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Lena Jesus Ponte

lenajesusponte@globo.com

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

Poesia:


 

Crítica, resenha, ensaio e comentário:


 

Fortuna:


Uma notícia da poeta [out/2007]: 

  • Lena Jesus Ponte (Vitória, ES, 1950). Reside no Rio de Janeiro.

  • Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.

  • 7 livros publicados: Meu Mundo (1965, Editora Pongetti, RJ), Revelação (1983, Massao Ohno – M. Lydia Pires e Albuquerque Editores, SP), O Corpo da Poesia (1992, Editoração, RJ), Estações Interiores – haicais (1997, Editoração, RJ), o infantil Paçoca: a Foca Que Sonhava em Ser Poeta, em parceria com Wanderlino Teixeira Leite Netto (1999, Editoração, RJ), Na Trança do Tempo – haicais (2000, Editoração, RJ) e Ávida palavra, poesia (2007, Editoração, RJ).

  • Participações na Revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, número 17 (2002); na Revista da Academia Brasileira de Letras, número 37; nos volumes 1 e 2 de Edições Anteriores do Jornal O Correio, editora Ágora, org. Paulo França e Dalma Nascimento; na Antologia de Escritoras Capixabas, organizada por Francisco Aurélio Ribeiro, da Universidade Federal do Espírito Santo; na coletânea Páginas da Infância, organizada por Elza Rodrigues.

  • Criadora e dinamizadora da Oficina da Palavra Luiz Simões Jesus (prosa e poesia) e de Oficina de Haicai Luís Antônio Pimentel.

  • Integra os quadros da Associação Niteroiense de Escritores e do grupo Mônaco de Cultura.

  • Site: www.lenajesus.ponte.nom.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

Gerardo Mello Mourão

 

Benedicto Ferri de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

Wanderlino Teixeira Leite Neto

wtln@sm.microlink.com.br

 

 

A pluralidade poética de Lena Jesus Ponte

 

 

Em Estações interiores (1997) e Na trança do tempo (2000), Lena Jesus Ponte brindou os leitores com haicais. Desde que Luís Antônio Pimentel despertou-a para esse tipo de poesia, Lena vem mantendo íntimo relacionamento com esse poema de origem japonesa, a ponto de passar a impressão de que seu fazer poético nele se concentra.

Entretanto, em seus livros Revelação (1983) e O corpo da poesia (1992), não há um haicai sequer. Mas eles são anteriores aos mencionados, alguém argumentará, insinuando que a autora, a partir de Estações interiores, já não tece outro tipo de poema, a não ser o notabilizado por Matsuo Bashô no século XVII. Com a publicação de Ávida palavra (2007), Lena mostra que sua poesia é abrangente.

O título desta recente obra traz uma ambigüidade que permitiu uma divisão em três segmentos: “Canto a céu aberto”, “Canto em gaiolas” e “Canto em galhos de árvore”. No primeiro, valendo-se de versos livres, a poeta “retira cangas e antolhos, rompe represas, corta barbantes e cordas, derruba cercas e muralhas, abre celas, gaiolas e comportas, solta freios, desata nós, afrouxa o cabresto das rimas”. No segundo, abriga, além de poemas em redondilha maior com esquema regular de rimas, sonetos capazes de inquietar os que ainda bebem na fonte do Parnasianismo. Afinal, ao construí-los, Lena não se obriga à rigidez canônica. Também Alphonsus de Guimaraens, Jorge de Lima, Vinícius de Moraes, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade, entre outros modernos, fizeram alguns sonetos desapegados dos cânones clássicos. No terceiro estão os haicais. E Lena, à maneira de Pimentel, dispensa algumas normas do haicai tradicional ─ não se preocupa, em abordar sempre a estação do ano e permite às vezes ao eu lírico imiscuir-se no poema. Porém, conforme o mestre, não abre mão da métrica convencional (5-7-5) nem atribui títulos aos haicais.

Portanto, neste seu novo livro, encontraremos Lena Jesus Ponte em plural avidez poética. Conforme ela própria declara, a poesia faz pouso no ninho da página.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Ayrton Pereira da Silva

enyayrton@terra.com.br

 

 

 

A MULTIPLICAÇÃO DO VERBO

 

                                                         

 

            Permeada de um vago sabor nostálgico, que afinal vem a ser um legado dos poetas, a lira de Lena Jesus Ponte cambia de tons e ritmos, desvelando um caleidoscópio de imagens sob cujo espectro se abrigam seus sonhos, perplexidades e assombros. Tal a impressão que nos suscitam os poemas de seu livro Ávida Palavra, título ambivalente que, numa leitura interlinear, se desdobra em “a vida-palavra”, de modo a sugerir, metalingüisticamente, o universo verbal em que, seres de relação, todos transitamos .

         Aliás, as mutações tonais e rítmicas matizam de variegadas nuanças a dicção da autora, como se pode notar em diversos poemas seus, a exemplo de “Tempo de plantio”, marcadamente lírico, em contraponto a “Desconcerto”, com toda a sua carga de pungente realismo, porquanto, como proclama a poeta, em “De algodão e aço”, se

 

         Os pés caminham firmes realidades;

         as mãos escrevem utopias nos vãos das entrelinhas.

 

         É, pois, nessa atmosfera, por assim dizer, hegeliana, de bipolaridades, que gravita a poesia de Lena em busca da palavra exata, que, na observação de Heidegger, constitui a chave para a apreensão da essência do ser.*

         Entre o estado vígil e o onírico, essa terceira margem somente reservada ao ofício seminal, ali a poeta faz sua vindima “no sutil limite entre a fumaça e a nuvem”. E é exatamente neste ponto de maturação que soa a corda sensível e delicada de seu fazer poético, enriquecido por imbricações, onde texto e intertexto se amalgamam num perfeito conúbio de fundo e forma.

         Está-se diante de uma poesia, toda ela essencial, que atinge diretamente o cerne da palavra, tocando de chofre as fontes emocionais. Nela, não há concessões a desbordamentos retóricos, porque essa poesia se alimenta e sustenta de seu substrato, prescindindo do apoio artificioso de ornatos estilísticos.

         Ora permeada de lirismo, ora de  desataviado realismo, a poesia de Lena revisita por vezes o inefável ou se detém nos duros instantâneos de uma urbe conturbada, presente e passado justapondo-se porque por ambos o futuro é construído.

         O timbre evocativo de alguns poemas seus, resgatando flagrantes domésticos de um quotidiano sepultado pelo fluir do tempo, avizinha-se  congenialmente à humildade de Bandeira  e, pela plasticidade, do olhar de Adélia Prado. Mas essa, digamos, quase afinidade poética não faz senão rearfirmar o continuum de que se reveste o tecido da poesia para cuja incessante textura, como acentua Dufrenne**, cada poeta é motivado pelos outros a escrever a sua própria  obra pessoal  ─ e de que é exemplo e paradigma, cumpre acrescentar, a obra magna de T. S. Eliot, embasada num “sutilíssimo processo de globalização literária”, conforme anotado por Ivan Junqueira em admirável ensaio sobre o acervo eliotiano.*** Em última análise, todo poeta internaliza e recicla, de algum modo, o que antes dele se escreveu, sem que isso implique, a priori, perda de originalidade.  

         Melhor do que ninguém, Lena o diz em seu lapidar soneto “Lirismofagia”:

 

         Canibal, me alimento de poetas.

         Sugo o sangue dos versos. Nas leituras

         um olhar caçador de formas puras

         seu arco impunha e lança agudas setas.

 

         Rasgo a carne do texto, enfio o dente

         nas vísceras, essência da poesia.

         O que antes, sob a pele, se escondia,

         agora, a  descoberto, a língua sente.

 

         Saboreio fonemas. Sinto o gosto

         dos sons em harmonia. A frase corto

         e recorto e retalho e enfim devoro.

 

         Depois de satisfeita, me recosto.

         Em mim já se incorpora o poeta morto.

         O ritual se encerra. Rio e choro.

 

         Assim, em nosso sentir, a obra de Lena Jesus Ponte se apresenta peculiarizada e valorizada por sua marca matricial, que a torna única, como contributo seu ao universo da poesia.

         Por vezes, a contemplação do teatro planetário acende na poeta o viso da ironia, como no belo poema “Adivinha”:

 

         Em que segundo exato

         rompeu-se o último fio da corda esgarçada?

                       

         Em que fração de tempo

         adorados deuses quedaram-se soterrados nas ruínas?

                       

         Quem permitiu

         a mudança do sumo em bagaço?

 

         Quem demitiu o palhaço?

 

         Talvez porque, especulemos, seja a ironia o derradeiro refúgio do espírito ante a implacabilidade da vida...

         Observe-se, ainda, como o verso final de “Adivinha”, a indagação sarcástica e cortante de seu fecho, transgride a linguagem do poema, rompendo a associação de imagens e metáforas ali estabelecida e, no entanto, a ela se integrando para introduzir um novo e inusitado sentido. Somente a autêntica poesia detém esse poder de transfiguração da palavra.

         Em outras vezes, panteisticamente, o sentimento poético de Lena mergulha no ser-não-ser, como ressumbra dos poemas “Desapego” e “Oração ao barro”, onde, antevendo o porvir que a todos espreita, com humildade, exclama

 

         Barro irmão,

         que a você eu volte e de você renasça meu ser,

         argila pura abraçando tudo.

 

         Ou seja, o eterno devir, mais do que crença, talvez a visceral esperança de uma perpétua permanência no solo onde fincamos nossas precárias raízes.

         Na segunda parte de seu livro, curialmente nominada “Canto em gaiolas”, a poeta opta predominantemente pela forma fixa do soneto, que versa com absoluta desenvoltura e  técnica, celebrando em alguns deles as suas predileções literárias. Exemplo fidedigno de seu total domínio da escritura poética, o esplêndido soneto “Clareza” vale ser aqui transcrito:

 

         Onde a chama da vela que há bem pouco ardia?

         E a imagem do meu pai no espelho refletida?

         Que é do calor do sol quando findou o dia?

         Quando chegou a morte, pra onde foi a vida?

 

         Em busca de repostas me desesperava,

         na ilusão de o mistério, enfim, esclarecer.

         Um sentido pra ser, em vão, eu procurava:

         que adiantará plantar, se um dia hei de morrer?

 

         Quando, humilde, entendi que sou de um todo parte,

         de um grande poema épico não mais que um verso,

         senti que o desapego da matéria é arte,

 

         um caminho de paz, que à compreensão conduz.

         Em mutação constante está todo o universo.

         Podem queimar-se as lâmpadas; não morre a luz.

 

         Inaugurando a última parte de Ávida Palavra, dedicada à tênue tessitura dos haicais, assim se expressa a autora:

                  

         Suave ruflar de asas.

         Um verso emplumado ensaia

         seu primeiro vôo.

 

         Vôo, diga-se a propósito, que se espraia ao longo das páginas numa viagem propiciadora de visões epifânicas, de puro alumbramento. Eis alguns desses haicais, leves e intensos, segundo a fórmula canônica estratificada por Bashô até nossos dias:

 

         Som de ave-maria.

         Pousa um anjo no compasso

         e abençoa o dia.

 

         ****

         Onde existe afeto,

         nascem flores do impossível,

         o talvez é certo.

 

         ****

         Cuidadoso, o pai

         descascava a tangerina.

         Perfumava a infância.

 

         A poesia de Lena tem muitas vozes que, multíssonas, amadureceram sua dicção mais completa e consumada  na diversidade dos ritmos que percorre, transmigrando, sem perda de substância,  da disciplina estreita dos haicais ao cantabile das redondilhas; do cânone severo dos sonetos ao horizonte aberto dos versos livres.      

             Desse modo, magistralmente, a poeta elabora sua síntese, tecendo e destecendo tramas, na urdidura de poemas bem concebidos e escritos com mestria, endereçados às mentes e corações. A poesia de Lena Jesus Ponte  habita terras altas, onde as palavras adquirem asas. Soube multiplicar os talentos a que alude no nostálgico poema “Legado”:

 

         Na partilha do bem,

         o pai legou-me o mais simples desejo de miudezas,

         coisinhas por muita gente desprezadas:

         um musgo persistente; um cisco em faixa de luz;

         algumas lantejoulas de peixe escamado pela empregada:

         um ninho de beija-flor esquecido em velha árvore

         e uma meia dúzia de palavras.

                      

                                                   =======================

                                                    

 

 NOTAS DO PREFÁCIO

 

* Martin Heidegger, Approche de Hördelin, trad. de H. Corbin et alii, Paris, Gallimard, 1962.

 

**Mikel Dufrenne, O poético, trad. de Luiz A. Nunes e Reasylvia K. de Souza, Editora Globo, 1969.

 

*** Ivan Junqueira, Eliot e a poética do fragmento, in Poesia, Editora Nova Fronteira, 1981.               

                       

                       
 

 

Manoel de Barros

 

Augusto dos Anjos

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

Lena Jesus Ponte


 

Alguns poemas

do livro Ávida Palavra,

2007

 

 

 

 

1. POEMAS DE VERSOS LIVRES

 

 

PLENA

 

Hoje sou alvo;

amanhã, seta.

 

Desperto utopia;

adormeço sem meta.

 

Amanheço soneto;

anoiteço sem métrica.


 

               

TEMPO DE PLANTIO

 

Tuas mãos semeiam paz no meu terreno ventre.

Fértil do bom adubo,

floresço o ano inteiro.

 

Deitada, estendo-me em planícies e searas,

sob a aragem livre e leve de teus afetos maduros.

Recendo a fruta sazonada.

 

Tantos anos de vida (arando mundos

reais e de sonhos) me fecundam. Aceito

esse teu ser de sol e ar e água e pólen feito.


 

                        

NEVE SOBRE BRASA

 

A pele da matéria vida

descasca ao sol.

Sem protetor, se expõe por inteiro

a cidade suada, em carne viva.

Um câncer social se adivinha,

se avizinha. As calçadas gritam.

 

Em gabinetes refrigerados,

o ar condicionado dos economistas

transforma em estatística

o que se mostra víscera.

Agoniza o corpo urbano

sob o olhar gelado das teorias.


               

 

ESPELHO

 

Pari a mulher velha

que não gestei.

Sem leite ou colo,

acalanto o espanto.


 

 

2. SONETOS

 

SONETO VOLÁTIL

 

Pra onde vão os seus olhos, pra que pontos de fuga,

ariscos galopes em savanas africanas?

Pra onde escorre esse rio sem leito, incontido,

por que grotas se infiltra, rolando entre seixos?

 

Pra que estranhos planetas seus olhos viajam

de inabitáveis mundos, inóspitas paisagens?

Em que profundos universos abissais

nadam fosforescentes enguias submarinas?

 

Como escapam, mercúrio, dos dedos fugindo...

Segredos ou medos por trás das cortinas

preservam cativos sentimentos despidos.

 

Saltitam seus olhos por sobre reticências...

Não param no ponto onde habitam meus olhos,

meninos aflitos rompendo distâncias...


                        

 

POESIA LIVRE

 

Olho você, meu pai, buscando a vida

que ainda possa existir no corpo morto.

A dor de todo mundo, então, suporto

por não mais ver chegadas, só partida.

 

O que foi texto é página vazia?

Meu coração procura uma resposta.

Quero crer ser a morte uma proposta

maior que tudo aqui. Um desafio.

 

Livre, agora, do tempo, sem espaço,

incorporado à terra, ao fogo, ao ar,

à água, não mais é meu; somente o abraço

 

de tudo quanto existe no universo.

Outra forma, difícil de alcançar:

a Poesia enfim livre do verso.


 

3. HAICAIS

 

Morre a tarde. Os galhos

sem vida são esqueletos.

O mais é mistério.

                *

 

Em degraus de pedra.

cansada, a sombra repousa

numa tarde quente.

                *

 

O Tempo tem tempo.

O burrinho não se apressa

mastigando as horas.

                *

 

Onde existe afeto,

nascem flores do impossível,

o talvez é certo.

 

 
   
 
 

 

 

 

 

04.01.2008