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Igor Fagundes

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, crônica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

Igor Fagundes, Rio de Janeiro, RJ. Poeta, ensaísta, jornalista, ator, doutorando e mestre em Poética pela UFRJ, além de professor de Teoria Literária na mesma universidade. Autor dos livros de poesia TRANSVERSAIS (primeiro lugar no I concurso Estudantes do Brasil 2000), SETE MIL TIJOLOS E UMA PAREDE INACABADA e POR UMA GÊNESE DO HORIZONTE (Prêmio Literário Livraria Asabeça 2005). Seu primeiro livro de ensaios, OS POETAS ESTÃO VIVOS - PENSAMENTO POÉTICO E POESIA BRASILEIRA NO SÉCULO XXI, foi lançado em 2008 após receber o Prêmio Literário Cidade de Manaus em 2007. Seu próximo livro de poemas, PONTO ZERO, tem lançamento ainda em 2009. Possui cerca de 60 premiações em concursos literários. Seu trabalho tem sido reconhecido e elogiado por nomes consagrados ou respeitados no meio literário e acadêmico, tais como Antonio Carlos Secchin, Marco Lucchesi, Afonso Henriques Neto, Alberto Pucheu, Manuel Antonio de Castro, Izacyl Guimarães Ferreira, Tanussi Cardoso, Marcus Vinicius Quiroga, Astrid Cabral, Olga Savary, Rita Moutinho e Helena Parente Cunha. Com este blogger, funda a S.E.I.T.A - Sociedade de Estudos em Inutilidades Tornadas Arte. (2009)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria Helena Nery Garcez

 

Maria de Lourdes Hortas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

  

 

 
 

Igor Fagundes
 

 

 

chamado


como se já te conhecesse, espero-te:
mãos abertas, juntas, a equilibrar
o mar outrora preso na linha da vida
e que agora sobre as palmas se apóia.

como se não te conhecesse, aviso-te:
nele singra este homem com olhos de céu
refletido no corpo-água que a ti oferta
o sal da pele antes muralha.

como se te escrevesse, enfim, em versos
navego-te no ardor de uma palavra
em mar que ontem pensei ser meu apenas
e hoje te inunda para ser a nossa lavra.



 

 
 

 

 

 
Tércia Montenegro

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 
 

Igor Fagundes
 


 

SOBRE "FORA DE ÓRBITA", de Luiz Otávio Oliani*

Em outras órbitas:
por um encontro amoroso entre Sócrates e Oliani

Igor Fagundes *
 
A um sábio gato de Helena,
editora da palavra,
perdido e salvo
entre poemas: Sócrates

 

 

Se Sócrates estivesse vivo (e, de fato, está), convidaria Luiz Otávio Oliani para reviver pelo menos cinco grandes diálogos platônicos: Teeteto, Fedro, Fédon, República e Íon. Em "Rota", um dos poemas-chave deste livro de estréia, o jovem poeta revela: "amo o que está fora de mim". Ao embrenhar-se nesse amor pelo descentrado, ao lançar-se para fora de si, querendo-se fora de órbita, Oliani faz do pensamento poético um habitar para além de qualquer noção de "território". No Teeteto de Platão, a palavra grega traduzida costumeiramente por pensamento é dianoia, que, na língua original, assume uma dimensão maior, transitiva, peregrina, trans-orbital e cosmológica, isto é, sem lugar fixo, periférica, na medida em que, nas palavras de Sócrates, apenas o corpo se situa exatamente aí dentro da cidade e no meio do povo, enquanto a dianoia, ela mesma, comandando todas estas pequenices e coisas de nonada, às quais dá pouca importância, voa por todos os lados, geômetra, como disse Píndaro, "dos subterrâneos" e das extensões da superfície da terra, astrônoma do "para além do céu" e, de todas as maneiras, perscrutando a completude da natureza em cada um dos entes em sua totalidade, sem que ela, recaindo, se fixe em nada disso que se lhe mantém próximo.

Nessa passagem, Sócrates discorre sobre o modo filosófico de habitar a cidade, que, na experiência unificante dos entornos, aproxima-se do jeito poético de ser: "em mim / a palavra / se faz morada", lemos em Oliani, num paradoxo vibrante. Afinal, ao mesmo tempo que a linguagem no homem encontra uma casa (conforme depreendemos nos versos "em mim / a palavra"), ele também - e primordialmente - a habita, suscitando uma simbiótica e mútua referência na qual um (re)cria o outro. Ao vislumbrar a linguagem como habitação, a poesia concede flexibilidade aos limites dessa casa nunca estática. Uma casa, a saber, elástica, móvel, capaz de abrigar tudo o que nela não couber e que, não cabendo, extrapolará seus muros, tetos, tornando-a um indiscernível das ruas, rios, mares, céu: "o poeta singra mares / (...) // na anatomia das águas / navega em palavras / na imensidão", escreve no poema "Oceanografia". Teríamos também, nesse sentido totalizante, uma celeste-grafia, uma todo-grafia em que o poetar pensante se faria medida de um não mensurável e nomear de um indizível: dianoia, em grego. Em Luiz Otávio, este fora de órbita pulsante, através do qual o poeta "pássaro / ignora poleiros / bate asas", pois "a arribação se faz / quando as aves migram". A morada-palavra: uma casa sem margens.

Por isso, mesmo vivente num país, num século, num tempo e lugar específicos, o corpo poético desterritorializa-se, visita - mesmo sem saber - gregos, Sócrates, de modo que, jamais inerte ou fechado sobre si, torna-se capaz de pensar a partir da perplexidade frente a tamanha força atópica e vivificadora que o arrasta, governa e nos une. Estar fora de órbita em Oliani - e em qualquer obra verdadeiramente poética - não significa negar o espaço físico onde nos encontramos. Pelo contrário, significa afirmá-lo enquanto dinâmica intensiva e extensiva, inscrita entre os "subterrâneos" e o "para além do céu" de que nos fala Píndaro; um espaço-entre no qual nos instauramos enquanto manifestação particular de uma totalidade. Afirma o poeta: "brota em mim o verbo / com suas pessoas". Se Oliani, plural, ressalta que "desconjugá-las não posso" é porque, pela poesia, o nós se condensa no eu, o todo se revela na parte, o universal exclama no individual e o estrangeiro sobressai no íntimo: "no silêncio / o poeta pesca / o que nunca pôs no mar". Esses versos, transcritos do poema de abertura, "Criação", sugerem o poetar como potência de reunião, não apenas entre o dentro e o fora do corpo ("a boca rascunha recifes"), mas também entre o silêncio, o lugar e a palavra-voz. No já citado "Rota", flagramos: "entre o espaço que me habita / e a voz que sopra no ouvido / há silêncios intumescidos" (o grifo é nosso).

Logo, não é por acaso que o poeta supervaloriza a palavra "silêncio" e o silêncio de cada palavra ao longo dos poemas. Ao primar pela economia verbal, pelo verso enxuto e reticente, Luiz Otávio Oliani não se faz mero cúmplice de um modismo estético contemporâneo, marcado por algum minimalismo pós João Cabral de Melo Neto. Silêncio, nesta órbita, nunca será uma ausência ressentida. A pausa entre as palavras, versos e estrofes é, sim, uma presença positiva do silêncio. Este, por sua vez, ao ocupar o branco da página, permanece grávido de som. Por um lado, tudo o que se fala ou que se escreve tem como ponto de partida o silêncio; por outro, ao se tornar fala, deixa de ser imediatamente um silenciar. Acolhê-lo, portanto, compensa a impossibilidade de falar dele, já que dizê-lo implica corromper o estado de gravidez do qual somos embrião. Implica interromper sua permanente possibilidade de jorrar sentidos e impulsionar criações. Acolhê-lo, então, torna-o, de algum modo, possível e potente, pois guardá-lo no comedimento é o mesmo que libertá-lo, permitindo, a partir dele, a escuta do que se é, o auscultar de algo que jamais será realmente co-medido, ou seja, medido junto, em conjunto, porque no imensurável culminam as con-junções. Hóspede do que ascende silencioso, o homem-poeta se demora num (sem) lugar de liberdade e busca radical, na medida em que escutar é ser e estar disposto, afinado e afeiçoado com aquilo para o qual se está aberto e no qual se abandona em entrega atenta e cuidadosa.

Nesse caminho meditativo, o poeta reencontra Sócrates em outro diálogo: Fedro. No teatro de Platão, o dizer socrático compara a escrita ao ofício do lavrador. Com as melhores sementes, o terreno mais apropriado e imensa paciência, quem lavra aguarda e alegra-se diante do espetáculo da germinação. O escritor idealizado por Sócrates não pode ser aquele que se diverte superficialmente, compondo textos rasteiros e efêmeros. É, decerto, aquele "que semeia e planta com discernimento discursos tanto capazes de defenderem a si próprios como a quem o semeou, e que muito longe de serem infrutuosos contêm um germe que em almas diferentes fará nascer outros discursos".

"Enquanto o homem // nunca sabe esperar", Luiz Otávio, drummondianamente, espera que cada poema "se realize e consuma / com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio". O poeta abre o livro com sugestiva epígrafe de Paulo Henriques Britto, marcada por este mesmo verbo da maturidade: "mas a semente espera". Na contramão dessa parcimônia, não seria surpreendente se o jovem houvesse estreado movido por ansiedades típicas de sua faixa etária, ou por força de alguma pressa narcisista de assinar uma obra e tornar-se prontamente público. Admirável, é, sim, admitir, humildemente e pela voz de Britto, que a semente "é insistente e acerta / mesmo sem saber que erra".

Neste volume de poemas, espera e sabedoria traduzem-se na contenção, na cautela de um poeta que entende o silêncio como um agir lavrador e criativo. Porque a vida pulsa em hiatos, o poeta dá voz a esses interstícios ("no silêncio dos nós"), fazendo com que a existência humana vigore num entre-ser, na iminência do limite, pois somos seres-no-mundo e seres-para-a-morte simultaneamente. Ao valorizar a entre-linha, o sub-reptício, Luiz Otávio assinala nossa convivência irrevogável com o desconhecido, com o insondável da finitude: "no silêncio futuro a morte". No silêncio presente, também. Assim como no silêncio passado, que perdura sonoro na memória, como "infância roubada" e resgatada pela palavra. "De mim / permaneço seiva", concebe-se Oliani, mais uma vez, como gene, possibilidade de um a mais, de um desencadear de troncos, galhos, folhas, frutos, de um expandir corporal, dinâmica espácio-temporal ou, como na fala socrática, dianoética. Esta, a ética de Oliani: dar sentido à vida através de reinvenção de ambos, do "verso / a burilar os homens".

Quando o poeta sublinha a arte como contraponto a um "mundo avesso à fantasia", não está a alienar-se de nossas conjunturas, dramas e impasses. Em diversos momentos, encontramos um Oliani observador da barbárie humana ("há vísceras / em todos os lugares // quem se indigna / diante de quem sangra?), da tensão racial (como no poema "Rosa d'África"), da exclusão social ("vagarosos passos / descalços / à caça de ancoradouro"), entre outros espantos contemporâneos. Exatamente porque sobrevivemos num mundo sofrível, o poeta pode e sabe que deve criar um outro. Não como quem foge à "luta exangue / a qual / nunca se finda", mas como quem re-age pela inventividade po-ética: "ao beijar a solidão / eu me dispo por inteiro / da escória que é o homem / na inútil tentativa / de ser Deus por um minuto".

Em "Resgate", estar sozinho parece condição para um movimento de despovoamento e repovoamento de um corpo sequioso de transformação, tendo em vista que se despir e se vestir de Deus desencadeia, no distanciamento, um aproximar-se ainda mais, um fundir-se, um comungar com tudo e todos. Uma divinização.

Na poética de Oliani, o sagrado é a experiência extraordinária deste miscigenar do que é o dito com o que se cala, do comungado com o sozinho, da vida com a morte, desenhando-se abismo insolúvel de mistério. Na aliança das palavras, o silêncio é também eco desse enigma, de um finito que se desvela velando-se e vigorando-nos no imperativo de viver.

"Como escapar / ao confinamento?". Se compreendemos a certeza da morte como cerceamento intransponível, primeira e última prisão, responder à pergunta implica projetar-nos ao título do livro. Constatada a efemeridade dos dias ("à espera do homem / o inexorável fim"; "o tempo agride os homens"; "o tempo é bisturi"; "esvai-se o tempo"; "as horas voam"; "tudo flui / num átimo"; "o tempo não se rende / a nada que o prenda"; "abocanha os homens"; "o tempo sorve ruínas"; "o tempo sangra"; "o tempo não tem tempo"), é preciso dizer sim à vida. A morte perpassa todo o poemário, mas é a alegria e vontade de viver que engendra o discurso da "fatalidade": "camaleão fora do ventre / transmudo a cor à revelia // mas a morte não é daltônica". Admitir e aceitar poeticamente o fim seria, paradoxalmente, não admiti-lo nem aceitá-lo. Seria "transmudar a cor à revelia", burlá-lo na "mágica" da linguagem, tornando-nos infinitos graças ao ínfimo de nossa temporalidade, a esta brevidade que nos incita a experimentar cada segundo como duradoura travessia: "na turbulência a descoberta: a vida / tem sete faces" e "ante o silêncio final / - vida" são versos exemplares desse pensamento vital e vitalista.

Luiz Otávio Oliani "alerta" que "a morte não é convidada / para celebração alguma" e "os coveiros nem se importam / em repetir o seu ofício". Manter-se indiferente, banalizando o destino comum a todo homem, significaria esquivar-se de seu (e nosso) enigma-raiz, esvaziando-se de força criadora. Por ser o homem o único animal que sabe por antecipação da própria morte, está disponível para o questionar. Diferentemente dos outros seres vivos, sofre nas dimensões do passado, presente e futuro e pergunta-se pelo sentido de sua existência. Como nos lembra outro diálogo platônico: "... aqueles que filosofam, no reto sentido da palavra, se exercitam em morrer", escreve Cícero na segunda parte do Fédon. O mesmo poderíamos dizer do poetar, haja vista que "onde o sol inclemente reverdece / mesmo o poeta // não passa impune frente / à Indesejada das gentes". Perguntar pela Indesejada, gritá-la, sofrê-la e vencê-la na procura e conquista de um hoje feliz ("mil desejos / de beber somente o agora") é deixar-se levar por este - filosófico e poético - habitar sob e sobre a terra e o céu: "inútil fugir da hecatombe: / urge viver com ela". Filosofia e poesia - um exercício de morte. Sócrates e Oliani em ginástica amistosa. Outro nome para isso: viver. Escrever a vida - o maior exercício. Perpetuá-la - desafio de um poeta para quem o verso é "o passaporte / para um amanhã na eternidade". Sua "herança". Vida a ser transmitida a outrem a cada leitura, época, geração.

Considerando a aproximação amorosa entre o grego de Atenas e o brasileiro Oliani, alguém ainda insistiria na falácia de que Platão é contra os poetas? Apesar de comparecer à República, por exemplo, a poesia está submetida a outras forças que não à sua. Na pedagogia platônica, o poeta estaria excluído porque não abarcaria conhecimento sobre o que faz e, "ilusionista de palavras" a encantar "o picadeiro", apenas imitaria a realidade, em detrimento dela. Todavia, imitar não é fazer cópia. O artista não copia a natureza, não a replica. Imitá-la, ouvimos em Aristóteles, é deixar que novos processos de realização natural se apossem de nós. A obra-de-arte deve ter as características e a autonomia, a surpresa e a originalidade de um ser vivo. Imitar a natureza é, enfim, criar, um modo original de levar à plenitude o que ela não é capaz de pôr em obra. Toda criação é criação de realidade. É natureza.

O único diálogo platônico em que a poesia é o tema regente chama-se Íon. Nele, a despeito das traduções e interpretações tendenciosas e desgastadas, podemos encontrar um Sócrates admirado frente à inspiração poética. Se a ironia socrática leva o rapsodo Íon à aporia e o desqualifica como exegeta e técnico de seu fazer, o filósofo também é capaz de render-se à poesia ao falar sobre ela. Ao tentar entendê-la, Sócrates descobre uma maneira de dizer, por si mesma, poética, que chega a emocionar Íon e evidenciar, entre ambos, a força epidêmica e impessoal desse agir entusiasmado. O mestre conclui que poetas são seres bacantes, vates, abduzidos por algum deus que neles canta uma verdade, ainda que delas não tenham qualquer conhecimento. Daí a metáfora de "Boemia" em Oliani, "o prazer bêbado", ébrio, da palavra, da "lua" que "é verso / de loucos, de putas / e de poetas". Lua que é eroticidade, desvario e cosmos. Silêncio pulsante - órbita.

Em um dos momentos de apelo social e existencial, freqüentes no livro, o poeta declara: "... a vida só faz sentido / quando se reparte o pão". Luiz Otávio Oliani está certo de que poesia também é alimento. Escrever e publicar configuram sua forma de "Partilha". De nossa parte, resta-nos festejar este banquete no qual "a mão estendida / abençoa o trigo" de uma promissora estréia.


 
Igor Fagundes: Poeta, jornalista, ensaísta, mestrando em Poética pela UFRJ e autor dos livros por uma gênese do horizonte, Sete mil tijolos e uma parede inacabada e Transversais.
 

 
 

 

 

 
Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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2.10.2009