheiros
( O cheiro de mato
De campina,
De homem
Dos cabelos de José )
Isaura sentia.
Gostaria de morrer
Se assim não fosse.
Juraria numa cruz
Por São Carlinhos,
Por São Ascenso,
Por São Austraclínio,
Os santos
De sua inventada devoção.
Na cadeira de balanço
Sobre o colo
Molhado
Do xalé verde-água
Dormiam
Os cabelos macios,
Os cabelos cheirosos,
Os cabelos que sempre
Cantaram saudades:
Os cabelos de José.
Dormia José,
Deitado em seu colo.


...


( Amaro e Tobias e João
Descompreendiam
Todos os dias
O mistério de Isaura,
Na varanda do solar,
Desperdiçar os sóis
E os anis
A ninar um chapéu.
Não sabiam eles
Que José dormia ).
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Roberto Pires

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk


 

O violino


Entregue a sutil carícia
Da curva do queixo
Mal finge
Que freme mesmo
É ao balé febril
Das pontas dos dedos.
( Talhado em nobre madeira,
O filho de Eros,
É dado ao gozo animal
Ao humano sexo... )
 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Ivo Barroso, 2003