Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Lena Jesus Ponte



1. Uma poesia fora do umbigo

 

 

Horácio Pacheco, certa vez, caracterizou Wanderlino Teixeira Leite Netto com poucas palavras: “Um poeta pragmático”. Talvez o perspicaz professor, já falecido, aludisse a um aspecto marcante da poesia desse autor – a ausência de sentimentalismos.

1.1.Seus poemas de Chegança (1977), livro de estréia, já demonstram essa vertente de contenção lírica, que se manifesta na preferência por temas reflexivos. Mesmo em poemas que falam de amor, o assunto é tratado a distância: ora reduzido a conceitos (“Conjugação verbal”); ora aprisionado nas malhas da racionalidade, haja vista as construções subordinativas, com predominância de condicionais e causais (“Viu?”, “Perspectiva”, “Da ânsia de se afagar”); ora devidamente domado pelo humor (“Ciranda do amor liberto”, “Conto da carochinha”); ora condensado no mínimo de palavras essenciais (“Sinalização”), num prenúncio de tendência à síntese, que viria a caracterizar seus textos posteriores, em especial os contos.

Muitas vezes, respondendo à célebre pergunta formulada por jovens estudantes sobre o que o levou a escrever, o poeta reconhece que começou a fazer poesia para ter com quem segredar. Essa motivação encontra-se expressa em “Caracol”, ainda de Chegança. Percebe-se nesse primeiro livro um viés de desaponto com possíveis descaminhos de sua vida ou da própria realidade como um todo, o que poderia tê-lo levado a uma literatura de mero desabafo. Mas essa percepção um tanto pessimista não se manifesta em lamentos piegas, não lhe retira o senso crítico: faz com que transforme dor em reflexão filosófica (“Apologia da solidão”, “Filasofando”, “Mea culpa”); leva-o a brincar com os problemas sérios para, pelo humor, distanciar-se deles (“Prótese”); conduz sua voz à denúncia em poemas tipo manifestos (“Salvaguarda”, “Feliz ano novo”, “Uma ordem”, “Opção”, “Fórmula 1”); enfim, por meio da transmutação poética, seu sofrimento pode ser compreendido por todo ser humano.

Esse livro abriga as primeiras reflexões de quem já não tem fantasias a respeito da realidade (“Chegança”) e busca saídas para a angústia de viver (“Enigma”). Ponto alto dessa obra inicial, o texto “Ambivalência” é aquele em que o autor melhor realiza esse confronto com uma vida sem máscaras e paetês. Nele, a competente construção antitética e a mestria no trabalho com a camada fônica da língua elevam Wanderlino ao patamar de verdadeiro poeta e levam sua poesia muito além, portanto, das intenções de simples desabafo. Não por coincidência, também aos jovens que lhe pedem orientação sobre o ato de escrever ele aponta o caminho do trabalho efetivo sobre a mensagem, da reescritura exaustiva, da elaboração consciente, da utilização dos recursos que a língua potencialmente oferece.

Nessa luta pelo distanciamento da subjetividade derramada, o autor não se afasta, contudo, de seu “eu”, presente em vários textos: em “Elegia de encomenda”, o olho curioso do cronista; em “Filigrama”, um espaço para a esperança; em “Recado pro Drummond”, um diálogo intertextual; em “Perdas”, o tópico do ubi sunt revisitado; em “Ocaso”, elementos autobiográficos tornados universais pela operação transformadora da função poética.

1.2. Em 1981, Wanderlino lança Forca de seda, em cuja terceira parte aparecem oito poemas até então inéditos. Em sua maioria, esses textos apresentam uma atmosfera de pessimismo tanto do ponto de vista existencial (“talvez / eu nem devesse ser poeta” – p.93) quanto social (Afinal correr pra quê/ se o final dessa corrida/ dessa briga descabida/ é um beco sem saída?!...” p.– 96)

1.3. Na sua trajetória literária posterior, com Vide versos (1986), coletânea de antigos e novos poemas, outros temas surgem, mas continuam recorrentes os antigos: o desencanto, o desconcerto do mundo, a sensação de aprisionamento e o conseqüente desejo de liberdade e aventura, o sonho do amor livre de amarras, a frustração com a sociedade, a viagem nostálgica pelo passado... Há momentos de intensa poeticidade: “O homem de la Mancha”, “Anúncio classificado”, “Quebra de sigilo”, “Ao mar, amar”, “Relembrança”, “Vento dos à-toas”, “Alquimia”, Noel tropical”, “Palavras para as palavras”, entre outros.

Por todos os poemas desse livro, o mesmo belo trabalho de ourivesaria com o nível sonoro do idioma, por meio de rimas de diversos tipos, aliterações, assonâncias, paronomásias e anáforas; a busca de comparações e metáforas não desgastadas; a presença constante da antítese (na procura de expressão para a duplicidade de valores, sentimentos e ações contraditórios em si e na vida). Exemplo perfeito da utilização de tais recursos encontra-se no já citado “ Ambivalência”:

Diante desse tudo
ou desse quase nada
já não sei se volto ao caminhar miúdo
ou solto o pé na estrada
Se desato o laço dessa corda bamba
ou ato o nó na alça da caçamba

Se queimo vida nesse fogo fátuo
ou se de fato tento nova ida
Se afasto o tule dessa nova tela
ou se entulho a talha com esse vinho velho
Se curto o corte dado no baralho
ou meto o manto e me amortalho
Se mato o mito que se mete em mim
ou se me omito e me torno mudo
diante desse nada
ou desse quase tudo

 

Perpassa o livro, também, fina ironia, lâmina afiada no enfrentamento com a realidade fora. E sempre o uso do verso livre. Palavras suas à época: “(...) Meto-me a metrificar / mas mato a métrica / e o verso se diversifica / Prometo: / nunca mais me meto a fazer soneto” – p.85. Contradizendo-se, o poeta muito tempo depois irá experimentar a forma fixa, conforme será abordado mais adiante. Essas as características formais marcantes de seu texto. O único ponto negativo, de que aos poucos o poeta se libertará, é a inversão um pouco forçada de alguns termos da frase, sem função aparente em alguns momentos, o que provoca uma sensação de artificialismo nos versos em que ocorre.

1.4. Em 1991, com Ìgbàsílè, Wanderlino, na primeira parte, envereda pela poesia engajada sem, entretanto, cair na armadilha da dita “arte” panfletária. Expande o tema da pseudo-abolição da escravatura dos negros no Brasil para as muitas outras formas modernas e disfarçadas de escravidão. Na segunda parte, passeia, de forma competente, pelos temas tradicionais da lírica ocidental bem como pelos assuntos quotidianos de sua época, dos quais tanto gosta seu olhar também cronista. Em quase todo esse livro, acentua-se uma tendência cada vez maior à síntese. Chega a redigir minipoemas, com forte carga informativa no mínimo de palavras, quase haicais, tipo de composição que só em seu trabalho mais recente (2006) se manifesta de forma plena. Em “Moderna escravatura”, “Poemiserável” e “Causa e efeito 1”, a contenção e a racionalidade sobrepõem-se à emoção fácil.

Ainda em Ìgbàsílè, em auto-retratos expressivos, o eu do poeta desnuda a si e a suas intenções existenciais – “(...) preservo o interior e vou demolindo a fachada” – p.69 e revela o seu caráter reservado – “(...) O ar distante, esse meu jeito” – p.79 (“Poema do habite-se”). Longe está, porém, de fazer uma poesia fria, sem carga emotiva. Ao contrário, seus poemas em geral fustigam, pelo aspecto crítico (“Cem anos de quilombos e favelas”), desmascaram aparências (“Ledo engano”), até mesmo abrem espaço para um fugaz oásis de integração e repouso (“Cantiga do bendizer”). Em “Poemacrítico”, o autor afirma no trecho final: “Enfim, poetar é tratar de estar atento a tudo e não apenas cuidar do conteúdo” – p.61.

1.5. Com “Sustenidos e bemóis” (2006, inédito), Wanderlino atinge essa maturidade anunciada no último verso citado no parágrafo anterior. Nele se aprofunda a consciência de poesia como resultado do trabalho sobre a linguagem, da função poética predominando sobre as funções referencial e emotiva.

No nível temático, agora, mais forte é a metáfora do “destecer” (“Metamorfose” e “Singeleza”). O poeta aparece mais pacificado e faz um balanço de sua personalidade, denotando aceitação de si: “Não me lamento sendo assim: / pleno de raízes” (“Viagens”); “Permaneço quieto,/ no bojo aconchegante do casulo.” (“Bicho-da-seda”). Encara, com tranqüilidade, suas incoerências; não se julgando, abre margem a uma tolerância maior com o ser humano em geral, com sua (dele e do outro) insensatez (“Danos da verdade”). Os paradoxos da vida, que antes eram fonte de angústia e conflito, passam a ser encarados como um molho da existência: “A vida e seus opostos.../ exatamente o que lhe dá sentido!” (“Sustenidos e bemóis”); “Indubitavelmente, ando adubando o dúbio.” (“Dubiedade”).

Nesse livro, atravessa alguns poemas uma serenidade rara nos anteriores (“Entardecer”, “Calidoscópio”, “O curumim”, “Singeleza”, “Poeminho arteiro”, “Cantiga de roda”). Porém, se a pena leve da lira afaga alguns poemas, a lâmina da ironia não foi aposentada em outros (“Tristes estátuas”, “Soneto para perder concurso”). Se algumas angústias antigas bateram asas de sua poesia, novos espantos fazem pouso nos textos recentes, a exemplo da constatação da velhice (“Auto-retrato”) e da morte (“Ave de mau agouro). Sem abandonar a reflexão, parte, pragmaticamente como diria mestre Horácio Pacheco, para a ação: “Não me peçam coerência, / estou farto de linearidade”(...) É hora de deixar o cais e navegar, / lançar ao vento a poeira da cidade.” (“Danos da verdade”). Ainda neste poema o eu do poeta revela-se por inteiro em sua nova versão “Darcy, Vinícius, Seixas, Lennon, Amyr”. Ou, para não escapar da assumida ambigüidade existencial, camufla-se: “(...) se assim não for / e tudo não passar de ilusão. / Pessoa tem razão: / o poeta é mesmo um fingidor.”

Wanderlino sabe-se em época de colheita, mas não se acomoda ao já plantado, sempre em busca de transformação. Embora soem “acordes fora da pauta” – os mesmos versos livres já praticados no passado –, o poeta já se permite transitar também nos “limites da pauta”, por formas fixas nunca antes visitadas como o soneto, a canção, o madrigal e o haicai. Em dois poemas de caráter metalingüístico, tanto assimila a tradição (“Soneto da colheita e da transformação”) quanto desmonta o cânone (“Soneto para perder concurso”). Em toda a obra recente, permite-se, enfim, a reverência e a iconoclastia, o conflito e a tranqüilidade, a postura crítica e o não-julgamento, a liberdade e a disciplina, os sustenidos e os bemóis.

De permanente em toda a sua obra até agora, da juventude à maturidade, apenas a referida ausência de derramamentos subjetivos, expressa agora de forma explícita:

Mas o poeta deve ter sempre consigo
que a poesia tem um quê de universal.
Nada de atá-la fortemente ao próprio umbigo.

(“Soneto da colheita e da transformação”)
 
 

Link para Wanderlino Teixeira Leite Netto
 

 

 

 

 

04.01.2008