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Mário Cabral


 


A ESPADA, O DRAGÃO, AS LARANJAS E OS PEIXES
Cabral, aeródromo de S. Jorge, Segunda-feira, 17 de Janeiro AD 2005


Os descobridores contornaram a ilha
Desenharam letra a letra a espada;
Do alto eu vi primeiro o Dragão –
De que plano se verá S. Jorge?
Eu digo, em forma de enigma:
As laranjas foram cortadas de um só gesto
Ainda balançam resplandecentes sobre a mesa
Vertendo sangue humano, isto é
Sangue que embranqueceu a contar histórias
Como os peixes de aquário.
Erros privados que não podem ser ditos
Mágoas e ressentimentos geraram o Amor maior.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

À HORA DE CRISTO MORTO
CABRAL, Casa das Tramóias, Abril-Junho A.D.2004


Às três da tarde rigorosamente às três da tarde bem que tento concentrar-me na leitura filosófica
Tento mal me tenta bem o melro-preto de bico amarelo com seu canto que fulmina o já claro dia; E eu divago e vago vagueio para fora do meu orgulho racional e tanto mais quanto envelheço.
Já sabia falar a linguagem dos cães há muito tempo; e as línguas das árvores quase todas, etc.
À hora de Cristo morto, rigorosamente às três da tarde, onde está ele escondido e tentador?:
«Na terra onde a morte abunda é que a vida se faz plena». Onde está ele escondido e tentador?
«Eu sei» retorqui, a voz branda sonhadora: «Eu sei» repeti: «Sou mais humilde do que pareço».
«Então vou-me calar para escreveres o poema». Onde está ele escondido e tentador?
«Já não me levavam a sério e agora menos. Vão dizer q ue se trata de um artifício literário
Espécie de onomatopeia, por ex. pum, tiquetaque, atchim, cuá-cuá, zum-zum, etc.
Tiiiiiiiiiii tititititititi Tiiiiiiiiiiiiiii tititititititititi Tiiiiiiiiiii tititititititititititi
Entre onomatopeias linguísticas e não linguísticas entre onomatopeias brutas e gramaticalizadas
Lexemas Tiiiiiiiiii gramemas titititititititititititi segundo J-P Reynvoet tiquetaquetiquetaquetiquetaque
Espécie de metáfora, espécie de metanálise (p. ex. a mora), espécie de metamorfose, etc.»
«E o que lias tu então se é que sabes ler? Mora a amora na aurora A mor a namora ora a hora!»
«”Ai de ti, Diotima!, se um dia pensas ter a verdade, para ninguém existirá a tua beleza
E a extrema beleza deste golfo. Só te hão-de procurar os inferiores; os poetas fugirão de ti
E quem senão eles é capaz de construir os rochedos e as espumas e as ninfas do Sol?”».
«Na verdade os filósofos, insensatos, se aproximam da beira do abismo e não se deixam cair».
«Mas nós sabemos que assim não é. Teu canto é melhor que a minha língua mas sou eu
Eu e mais ninguém quem te eleva às altíssimas alturas do Deus Espiritual Pai de todos nós».
«Apanhei-te a mentir: “Sou mais humilde do que pareço. Sou mais humilde do que pareço”
Poeta, quem te cegou? Poeta, quem te ensurdou? Poeta, quem te cortou as mãos?».
«Não me importa. Encontrei a porta. Um destes dias pousam borboletas em meus braços.
Ele sopra por dentro de mim e por fora, está mesmo aqui a brincar, é um Deus Menino
É uma farpa, uma agulha, não gosta de rasgões e eu também não, Ele é quem mora».
«Muito bem, adivinhaste. Mas continuas a usar óculos e mesmo assim não me encontras».
«Encontrei a porta rigorosamente às três da tarde e Ele tem a medida do meu próprio corpo
Os olhos são os dEle, agora, e assim é melhor, os ouvidos dEle, e assim é melhor, as mãos».
«Então repete comigo: nem abaixo nem acima».
«Em baixo e em acima».
«Nem à direita nem à esquerda».
«À direita e à esquerda».
«Nem por dentro nem por fora».
«Por dentro e por fora».
«E que forma tem o almofariz da filha do lavrador?»
«É da cor do coração do Rei com quem vai casar».


 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

ARQUIPÉLAGO
CABRAL, Viagem marítima no grupo central, Sexta-feira, 30 de Julho AD 2004

Este poema pertence ao meu amigo Aurélio
que é dono do original, feito quadro
todos os direitos lhe são reservados



A minha ilha não tem fim não tem fronteira
Assim o quis o grande mar
Assim o quis o grande mar.
Na minha ilha não há escorpiões nem a serpente do mal
Assim o quis quem manda aqui
Assim o quis quem manda ali
Assim o quis quem manda acolá.
A minha ilha é uma estrela-do-mar
A minha ilha é uma estrela no mar.
À noite abro a janela às cagarras
Chamam por mim eu as baptizei
Eu as baptizei e elas chamam por mim.
Os garajaus amam a minha ilha
Amam-na a cantar
Assim o quis o grande mar
Assim o quis o grande mar
Que a poupou de afundar
Que a poupa vou à popa
Aprendi a cantar
Este Verão imortal.


O sangue do mar é branco
Branco puro e vaporoso
Só quem diz que o mar é água
É quem não sabe amar
Para mim este mar é tinta de escrever
Na minha caneta Parker
Por mais que viva não esgotará
Só quem diz que o mar é água
É quem não sabe amar
Mar é mundo, mar é fundo
Este mar se fez lagoa
Vai à proa, marinheiro
Este mar gosta de ti
Grita alto e bem alto
O coração é azuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuulllll!


Uma ilha à esquerda
Outra ilha à direita
A da frente tem outra atrás
Sei que vem outra a seguir
Estou no meio das três
Estou no meio das cinco
As ilhas correm cortinas azuis no distanciamento
Mas logo outras abrem as janelas para o abraço azul
Esta ilha sabe a pão
Esta ilha cheira mesmo a mar
De repente o mundo cabe todo nela
O mar abre uma toalha de renda de tramóia
Para o paquete dos pãesilhas.


Marinheiro do mar alto
Busca golfinhos para olhar
Marinheiro do mar alto
Para olhar mas não pensar
Se olhares bem olhado
Terás todo o teu passado
Marinheiro entenderás
Que este mar é o mesmo mar
Que este olhar é o mesmo olhar
E cá fora és imortal
Marinheiro do mar alto
Vai à proa e grita azul
Azuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuulllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
Azuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuulllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
Azuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuulllllllllllllllllllllllllllllllllllllll

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Rosane Villela

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

A ÁRVORE EM QUATRO TÊMPORAS
CABRAL, Horta , dia de nossa Senhora da Conceição de 1992 (rescrito em 1999 e 2000)

I. Outono

Uma árvore no Inverno assemelha-se a um texto sem vogais
Embora o nome Dezembro seja aqui confirmado
Por estes troncos descarnados à luz toda seca e gélida
Dir-se-ia Agosto se não.
Ainda Outono, outras árvores estudaram as declinações, não a minha
Pelo menos a do pronome definido –a; -o, de sícómoro, não se incendeia, não
Não sobe para além do amarelo estaladiço, não incendeia, não
Mas faz lembrar os plátanos de Sintra e longe de casa todas as lembranças são benvindas.
Varro as folhas caídas enquanto eu próprio repito o rosa rosae
Pequenas hastes embolotadas, umas vogam na superfície do lago
Cor de chá pelas no fundo, poetas aos quais esquecemos o nome.
À medida que a sombra se desfia a casa cresce.
Quando me abaixo para descolar as presas ao chão húmido é meu Pai que se baixa
E assim a Primavera se anuncia metaforicamente pelo meu corpo — Verão, promessa de ver.
Vai fechar-se, melhor dito, está a virar-se para dentro, deixa de falar.
Por causa de Perséfone? De Job? Não, não vais cometer o vício de pensar, por favor.
Varre, continua a varrer, pois o Outono é um verbo de acção.


II. Inverno

m rv r n nv rn ss m lh –s m t xt s m v g s
mb r n m D z mbr s j q c nf rm d
P r st s tr nc s d sc rn d s l z t d s c g l d
D r-s - g st s n .
n d t n , tr s rv r s st d r m s d cl n ç s, n m nh
P l m n s d pr n m d f n d ; , d s c m r , n s nc nd , n
N s b p r l m d m r l st l d ç , n nc nd , n
M s f z l mbr r s pl t n s d S ntr l ng d c s t d s s l mbr nç s s b nv nd s.
V rr s f lh s c d s nq nt pr pr r p t r s r s
P q n s h st s mb l t d s, m s v g m n s p rf c d l g
C r d ch p l s n f nd , p t s s q s sq c m s n m .
m d d q s mbr s d sf c s cr sc .
Q nd m b x p r d sc l r s pr s s ch h m d m P q s b x
ss m Pr m v r s n nc m t f r c m nt p l m c rp — V r , pr m ss d v r.
V f ch r-s , m lh r d t , st v r r-s p r d ntr , d x d f l r.
P r c s d P rs f n ? D J b? N , n v s c m t r v c d p ns r, p r f v r.
V rr , c nt n v rr r, p s t n m v rb d cç .

III. Primavera

Possível acreditar no milagre da leitura
Não se visse a árvore rebentar por grumos verdes?
É daí que vem a luz, a leveza e a calma dos sábios.
Foi a árvore quem me ensinou a ambivalência dos grumos nos dicionários, por exemplo.
Daqui retiro outros sentidos a beirar a teoria da Literatura
Talvez Nietzsche em O Livro do Filósofo , como deixei escrito
Em poema da mesma época deste, é dizer Primavera em seu terço.
O tronco ressuscita, é tal e qual Lázaro, impossível não comparar:
Dia após dia a violência do leve sobre o pesado é maior, do espiritual sobre o inanimado
Despudoradamente rebentar congrega os opostos semânticos.
Abre as mãos, as mãos esticam os dedos e enfeitam as unhas
A voz estridente recomeça a confiança infantina de Deus
Destemido de nós, que fomos crescendo para o escuro.
Ainda recordo mais para trás, quando numa fenda entronei
Nossa Senhora de Fátima em falso jade
Mumificada nesta haste que jamais madeira, se for ouvido o meu desejo profundo
Ouvi-a eu segredar-me hoje e à distância ultramarina, hoje que é seu dia, as vogais.
Rebentar, iluminar até que nasçam asas na matéria, asinhas infinitas registam a aragem suavíssima.
Tudo é, de facto, o nariz o sabe, ferido pela pureza do Éden.


IV. Verão

Cadeira branca. Vimes. A carne está mais cheia e redonda.
O calor destrói as frases mais compridas. Balões de vaidade rebentam sem ruído.
A sombra das folhas recortada pela luz estremece e canta sem ruído.
Verão. Silenciosamente no Verão. Verão. Verão. Verão. Verão. Verão mudo.
Com certeza a minha pele e a pele dela se colaram no suor.
Debaixo do véu diáfano da árvore do pronome definido é mais fácil de aceitar
Que a criança sentada no meu colo seja Mariana, minha sobrinha e afilhada.
O nome de minha irmã mais nova é o mesmo, mas não a estação do corpo.
Filha de minha irmã do meio, a amada. Trepava pelo tronco com destreza e rebeldia.
Também líamos os livros da condessa de Ségur. Infância mitológica.
Atrás da máquina fotográfica está a mais velha, de seu nome Amália.
O pequeno chapéu de palha escorregou para o rosto — ou a mãozita faz o movimento inverso?
Fecha os olhos para se proteger do sol ou está a dormir?
Noutros álbuns de outras estações, Excalibur numa ocupa o mesmíssimo lugar que eu criança
Sendo o mesmíssimo lugar o mesmíssimo lugar e as personagens alucinações
Um menino que se banha de mangueira depois do mar, incrível que tenha usado o meu nome
Um cão que este menino vai ter no futuro e que não sendo ainda já é adulto
Noutra Mariana mais à frente, vestida com a mesma brancura da mãe, para a comunhão solene —
Mas é Verão, a estação das carpas mudas, à sombra dos nenúfares, a estação. A estação. Verão.
Tornei a pintá-la. À cadeira. Muito antiga. Quase se parte. Há registo da avó nela.
Quando tiver a minha idade, acreditará que tínhamos a mesma idade debaixo daquele bordado vivo?
Ou deixaremos de ser compreendidos, nós, os poetas?
Seja como for, aprendi a ver as horas pelas mãos da mãe dela
Num outro mesmo dia de nossa Senhora da Conceição.
FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFprapapa P U M! pepá P U M!
P U M!
Vai a entrar a procissão, aqui, na minha distância e ausência. Infernal Inverno ilegível sem vogais.
Estará algum indígena aproveitando esta fenda celeste, imprópria para estrangeiros?
Fora da casa dos ponteiros fora de mim sou mais nos retratos da árvore que meu Pai plantou
No dia do casamento de meu Pai começaram a rebentar as vogais dos meus versos.
Uma árvore no Inverno assemelha-se a um texto sem vogais
Assim um poeta longe da terra natal, mesmo que seja mesma a Língua.


 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

AU BONHEUR DES TZARS



Em 1884, o czar Alexandre III faz com Fabergé
Um contrato notável; refiro-me aos misteriosos
Misteriosos ovos de Páscoa que interessam
Que me interessam na medida em que unificam
Unificam as duas partes essenciais do humano
A saber: o criador e o aristocrata, ou a inversa.
O colosso imperial pode muito bem ser tomado
Por déspota,autocrata ou afim;porém,tal leitura
Idade não me permite tal leitura revolucionária
Oh, não! Repare-se bem, por favor — digo-o,
Espero que neste verso façam fé, digo-o —,
Sem cor política, oh, já na idade de mais atrás;
Como não lhe reconhecer,oh, a glória suprema
Suprema glória, suprema glória,suprema glória
Oh, de transformar o supérfluo em necessário?
E,diz-se,não sei se miticamente, oxalá que sim
Nunca quis saber do interior dos ovos, antes
Antes da justa hora. Por meu turno, os amigos
Os meus amigos íntimos conhecem obsessiva
A famigerada obsessão que tenho pelo Tempo.
Este homem merece ser lembrado como sábio.
Quanto a Fabergé — não, não descobre não
Não descobre não um mundo novo, é certo, é;
Todavia, repare-se que eleva o trabalho eleva
Que eleva o trabalho à dignidade maior, oh oh

Quando as mãos se distraem na beleza esquecidas da função.

Juntando estas duas partes, nenhum nenhum
Nenhum deus ou demónio nos vencerá nunca
E veremos face a face o Pai Eterno face a face
Pois soubemos,com perícia de crianças,oh sim
Soubemos evitar malogros deselegâncias oh
Mal do Espírito que o põe a tresandar. Sic.





Cabral, Casa das Tramóias, passado à máquina a 19 de Novembro de 1993 (um mês depois de ter sido
Feito)/ passado para o Sancho Pança na sexta-feira Santa de 2000


 

 

 

Culpa

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Alcina Azavedo

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

CAMPOS DE FELICIDADE
CABRAL, Casa das Tramóias, Segunda-feira, 21 de Julho A.D. 2003


Soldados verdes de penacho doirado
Crescem por Agosto bem enfileirado
Secretas armas doces e doces resplandecentes
São campos e campos de felicidade.
Se a chuva os encharcar durante a noite
De manhãzinha soprar o vento
E o sol de novo à tarde
Então
São campos e campos de felicidade
São campos e campos de felicidade
Diz o nariz que abre as portas piores
São campos e campos de felicidade


 

 

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

chuva de verão
CabralJulhoAD2004


de ponho os meus olhos num caixão negro de luxo
com o tempo de chegar à eter idade o –g apagar-se-á
ucci pode vir a ser toma do por occi.
dobro-lhes as pernas como o faziam os antigos
está inscrito optivisão na mortalha azul
tudo bons augúrios no fechar seco desta embarcação
o tempo desta chuva garante aquilo que espero


 

 

 

Michelangelo, Pietá

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19/06/2006