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Maria da Conceição Paranhos


 

Este livro de Judith Grossmann

 

Este livro de Judith Grossmann, Vária Navegação: mostra de poesia (VN), na multiplicidade de temas e motivos — aparentemente "circunstanciais", alguns, no sentido fraco da palavra —, alça-se à categoria da época das descobertas. "No mar tanta tormenta e tanto dano, / Tantas vezes a morte apercebida; / Na terra tanta guerra, tanto engano, / Tanta necessidade aborrecida!". (Os Lusíadas 1, 106). Também da lírica de Camões o poeta de Vária Navegação se nutrira, desde o início da sua obra (l959), em tanto e em especial no desejo de manter a visão: "Contanto que me deixeis / Os olhos para vos ver". (De: Redondilhas). Prece de quem sabe amor e vida, se poeta, com seus sucedâneos engenho e arte.

 

O título do livro anuncia a aventura de uma viagem, de modo diverso de como Jorge de Lima a empreendera (Invenção de Orfeu, (1952), pois não se trata de réplica: "É mais do que real". Também diverso do empreendimento de próximos, poucos, coetâneos.

 

Queiram observar o emprego do adjetivo "vária". Em Vária Navegação, "vária" tanto diz-se diversificada e numerosa, quanto vagante, extravagante, transbordante das canastras do tempo e das histórias das idéias, das emoções, das percepções, das formas — inclusive naquilo que, dentro dessa história, constitui o domínio da literatura; "vária", ainda, porque se quer diferente e inaugurante.
 

Ao invés de uma incursão pelo tempo em sua inexorabilidade, o eu poético constrói uma casa — um edifício de 156 andares (que este é o número de poemas em Vária Navegação), com um olho mágico no poema 108, para quem está fora: o leitor. Trata-se do poema "Testamento". Mas vamos nos deter, por breve, no segundo bloco do título de Vária Navegação: "Mostra de poesia".
 

Portanto, anuncia-se um vernissage nas paredes da galeria vertical feita emersa pelo poeta, num solo que a limita com as águas torrenciais do subsolo, continuam devastador do tempo, e que a projeta para um super-solo, o mais verdadeiro porque o mais poético, o real Puro absoluto (das echt absolut Reele. Novalis, Fragmente des Jahres 1798, nº 1247). Ler, em Vária Navegação, para que as afirmações anteriores fiquem claras o "Sonho causado por uma enguia um segundo antes de despertar" (p. 75).
 

Retomando, agora, a "Testamento". O espaço criado para o evento poético é construído a partir de um naufrágio em que as perdas são totais. O outro se apropria do espaço do eu. Mas o herói da expedição urbana domina o grave acidente. Note-se a relativa sensilhez do poema em relação à inesgotabilidade do tema tratado. O itinerário da navegação ameaçada pelo tempo (inicialmente pelo tempo meteorológico — nos dois primeiros versos), prenuncia a perda da nau. O herói ingressa numa nau temporária, coletiva ("ônibus"), para prosseguir na procura de sua individual embarcação — seu espaço e seu limite com o mar, o espaço urbano, o mundo empírico. Então, defronta-se com a radical devastação, a um tempo aventura frustrada e tragédia onde se situam o anti-Ulisses e a anti-Fedra. Em relação ao primeiro, nenhum tipo de porto o espera, nenhum gesto de fidelidade: tudo é traição; em relação à segunda, é cessada a possibilidade de enterrar o seu morto, ser coletivo, neste caso: não há terra para o sepultamento. Entretanto, mantém-se a integridade e a dignidade do herói que, ao final, no último dístico, acerta as contas todas, perpetrando o gesto que as palavras realizam: "No que a mim me tange e diz respeito / nas portas escancaradas há ferrolhos" (p. 145). Isto, depois de percorrer o périplo dos nascimentos, da paixão, da morte, do renascimento polimórfico, esgrimindo com o tempo ao modo plácido da Sra. Buchem em Lebenswald — senhora dos livros (o que equivale a dizer, num território de semelhanças), na floresta da vida, esta, a geografia conquistada dos artistas, do artista em sua vária navegação. O comentário sobre o poema "Testamento" aqui se faz mais extensamente — e haveria tanto para dizer — para que o leitor possa notar, se se encontrar distraído, um possível roteiro para acompanhar a história da viagem e das viagens de Vária Navegação. São histórias muito simples, pois comuns a todos nós, humanos, diversa que seja a forma de vivê-las.
 

Há outra dominante no livro que me apresso a destacar: seu caráter de interlocução. Interlocutor: aquele que fala com outro e aquele que fala em nome do outro. Há sempre um colocutor, seja incluído no corpo do texto, seja um meta-interlocutor (o poeta e a própria poesia, o passado da literatura). Há pelo menos dois aspectos a destacar quanto a essa característica. Em primeiro lugar, o caráter de poesia dramática (como gênero) do livro Vária Navegação. O protagonista-poeta dirige sua fala a outros protagonistas, que, por sua vez, se relacionam com o leitor — que se vê situado na mesma posição ou posição semelhante. Podemos aceitar ou rejeitar os argumentos do protagonista-poeta, a depender de seu poder de persuasão. Em "A Visita Inesperada" (p. 85), essa situação interlocutiva se toma ainda mais explícita e ainda mais habilidosamente conduzida. O protagonista-poeta se situa, aparentemente, na mesma ótica dos demais, Matilde e Cibele. No final do poema, caberá ao leitor julgar a decisão do eu. Não é previsível a reação do leitor. Há algo de muito familiar entre o Andrea del Sarto, de Robert Browning — cujo verso-chave, a meu ver é "Ah, but a man's reach sould exceed his grasp" (Ah, mas o alcance de um homem devia exceder seu braço) e poemas como "Visões d'Áffrica" (p. 23-24), "Song of herself' (p. 69-70), "Promised land" (p. 73-74), estes, diálogos com Salvador Dali, tanto o homem quanto o artista, e "Partidas" (p. 106-108). Neste último, o desequilíbrio entre percepção e realização se mostra. A primeira morte, do "mais sábio dos homens", será transtornada em sua ritualística pelo protagonista-poeta. Alistam-se argumentos, prescrições e impossíveis exigências. Mas, à socapa, a morte já terá sido executada por outrem. A posição do protagonista alicia o leitor: "Quando todos poderão ir para casa / meditar sobre o incomensurável fato / de que a vida é desnecessária, / bastando a inscrição: / aqui descansa o doce menino dos canaviais" (p. 108). O leitor é desafiado desde o início, já que nada é previsível nas histórias que se contam dentro da História, em diversos tempos e lugares. O presente da leitura confronta-se aos vários passados. Não há ponto de vista privilegiado. O julgamento do leitor se dará a partir do pensamento analógico e dialógico (inclusive com sua própria história). Em "Partidas", presenciamos a construção de argumentos que funcionam como ilustrações de cenas sucessivas, postergadas, transfixadas no espaço definido do poema. Assim também ocorre, cada qual com sua técnica suasória, em "Feriado" (p. 109) e "Morrer de Amor" (p. 111) — uma das telas mais impressionantes do vemissage de Vária Navegação. Impossível deixar de citar uns poucos versos: "Esta voz que vive e se esboroa / contra nítidos vitrais de cor grená. / esta voz que vive e já retine / como um selo e sinal do paraíso", voz pintada, interessante e arcaica, arquiteta de palavras, sempre a nascer assediada pelo passado cuja força abrupta desinstala o presente e dissolve, no final, todas as formas em favor de um futuro.
 

A poesia de Vária Navegação independe, por outro lado, de syn-patheia, estado de fusão, Einfühlung do leitor. Sendo poesia da experiência, constrói objetos com vida própria, événements, como sabia Valéry, eventos, acontecimentos.
 

Tudo isso assentado em um corpo de prometéica construção (Veja "O Engenheiro", p. 167).
 

A conseqüência do que antes denominei uma das dominantes do livro é o parentesco de Vária Navegação com outro gênero, os diálogos, desde Platão, passando pelo Renascimento. A arte da conversação, de tradição francesa, irá florescer mais nitidamente no século XVII. A preocupação dos diálogos é a preocupação de fixar o teor das palavras pronunciadas nos diálogos da vida cotidiana, vivida. De Gargantua e Pantagruel a Rabelais, erige-se a arte de interpretar a vida em situações concretas. Em Vária Navegação, "A interlocução interminável" (p. 96), a instância dialógica é tematizada diante de um desaparecido que susta todas as perguntas. No entanto, é neste momento que se inicia a incessante interlocução sobre o conteúdo da vida vivida no passado. Em "Arqueologia" (p. 47) (um dos interlocutores, o protagonista "Senhora"), presenciamos a uma litania loqüaz diante de um ser mudo, arché feminina que faz despertar um mundo a poesia mesma se erige e se reconstrói pelo poema, mergulhando na referencialidade para salvar a possibilidade de dizer.
 

Não apenas na primeira parte do livro, "O Anjo Constante", encontram-se as apontadas características. Esta primeira parte, mais recente segundo nos diz a autora na "Recepção do Leitor" (p. 15 a 19), consta de 56 poemas. Nesta parte, amplia-se a arte da conversação pela visibilidade do traçado, sem perda do contato com as origens. O espírito desperta da vida interior em busca de um objeto. O eu não pode fechar-se em si mesmo em sua existência, pois seus movimentos interiores não são sujeito nem objeto. O sujeito se perde e atinge a imperiosa necessidade do objeto: a necessidade de sair de si não pode ser adiada. Há uma perda de si que se projeta para o objeto, seu semelhante, que passa a integrar-se ao ipse, criando a fissura entre o sujeito e o integrado eu, pois inexiste não-eu. O duplo sedia-se no próprio sujeito dilatado. Assim é que os objetos adquirem força, tomados fulgurantes em súbitas transformações. O usual e o fantástico se entrecruzam sem cessar. A imaginação do poeta cria constantemente as combinações de palavras de que necessita. Se a poesia introduz a estranheza, entretanto, ela o faz pela via do familiar: "O telefone toca. E uma chuva de pétalas / Se desprende do lustre./ É uma voz /Uma voz antiga/ Uma voz." ("Natal", p. 46).
 

O tête-à-tête se esvanece. Só há uma cabeça pensando, que pode estar em qualquer parte do corpo, em qualquer parte do nosso histórico, histérico e deambulante corpo. A voz anuncia a dualidade da consciência reflexiva. Se o eu poético é lúcido, ele o é para ser dois, exasperação da lucidez: o poeta, sua própria testemunha, reúne algoz e vítima. Heautontimouromenos: par estreitamente unido no qual o algoz se apropria da vítima. Não há mais como se ver. Vê-se, assim, nos seres e nos objetos. O poema "Mendeliana" (p. 156) certamente guiará o leitor na tematização híbrida das interlocuções — em que a cor torna-se fuga e permanência, como a própria palavra. O suplício que o poeta se inflinge namora a possessão, mima-a, brinca com ela, tende a fazer nascer carne sob seus dedos, sua própria carne, para que, na dor, se reconheça. Há um laço sexual entre vítima e algoz. Mas é em vão que o poeta tenta transportar para sua vida íntima essa relação. Esta, só tem sentido entre sujeitos distintos. No momento em que se vê no outro, o poeta ri e nos acena, para sua própria surpresa e encantamento. Mais obviamente, leia-se: "Raspar a cabeça é a maneira de recuperar compridas tranças / como andar nu a de envergar a armadura". ("Aceno a Salvador Dali", p. 155).
 

Entre os objetos (incluindo, aqui, pessoas e personagens-objeto) se apura o sentido predominante de Vária Navegação: a visão. Entre o olho e o mundo, sempre uma aura translúcida, fosse um tremular de ar saturado de calor, como em alguns dias do Verão. Em "O Infante Mágico" (segunda parte de Vária Navegação) o poeta vive a poesia descrevendo-a pelos sentidos e pelas idéias assinalando como valor a repetição dos procedimentos e técnicas mais ou menos caducos, atacando-a, a partir de sua própria intimidade. Simultaneamente, defende o real de um rol de vilipêndios do mundo civil, nomeando-o e nomeando o inominável: "Foi apenas isto, este nada aparente a que eu chamo de tudo". ("A verdadeira interpretação dos sonhos de Sigmund Freud", p. 49). Figuras são revistas por meio de ângulos diversos, refutando-se mútua e seguidamente, crítica da literatura, sim, em favor da vida e da própria literatura inevitavelmente.
 

Em ambas as partes, à visão mágica segue-se um desconcerto, semelhante ao da criança que se reconhece a espreitada pelo olhar adulto. O que não impede que tudo seja inspecionado: desde o cortar de um tomate a um lápis Faber nº 2; desde uma xícara ao olor de uma lavanda; desde o lugar onde uma égua empina a uma velha cabaça ou a uma bolsa d'água, e assim continuaríamos por laudas, espaço houvesse. Mas é na segunda parte que se ingressa no mundo da imediaticidade, ou melhor, da ilusão de imediaticidade, importem os arsenais da memória. Memória prodigiosa, plástica e mágica, objeto de muitos objetos, de muitos rostos, de muitos gestos, infinitésimo da ausência que se encrespa e adensa na presença, distâncias que se formam no agora do leitor, contemplação do quadro com a moldura do corpo poético.
 

Não posso evitar lembrar-me dos personagens de Henry James: "Eu vejo, eu vejo". A violência traumatizante de seus heróis e heroínas em suas descobertas, o coração batendo louca e ignobilmente. A pergunta é: pode a paixão dispensar-se da ficção? Não em Vária Navegação. A potência da ética exige, finalmente, que se renuncie à faculdade de ver, rever, pôr em questão no poeta Judith Grosmann.
 

Judith Grossmann é um poeta que escolheu se ver como se fosse o outro: sua vida e seus livros contam essa história desde o início e, agora, revelando todo recôndito: "O que se ama no poeta / É que ele claramente demonstra / O que lhe vai dentro da cabeça". ("Le superfiu — Chose três nécessaire", p. 95). O supérfluo?
 

Na mostra de Vária Navegação o olhar irá fazer-se um com o objeto contemplado, afinal, na degustação obsedante. Diálogo com as luzes, já que o êxtase é o ou consciência de todos e de cada um diante dos quais o poeta susta o passo e se vê na iluminação que explode por vã janela ao ar mais puro ("A Hora", p. 173). Zaratustra o sabia: a noite é também um sol.

 

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03.01.2005