Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Cláudio Neves


Valsa suburbana



No muro a hera,
se calcinada,
se regenera,

e flore tão ela,
tão rente ao que era,
como se não houvesse

na hera a morte,
na morte
a primavera.

 

(De sombras e vilas, 7Letras, Rio de Janeiro, 2008)

 

 

Os mortos

Os mortos não tomam chá
nem sentam
ao piano esquecido aberto.

Os mortos não velam
nossas horas debruçadas sobre suas gavetas.
E, se interrogam fundamente do outro lado do espelho,

sequer nos reconhecem.

Os mortos ficam mortos porque assim se concebem.
E há muito trocaram os porta-retratos
por outras formas, mais refinadas, de desprezo.

 

(De sombras e vilas, 7Letras, Rio de Janeiro, 2008)

 

 

 

 

 

O GRITO

( sobre um quadro de Munch )

Há sempre um fiorde e uma ponte
em toda a vertigem humana,
e sempre essas nuvens em chama
no som da palavra horizonte.

Há sempre um fiorde, uma ponte,
dois homens de negro e o louco,
e curvas no espaço amplo e pouco,
e ser nesse andrógino instante.

Há sempre dois barcos que somem
além do fiorde e da ponte
que brumas tão rubras consomem.

E nesse grito a que ninguém responde,
há sempre esse eco bifronte,
esse espaço sem quando, esse tempo sem onde.

 

[De sombras e vilas, 7letras]

 

 

 

DUPLO

Eu finjo ser quem fui,
porquanto assim me seja
real ser o que frui
e não quem o deseja.

Eu tento ser quem era
somente porque é belo
e inútil, e desespera
tentar ser mais do que sê-lo.

Finjo sempre nesta hora
de crepúsculo incompleto
em que duvido se é minha
a sombra azul que projeto.

 

[De sombras e vilas, 7letras]

 

 

 

De Sombras e Gatos



1. Negro

O único todo 
de sombra compacta.
E todo ele 
é movimento 
e sempre anfíbia
sua passagem.

Como uma idéia
por entre coisas,
como uma coisa
entre palavras.

Sequer despreza
como outros gatos:
ao gato negro
basta o contraste
com qualquer sombra de realidade.

Mas, quando estaca,
(a pata erguida, 
inconcluso o passo)
fagulha apenas
seu olho incriado.

Como uma idéia
por entre coisas,
como uma coisa
entre palavras,
como uma morte 
dentro do Nada.
 


2. Siamês

Este flutua, 
porque as sombras
que vai sorvendo
sobem-lhe só 
até a antepata.

De resto é quase 
um arquigato,
que evita o contato
da realidade.
Por isso despreza
qualquer paisagem,
e qualquer muro
lhe é impuro
às negras patas.

E, quando pára,
sua presença
flutua apenas.

Como uma idéia
pela metade.

Como uma coisa, 
uma palavra
metade sombra,
metade gato.
 


3. Malhado

No gato malhado,
dito vira-lata,
a sombra invade,
milparte o gato.

Falta-lhe a linha
dorsal compacta
e o passo infalível
dos outros gatos;
falta-lhe a idéia
de contraparte:
nem bem é branca
ou negra metade
e ao todo é menor
que as manchas somadas.

É talvez, assimétrico, 
quase o antigato
em seu claro-escuro
barroco, abstrato.

Não é a coisa,
mas as muitas falhas,
as muitas faltas
que lhe são inatas:
como uma idéia
despedaçada
numa palavra muitas palavras.

 

4. Persa

Seu branco passo
recusa à sombra 
dessedentá-la,
porque despreza
qualquer caçada,
qualquer esforço,
assassinato.

Sonha um relevo
de almofadas
e presas súditas
de seu enfado.

Recusa o fogo
de seu contato
e mesmo os olhos
dos outros gatos.

Dorme em presença
da humanidade
o sono inato
das coisas fartas.

Mas, quando hesita
em levantar-se
(como um remorso
ou uma espada),
é inútil e exato.

Como uma coisa
antes da idéia,
como uma idéia
antes da palavra.

 

(De sombras e vilas, 7Letras, Rio de Janeiro, 2008)

 

 

 

 

Apenas fora do tempo

o amor é possível,

mas apenas

em seu curso é que existe.

 

Habita-o como um rosto

o fundo de um espelho

e como um risco

sua superfície.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

 

 

Que o amor não é. Será.

Nunca infinito,

mas infinitivo.

 

Não dura. É duração.

Depura o tempo

em força, direção, sentido.

 

Habita a areia à beira-mar

não como rastro,

mas como um passo erguido.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

 

 

(dois sonhos)

 

I

Às vezes lembrava, às vezes não.

Lembrava a casa entre as papoulas,

a casa branca, antiga, sem chão.

 

Nas noites de não, ela o visitava.

 

Lembrava às vezes que flutuara

no campo em torno e sobre um cão

de olhos vazados vertendo som.

 

Às vezes lembrava, às vezes não.

Lembrava a menina de short, descalça,

correndo na chuva em torno da casa.

 

Nas noites de não, ela o visitava.

 

Nas noites de não, ela o sonhava,

ele menino, ele e um cão

olhando juntos a enxurrada.

 

 

II

Lembrava às vezes, às vezes não.

Nas noites de não, ele a sonhava,

entrando molhada, afagando um cão.

 

Nas noites de não, ela o sonhava,

depois não lembrava, a não ser de um vão,

quente e oculto sob a antiga escada.

 

Às vezes lembrava, às vezes não,

senão que sentia, quando acordava,

que flutuara, dissera um não.

 

Nas noites de não, se visitavam.

 

Os corpos trêmulos, sob a escada,

os corpos ungidos por aquela casa,

por aquele nada dos olhos de um cão.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

As maçãs de resina sobre a mesa

habitam as manhãs,

combinam com a bandeja,

só existem às vezes.

 

As maçãs de resina não trazem

a lembrança da terra

e a nostalgia das mãos

das maçãs verdadeiras.

 

As maçãs de resina não esperam

quem as erga e gire e teste

se duas vogais vermelhas

cabem na sua frieza.

 

Das maçãs de resina, embora impassíveis,

embora silêncio,

ninguém dirá que amores

nem dores nem desejo.

 

Ninguém dirá que o que lhes falta

exige a urgente madureza

de todas as maçãs

que ainda não nasceram.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

 

 

(Lázaro)

 

I

Às vezes lembrava,

às vezes não,

os nomes à mesa,

os nomes das coisas,

o gosto do pão.

 

Às vezes achava

que tinha sonhado

o frio, a caverna,

a brisa da treva,

a pedra rolada,

 

Às vezes pensava

que agora sonhava:

por isso que as falhas,

por isso os estranhos,

os tantos olhares.

 

II

Diziam as irmãs

(assim se anunciavam)

que a voz voltaria

(que voz não sabia),

não se preocupasse.

 

Disseram-lhe os sábios

que fora escolhido

para outra jornada

(e pouco entendia

tão fundas imagens).

 

Mas a voz que ouvira,

a por que obedecera

alheio à vontade,

a que falta à mesa,

já não lhe falava.

 

III

Às vezes lembrava,

às  vezes não,

por que caminhara,

por que se afastara

das mesas, das casas.

 

Às vezes lembrava

da vaga jornada

ao deserto insone

que a cada alvorada

o pacificava.

 

Às vezes julgava

ouvi-lo falar,

chamar por seu nome.

Sonhava-se um anjo,

areia, luar.

 

IV

 

Às vezes lembrava,

às vezes não,

o nome deserto,

que nome tivera,

que nome chamar.

 

Cada vez mais sonha

um sonho em que, anjo,

caminha soberbo

entre esgares até

uma voz que o quer.

 

Às vezes dos loucos

sorri complacente

ouve histórias sem nexo

de um deus

e de um homem ressurrectos.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

 

 

Certas manhãs parece que sempre existiram,

em outras somos nós que amanhecemos

para o frescor universal dos sinos,

para de novo ir com a avó à missa.

 

Certas manhãs parece nos feriram

com seu azul desde o primeiro dia

e outras em que solfejamos hinos

em luminosas e perdidas línguas.

 

Certas maçãs são tão irrefutáveis...

Há uma esperança universal de inexistirmos,

de não ser nossa a que chamamos nossa voz.

 

E há certas noites, embora vulgares,

em cujo centro onipresente pressentimos

a combustão de Deus, a marcha dos heróis.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

 

 

Se mais se teme o amor do que a morte,

se mais se teme a espera do que a voz,

é porque fundo e além do que chamamos nós

habita alguma coisa que nos sabe.

 

Se pura ou maculada de quem somos,

se lâmina, se linfa, se tão pronta

a nos cindir ou condensar em outro,

é porque desde sempre em nós não cabe.

 

Sentimos que se agita em frente ao mar

e silencia em face de outro corpo,

às vezes de uma cor ou de um piano.

 

Sabemos que por fim reclamará

o que dizemos ser à falta de outro nome,

aquilo que em nós é, mais que nós, humano.

 

(Os acasos persistentes, 7Letras, Rio de Janeiro, 2009)

 

 

 

 

 
Manoel de Barros

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Ana Guimarães