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			Lena Jesus Ponte 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
			 
			
			2. A prosa: Um pé na 
			realidade, outro na fantasia 
			
			  
			
			  
			
			2.1. O pé na realidade 
  
			
			2.1.1. Em 1980, ainda com a 
			pequena experiência da publicação de um livro de poesias e a 
			participação numa antologia poética, Wanderlino Teixeira Leite Netto 
			resolveu, “por própria conta  
			e risco”, segundo suas palavras, lançar seu primeiro trabalho em 
			prosa – o livro de crônicas De individualidades preservadas à 
			incredulidade do meu zíper, coletânea de 34 textos, modesta do ponto 
			de vista gráfico, mas já revelando um escritor com visão de mundo e 
			estilo próprios. 
			
			Desponta o cronista, cujo olhar atento 
			observa e analisa tudo que ocorre à sua volta, desde pequenos fatos 
			do quotidiano até as eternas e grandes questões existenciais, 
			passando por vivências pessoais, por tipos humanos curiosos, pelas 
			mudanças de comportamento, pelas injustiças sociais... Sua palavra 
			surge da necessidade de expressão de perplexidades, da ânsia de 
			refletir a respeito de todos os aspectos da realidade, do desejo de 
			instigar o leitor para que partilhe com ele seus questionamentos 
			filosóficos. Na crônica que dá nome ao livro, afirma: “Fiquei 
			matutando cá com  
			meu zíper, que matutar com botões é coisa do passado, sobre esse 
			pensamento já meio gasto, quase um chavão, mas ainda capaz de 
			provocar coceira em quem gosta de divagar” (p.57). Eis aí o cerne 
			desse trabalho – a divagação, ao mesmo tempo profunda e leve, sobre 
			todo e qualquer acontecimento que desperte a “coceira” reflexiva em 
			quem não se contenta em viver (ou sobreviver) na superfície. No 
			último texto, o autor reforça: “Não me neguem a condição de ser 
			pensante, de agente modificador...” (p.89).  
			
			Para escrever suas crônicas, aciona 
			muitas vezes a memória, como em “Minha primeira mulher pelada” 
			(p.23), “Era só pular o muro” (p.31), “Tempos depois, o desabafo” 
			(p.36) e “O que será que serei?” (p.62), em que emergem liricamente 
			do passado a lembrança do primeiro alumbramento, a recordação 
			saudosa da imagem do avô, a namoradinha da adolescência e os 
			diferentes anseios da criança e do jovem que foi. Nesses momentos, a 
			escrita representa uma “busca do tempo perdido” (“Desfile da 
			esquadra nas águas do humor lacrimal” – p.88). 
			
			Para outras crônicas, parte de 
			acontecimentos do presente, que lhe chegam pelo telefone, pelo 
			jornal, por conversas ou por outras vivências. Nesses textos, 
			aparece o crítico mordaz e o incansável pensador, que reflete sobre 
			o ato de viver, sobre os relacionamentos afetivos, sobre a 
			relatividade das ditas verdades, sobre os limites (ou a falta deles) 
			entre sonho e realidade, loucura e sanidade... Nessas crônicas de 
			caráter reflexivo, ocorrem com insistência frases interrogativas, 
			nas quais Wanderlino envolve o leitor num jogo de dúvidas e 
			alternativas de caminhos e respostas. Essas perguntas são, muitas 
			vezes, um recurso não só de desnudamento de sua ideologia como 
			também de persuasão. “Dicas”(p.44) constitui um exemplo marcante 
			desse tipo de procedimento. 
			
			Mesmo quando aborda temas sérios, o 
			autor vale-se do humor, seja pela presença constante dos jogos de 
			palavras (“Estar só, ficar só, só estar” – p.13) e trocadilhos 
			(“Confiante pisa terra firme. Desconfiado, terrenos movediços. 
			Cruz-crédulo!” – p. 56), seja pela linguagem descontraída, coloquial 
			(como cabe a esse gênero literário) que, embora elegante e correta, 
			não dispensa as gírias do momento (“Croniquinha quase mórbida” ... 
			“O defunto ali, paradão, presenciando tudo, duplamente impotente. 
			Houvesse jeito, não duvidem, botava língua e dava banana!” – p. 17), 
			seja pela revitalização de clichês e provérbios (“Aí é meter o pé na 
			estrada. Nessa cumbuca caçador nenhum bota a mão.” – p. 14). 
			
			Na obra em prosa, Wanderlino não 
			esconde seu lado poeta: utiliza toda sorte de ricas metáforas 
			(“Verdade é barro. Serve para moldar santos e demônios. É ferro. 
			Nela são forjados a arma que mata e o crucifixo. É bálsamo e 
			cicuta.”– p.28), antíteses (“As vitórias graúdas têm sabor de 
			mariola e gosto de jiló; cheiram a bode e goiaba madura; ardem feito 
			pimenta e refrescam que nem hortelã. São regadas de suor e lágrimas, 
			marcadas por sorrisos e vincos na testa...” – p.61), recursos 
			fônicos expressivos (“Sem ritos. Sem mitos. Sem planos plenos.” – 
			p.18) e neologismos ( “oftalmocrônica” – p.15, “ressurreicídio” – 
			p.21, “almatizar” – p.33, “issoaquilo” – p. 49). Faz uso de frases 
			curtas, muitas delas nominais, bem ao estilo dos primeiros 
			modernistas (“Meu avô era polêmico. Combativo, venerado, amado e 
			desamado. Acima de tudo um prepotente.”– p.31). 
			
			Enfim, sua estréia em prosa já revela 
			um escritor criativo, um artífice da linguagem. 
			
			2.1.2. Um ano depois, lança 
			Forca de seda, também em edição modesta, datilografada, produção 
			independente. Na parte I, crônicas; na II, uma narrativa que 
			estabelece curioso e criativo diálogo intertextual com poemas de 
			Carlos Drummond de Andrade; na III, um retorno à poesia, com poemas 
			inéditos. Apesar da qualidade individual de cada segmento, trata-se 
			de livro sem unidade, resultado da dificuldade de um escritor ainda 
			desconhecido em publicar por conta própria. Aqui, neste artigo, 
			interessa-nos a análise da primeira parte, com seus 24 textos em 
			prosa. 
			
			Se o primeiro livro de crônicas 
			caracterizava-se pela leveza e humor, este apresenta um tom de maior 
			seriedade e pessimismo, a começar pelo primeiro texto, que dá nome 
			ao livro (“Volto a ruminar silêncios. Acaricio rosas. Cutuco 
			espinhos. Desmantelo o tabuleiro. Saio, o pescoço envolto numa forca 
			de seda.” – p.14). O caráter reflexivo permanece, com abordagens 
			sobre a vida e seus paradoxos, o comportamento do homem urbano, a 
			relatividade de tudo, a insensibilidade do mundo, os muitos “mins” 
			dentro de nós, a ética (e a falta de), o ato de viver, o casamento e 
			o descasamento, o binômio vida/morte, o amor, os relacionamentos 
			afetivos, o amadurecimento, os recomeços... 
			
			Não ocorrem mudanças significativas no 
			estilo em relação ao livro anterior. Continua a abordagem do leitor, 
			com o envolvimento dele em reflexões que aparecem pelo uso freqüente 
			de frases interrogativas e do vocativo. Decorrente da persuasão ao 
			receptor, também, a utilização do imperativo. Tais recursos 
			constituem marcas características da função conativa da linguagem 
			(“Assim, amorável leitor, prudência quando alguém lhe disser que 
			muito o ama. Afinal, como relacionar pouco com muito, em se tratando 
			do imensurável?” – p.34). Permanecem, ainda, os criativos jogos de 
			palavras típicos do lado poeta de Wanderlino, que contribuem para 
			amenizar o tom mais denso e tenso dessas crônicas (“Entre afagar-se 
			e afogar-se, embora o ser humano comprovadamente prefira o afago, 
			cada vez mais se afoga.” – p.22; “(Amor) tecendo” – p.33; “Assim 
			meus finados: em nada confinados. Pelo que, mais que nunca, vivos 
			estiveram nesse dia de choros (des)afinados.” – p.41; “Partes à 
			parte, corrijo o rumo...” – p.48). E a criação de palavras, embora 
			em menor quantidade: desachar (p.15), amorômetro (p.33). 
			
			2.1.3. Em 1983, já sob a 
			chancela de uma editora (Shogun Arte), o autor publica Cios & 
			entressafras. Conforme identifica Jacy Pacheco no prefácio, essa 
			obra é constituída de 52 crônicas curtas (em geral), mas que 
			apresentam “títulos palavrosos”, de tamanhos propositadamente 
			desproporcionais, à maneira dos clássicos Rabelais e Voltaire e do 
			contemporâneo J. Rodrigues Matias.Wanderlino já utilizara tal 
			procedimento nos dois livros anteriores, mas de forma esparsa. Aqui, 
			há clara intenção de provocar um efeito de estranhamento, se 
			confrontarmos os títulos com os textos em si mesmos, estes, em sua 
			maioria, cada vez mais sintéticos. Alguns desses títulos geram, 
			também, um humor insólito, por meio da coordenação de elementos 
			díspares, como no exemplo a seguir: “Um Columbiforme Irreverente, o 
			Não Vivido e Inibidores Decretos-Leis, em Manhã de Sol Preguiçoso”. 
			
			Continua a desenvolver, com abordagens 
			diferentes, temas já tratados anteriormente – elementos de seu 
			universo autobiográfico; tipos humanos interessantes; os 
			afastamentos impostos pela vida; as alterações decorrentes da 
			passagem do tempo; as mudanças nos comportamentos sociais; a vida 
			dentro dos limites exigidos pela “forca de seda”... Lirismo, crítica 
			e reflexão filosófica sempre presentes, ora de forma profunda, ora 
			leve e despretensiosa. Algumas imagens já usadas em crônicas e 
			poemas anteriores são reutilizadas em novos contextos ou serão 
			retomadas em livros posteriores (alguns exemplos nas crônicas das 
			páginas 25, 29, 31, 61 e 74), estabelecendo uma relação intertextual 
			dentro de sua própria obra. 
			
			A temática recorrente da relembrança 
			do seu passado aparece nesse livro sob um viés proustiano. Aqui não 
			há o chá e a madelaine como elementos desencadeadores de um retorno 
			ao tempo perdido, mas existe o suco de goiaba (“No momento em que o 
			garçom encheu-me o copo, aspirei cheiro do quintal da casa de meu 
			avô. Ao comentar, provoquei espantos e desconfianças. Tenho culpa de 
			não possuírem narinas assim sensíveis? De que refresco de goiaba não 
			os faça relembrar, sou culpado? Que me permitam, porém, eu que tenho 
			nariz de farejar saudades.” – p.58), a goiaba (“Da chácara na qual 
			reside, minha irmã trouxe goiabas, muitas, que colocou sobre a mesa, 
			numa bacia de plástico. Mal entrei, aspirei infância, pois que minha 
			meninice cheirava a goiaba madura... – p.19) e o caleidoscópio (“Na 
			confusão do formigueiro no qual se transformou o centro da cidade, 
			vislumbro, sobre um tabuleiro, algo que há muito não via e que, na 
			infância, encheu-me de encantamento ... Examino o objeto, 
			experimento. Ao fazê-lo, volto no tempo, lembro-me pirralho.” – 
			p.57). 
			
			O recurso de envolvimento do leitor 
			ainda aqui aparece, mas em alguns textos de maneira menos dirigida, 
			já que deixa as reflexões em aberto, apontando várias possibilidades 
			de resposta, o que pressupõe uma participação do receptor para além 
			do texto (“Você, leitor, já se viu numa barra assim?De que forma 
			equacionou? Optou pelo simultâneo? Preferiu o já sabido? Achou 
			melhor arriscar-(se)?Ganhou mais que perdeu? Teria ganho ainda mais, 
			pela perda maior, se fosse outra a escolha?” – p.25). Tal abordagem 
			torna interessante a utilização desse tipo de texto em aulas de 
			redação. 
			
			Nesse livro Wanderlino lança mão de 
			vocabulário menos coloquial que nos anteriores. Recorre mesmo a 
			palavras que causam algum estranhamento pelo seu pouco uso no 
			quotidiano, sendo talvez mais um recurso de fino humor. Também geram 
			esse efeito os jogos de palavras, os quais sempre utilizou também 
			com função poética (“Temo, o tema é sempre delicado.” – p.29). 
			
			Ocorrem, com freqüência, procedimentos 
			metalingüísticos que promovem o desencadear da reflexão, como 
			acontece nas crônicas das páginas 31, 66, 70 e 73. Às vezes, o 
			cronista chega mesmo a aludir ao Dicionário Aurélio. Esse voltar-se 
			para a própria linguagem reflete a consciência do fazer literário 
			como trabalho, ofício, que se aprofunda cada vez mais em Wanderlino 
			Teixeira. Prova disso é o título do livro, metáfora das fases do 
			processo de criação literária segundo esse autor: “Tenho sido 
			indagado sobre a forma pela qual se processa, em mim, o ato de 
			escrever (...) pode a chispa surgir em ocasiões assim, e não deixo 
			escapar (...) Outras vezes, a idéia não faísca (...) Assim vou, 
			baseado na vida, no cotidiano, nas gentes, na tragicomédia, 
			aparelhando percepções, entre cios e entressafras.” – p. 17. 
			
			2.1.4. O próximo livro, 
			Movimento circulatório (1985), representa um desdobramento de Cios e 
			entressafras. Os mesmos títulos longos, que servem de estímulo à 
			curiosidade do leitor, no dizer do prefaciador Vilmar Lassance; 
			semelhantes procedimentos metalingüísticos; envolvimento do 
			receptor; freqüência de frases interrogativas; retorno a alguns 
			temas já tratados em poesias; uso de linguagem poética nas reflexões 
			existenciais; presença de elementos autobiográficos; a crítica e a 
			utopia.  
			
			Nele aparece um texto que representa 
			verdadeira profissão de fé da crônica. Leia-se o fragmento a seguir 
			– p.15: 
			 
			Meu olhar intromete-se por uma janela entreaberta. Nada 
			indiscreto, porém, pois vagava distraído. Não fosse a morosidade do 
			trânsito, certamente passaria ao largo. Em conseqüência, ligou-se, 
			fez-se atento. Já não passeia displicentemente. Observa, sonda, 
			examina, estuda, considera, capta, e me faz chegar sensações. A 
			partir daí, assumo o comando e a responsabilidade. Inclusive pela 
			intromissão, que já não se faz isenta, pois me deixo emaranhar na 
			teia do pensamento. Absolvam meu olhar, ele apenas vagava. Eu, sim, 
			incorrigível, dei trela à imaginação. 
			
			  
			
			Ou seja, numa linguagem lírica, 
			Wanderlino como que explica esse gênero literário. 
			
			O livro, que não apresenta novidade 
			expressiva em relação aos anteriores, contribui, pela qualidade dos 
			textos, para o aprimoramento estilístico do autor, inclusive no que 
			concerne à concisão na linguagem escrita, que será sua marca na 
			maturidade. Na página 34, eis uma declaração reveladora: “Também me 
			agrada quem tem o poder da síntese, quem consegue com palavras 
			poucas muito dizer.” – p.34 
  
			
			2.2. O pé na fantasia 
  
			
			2.2.1 Passados dez anos da 
			publicação do último livro de crônicas, Wanderlino Teixeira se 
			propõe a “aproveitar os fragmentos factuais, os episódios fugazes do 
			cotidiano (tomando emprestada a sua experiência como cronista) e 
			transforma-os em fingimento, em ficção”, conforme avalia Iterbio 
			Galiano no prefácio a Noturno em mi bemol. 
			
			Sai, pois, do terreno da livre 
			reflexão comandada pela mente, do posicionamento direto diante dos 
			fatos, da inserção de sua visão pessoal e valorativa da realidade e 
			envereda por narrativas ficcionais. Se nos quatro livros de prosa 
			anteriores imperava a razão, este inaugura o primado da imaginação. 
			Não que o autor se tenha afastado do real. Ao contrário, este é 
			revelado a todo momento nos textos. Só que, agora, transfigurado, 
			recriado, de forma a levar o receptor a percebê-lo, por caminhos 
			menos óbvios, de forma sutil. Cúmplice do faz-de-conta, o leitor 
			viaja pelo prazer da narrativa bem contada, mas no fim da estrada 
			percebe que pode enveredar por outras leituras que os textos, em sua 
			polivalência significativa, sugerem. 
			
			Embora o imaginário esteja agora no 
			poder, o autor mostra ser a realidade muitas vezes bem mais absurda 
			que a ficção. Pinça do noticiário fatos aparentemente normais, porém 
			bizarros em essência, e transforma-os em contos dramaticamente 
			realistas como o pungente “O fim de semana da velha senhora”. Ou 
			narra histórias verídicas que parecem insólitas, porque insólita é a 
			realidade mesma que as inspirou (“A paz dos ruminantes”). Visita, 
			ainda, a narrativa alegórica de caráter psicológico (“Meia-volta, 
			volver”, “Noturno em mi bemol”, “O espantalho e a vaca”), social 
			(“Edição extraordinária”) ou comportamental (“O jogo dos espelhos”, 
			“Efeitos especiais”, “Rapunzel de cabelos presos”). 
			
			Apresenta-se ora lírico (“Andorinhas 
			da Áustria”), ora sarcástico (“O síndico”, “O motorista de Sua 
			Excelência”, “Entre aspas”), ora reflexivo (“Enfim, sós”, “Ossos do 
			ofício”), ora um simples contador de causos (“A loura da luz lilás”, 
			“O vôo da mulher-pássaro”). 
			
			Esta obra revela um Wanderlino 
			extremamente criativo na temática. Quanto à linguagem, irá 
			aprimorar-se mais no próximo livro de contos. 
			
			2.2.2. O processo iniciado com 
			Noturno em mi bemol acentua-se em Retrato sem moldura (1999). A 
			fértil imaginação do contista cria situações inusitadas ou desvela 
			realidades contundentes por meio de uma linguagem paradoxalmente 
			metafórica. As narrativas curtas conduzem também à reflexão e à 
			crítica, quase sempre por meio do absurdo. Aliado a essa conduta, 
			uma abordagem poética da vida. Os limites (molduras?) entre 
			realidade e fantasia são abolidos por uma visão que não se deseja 
			apenas racional.  
			
			Nesse livro, desponta o contista no 
			esplendor de sua maturidade literária, com uma linguagem que, se 
			antes já se mostrava enxuta, agora prima pela máxima concisão, pela 
			eliminação de artifícios desnecessários. O escritor encontrou 
			definitivamente seu estilo. A síntese se mostra não só no nível 
			frasal, mas também na macroestrutura dos contos, reduzidos a seus 
			constituintes essenciais, com alto grau de condensação informativa e 
			poética. 
			
			Os três contos nos quais melhor se 
			realizam as três vertentes do livro – a crítica, a filosófica e a 
			lírica – são “Discurso de posse”, “O ocaso do artista” e “As coxas 
			de Hermínia”, textos que brilhariam em qualquer antologia de 
			literatura brasileira contemporânea. Dois minicontos revelam sua 
			visão sobre o ser poeta e a poesia: “Palavras, imagens e sons” e “O 
			novo olhar de João”. Há, ainda, narrativas em que os nomes 
			atribuídos aos personagens são palavras caracterizadoras de suas 
			personalidades. É o caso de “Florescência”, “Esmeralda”, “O 
			seqüestro”, “O navegante e a flor”, “Bonequinha alemã”, “Dolores”, 
			“Olhos delatores”, “Paixão de vendaval”. O autor continuará usando 
			tal recurso no próximo livro.  
			
			2.2.3. Em 1996, Wanderlino 
			viajou a passeio ao Peru e à Bolívia, tendo ficado muito 
			impressionado com o que viu e ouviu. Fez anotações e, de volta, 
			publicou um livro sobre o qual escrevi o texto reproduzido a seguir. 
			
			Destrói-se, pela força bruta ou pela 
			sutil dominação ideológica e cultural, a História de um povo. Mas 
			não suas histórias, seus mitos. Esses permanecem, férteis, 
			fecundando narradores de outras épocas e de lugares distantes. 
			Revisitados, reinterpretados, atualizados, os mitos antigos, com sua 
			linguagem cifrada, irmã da Poesia, emprenham de múltiplos 
			significados os textos contemporâneos. 
			
			Assim ocorre com Andanças Andinas. 
			Nele, Wanderlino Teixeira Leite Netto descarta a alternativa fácil 
			de documentar o exótico. A uma excursão turística superficial, 
			prefere as trilhas não oficiais da História de nossos irmãos 
			sul-americanos. Numa atitude de respeito e reverência, dedica sua 
			obra aos “vencidos”, símbolos dos perdedores de todo o mundo aquém e 
			além dos Andes. A partir da voz dos conquistados, o autor traz à 
			tona costumes, rituais e crendices, sobreviventes de terremotos e 
			catequeses, registros pulsantes do imaginário daqueles povos, 
			expressões de suas sociedades. 
			
			Wanderlino, contudo, não se restringe 
			a catalogar mitos. Dialoga com eles, reveste-os com sua visão de 
			homem urbano, brasileiro, de final do século XX. Mistura-os à sua 
			mitologia pessoal, reinterpreta-os livremente, atribui a eles novos 
			sentidos. Impregna o folclore local de impressões e sentimentos 
			individuais. Lança sua sensibilidade invasora, porém não predatória, 
			sobre aquela realidade distante. Lê os Andes e nos reconta suas 
			(deles e dele) histórias de ouro e prata. 
			
			Pizarro às avessas, conto por conto, 
			recoloca as pedras de um cenário devastado pelo tempo e pelas 
			conquistas espanholas (em suas vertentes bélica e religiosa). Conto 
			por conto, reconstitui rostos de uma civilização decapitada. Vai 
			além da realidade andina, entretanto. Escrevendo sobre os juanitos, 
			metaforicamente nos alerta para a necessidade de repensarmos nossas 
			desgastadas relações com a coletividade e com nós mesmos. Leva-nos a 
			reconsiderar nossos mitos contemporâneos, tão vinculados a idéias de 
			dominação, poder, individualismo. Remete a cultos antigos ligados ao 
			Sol, à Lua, às águas, à Terra e, com isso, denuncia nossa pequenez: 
			nós, modernos super-heróis de coisa alguma, pobres super-homens 
			rompidos com a “Pacha-Mama” (Mãe-Terra). 
			
			Simples e ao mesmo tempo complexos, 
			como as construções incas, os contos de Andanças Andinas se encaixam 
			num todo coerente e harmonioso. Livres da argamassa desnecessária de 
			uma linguagem rebuscada, por certo também resistirão ao tempo. 
			
			2.2.4. Seis anos mais tarde, 
			novo livro: Quatro cantos, narrativa alegórica em terceira pessoa, 
			que tem como protagonista o Visitante, personagem flanêur, que 
			percorre quatro cidades imaginárias, tudo observando, ora lírica, 
			ora filosoficamente. Como um camaleão, disfarça-se entre 
			personagens-tipos, com eles interage, conversa, registra 
			comportamentos, sem se deter em julgamentos, sempre em trânsito, 
			nada deixando de si, nada levando de onde passa. De fora o autor, 
			pela escolha das situações abordadas e seleção das palavras usadas, 
			ele, sim, deixa a marca de sua percepção crítica, que desmascara 
			realidades muito conhecidas nossas. 
			
			O título, de significação 
			intencionalmente ambígua, já anuncia tratar-se de livro que mais 
			sugere do que explica, que abre margem a reflexões para além da 
			última página: leitura de reticências, não de ponto final. As quatro 
			cidades podem ser visitadas pelo leitor sem ordem definida, pois 
			mesmo integradas a um todo, mantêm independência. O mesmo ocorre com 
			alguns textos, dentro de cada parte, que permitem autonomia de 
			leitura. 
			
			Antes, Ítalo Calvino e Ferreira Gullar 
			já haviam realizado caminhadas literárias por cidades oníricas, 
			recriando, de maneira contemporânea, o gênero “literatura de 
			viajantes”. O próprio Wanderlino, em Andanças andinas, percorreu 
			ruas atuais e mitos pré-colombianos, visitou personagens do passado 
			e do presente, inventou contos com sabor de lendas incaicas. No 
			fundo, esses três autores sempre souberam que toda história bem 
			contada é, por si só, uma viagem para quem escreve bem como para 
			quem lê. 
			
			2.2.5. Em 2006, Wanderlino 
			conclui Beijo de língua, ainda inédito, uma coletânea de contos, 
			alguns dos quais já publicados no jornal O Correio e na revista O 
			Cais. O prefácio, por mim assinado, encontra-se transcrito a seguir. 
			
			“Gosto de sentir a minha língua roçar 
			a língua de Luís de Camões”. Com esses versos, Caetano Veloso inicia 
			a música em que reverencia a “última flor do Lácio”, expressando o 
			gozo de ser um artífice atual de nosso idioma e, ao mesmo tempo, 
			participar de uma tradição literária que remonta a séculos. Assim 
			como ele, cada compositor, cada poeta, cada contista, cada 
			romancista, em cada época, saboreia o verbo, lambe-o, devora-o e 
			devolve-o em forma de textos doces ou amargos, que nos alimentam o 
			espírito. Esses artistas da palavra nos dão a beijar a língua, essa 
			sedutora fatal. Daí resulta nosso sensual prazer de recriar suas 
			obras por meio de múltiplas leituras. 
			
			Com o presente livro, também 
			Wanderlino Teixeira Leite Netto volta, agora, a roçar sua língua nas 
			de tantos outros criadores que há milênios vêm, oralmente ou por 
			escrito, perpetuando o saboroso ato de produzir e transmitir 
			histórias, inventar enredos, edificar mundos imaginários, com seus 
			personagens, lugares e tempos de sonhos. Neste seu trabalho 
			pressentem-se, por exemplo, outros roçares: de Eduardo Galeano, 
			Marina Colasanti, Maria Lúcia Simões, para citar apenas três 
			influências. 
			
			Há décadas, Wanderlino se apropria de 
			nosso idioma com elegância, na criação de uma obra tão consistente 
			quanto extensa, que transita por diversos gêneros: poesia, crônica, 
			conto, biografia, historiografia e ensaio. Administrador por 
			profissão e pessoa lógica por temperamento, é no conto que se 
			liberta, em vários momentos, das amarras da razão e se permite 
			trilhar, livre de cânones, os caminhos inclassificáveis do 
			imaginário, as veredas do nonsense, os atalhos do fantástico. Já em 
			livros anteriores – Noturno em mi bemol e outros contos ligeiros, 
			Andanças andinas, Retrato sem moldura e Quatro cantos – deixou um 
			pouco de lado o arguto olhar anterior de cronista, voltado para a 
			realidade imediata, e acionou o olhar delirante de criador de 
			narrativas em grande parte alegóricas, sempre pronto a ver a 
			essência por trás das aparências e a desvelar, na mesmice do 
			quotidiano, o insólito e o surpreendente. 
			
			Nessa linha prossegue, com esta 
			coletânea de histórias que tangenciam o poético, nas quais se 
			abraçam sem preconceitos o real e o fictício, o lirismo e a crítica, 
			a observação do prosaico e a reflexão filosófica, o humor e a 
			seriedade, a relembrança do passado e as vivências do presente. Por 
			trás de histórias singelas, o leitor encontrará o eco de reflexões 
			profundas sobre o comportamento humano, a vida, a passagem do 
			tempo... Pelas brechas de uma linguagem linear, escorreita, 
			aparentemente previsível, vai deparar-se muitas vezes com o 
			inesperado. Sem ortodoxia, abarca tanto o conto de talhe tradicional 
			quanto o miniconto, este tão a gosto de autores contemporâneos como 
			Dalton Trevisan e Victor Giudice. Emprenha de simplicidade certos 
			textos; em outros se permite ousadias cortantes, a exemplo de 
			“Arlete, Arlete”, um dos pontos mais altos do livro. Explicitamente 
			dá verdadeiro beijo na língua em algumas narrativas – “ Pelo 
			avesso”, “Metamorfose”, “Sessão solene”, “No mundo da Lua”, “Ponto 
			final” – bem como em certos nomes próprios, signos carregados de 
			elementos caracterizadores dos personagens. Com esse procedimento, 
			faz aflorar o poeta escondido. Sabe que a criação literária consiste 
			em um jogo sensual de/com palavras e sentidos. 
			
			No livro Índia, um olhar amoroso (Ediouro, 
			2000), Jean-Claude Carrière, aludindo ao gosto muito antigo pela 
			história e pela arte de contá-la naquele país do Oriente, afirma: 
			“Foi dito em algum lugar que é preciso escutar as histórias, porque 
			é agradável e, às vezes, nos torna melhores”. Também aqui e agora, 
			sairemos mais ricos interiormente após a leitura desta nova obra de 
			Wanderlino Teixeira Leite Netto. 
			
			2.2.6. Entre Andanças andinas e 
			Retrato sem moldura, Wanderlino, a pedido de sua filha, à época uma 
			criança, resolveu escrever um livro voltado para o público infantil. 
			Surgiu-lhe a idéia de criar a história de uma foquinha de circo que 
			se recusa a ser amestrada (Paçoca, a foca que sonhava em ser poeta, 
			livro do qual sou co-autora). Em busca de aventuras, o animalzinho 
			foge, vive aventuras, mas decepciona-se com o mundo fora, retorna, 
			redescobre o circo e percebe que não precisa ir longe para encontrar 
			a poesia. O texto narrativo é escrito em versos. Na segunda parte do 
			livro, há várias atividades com as palavras, visando a estimular, na 
			criança, o gosto pela escrita e pela leitura, principalmente da 
			poesia. 
			 
   
			
			Link para Wanderlino 
			Teixeira Leite Netto 
  
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