Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Luís Vaz de Camões




Sonetos

Índice



A

A chaga que, Senhora, me fizestes
A D. Leonis Pereira
A D. Luís de Ataíde, Viso-Rei
A D. Simão da Silveira, em resposta de outro seu, pelos mesmos
A fermosura desta fresca serra
À morte de D. António de Noronha
A Morte, que da vida o nó desata
À romana Populónia perguntava
À sepultura de D. Fernando de Castro
À sepultura del-Rei D. João III
A ti, Senhor, a quem as sacras Musas
A violeta mais bela que amanhece
Ah! imiga cruel, que apartamento
Ah, Fortuna cruel! Ah, duros Fados
Ah, minha Dinamene assi deixaste
Alegres campos, verdes arvoredos
Alma gentil, que à firme Eternidade
Alma minha gentil, que te partiste
Amor é um fogo que arde sem se ver
Amor, co a esperança já perdida
Amor, que o gesto humano n' alma escreve
Apartava-se Nise de Montano
Apolo e as nove Musas, discantando
Aquela fera humana que enriquece
Aquela que, de pura castidade
Aquela triste e leda madrugada
Aqueles claros olhos que chorando


B
 

Bem sei, Amor, que é certo o que receio



C

Cá nesta Babilónia, donde mana
Cantando estava um dia bem seguro
Cara minha inimiga, em cuja mão
Chorai, Ninfas, os fados poderosos
Com grandes esperanças já cantei
Com que voz chorarei meu triste fado
Com voz desordenada, sem sentido
Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Como podes, ó cego pecador
Como quando do mar tempestuoso
Contente vivi já, vendo-me isento
Conversação doméstica afeiçoa
Correm turvas as águas deste rio
Crecei, desejo meu, pois que a Ventura
Criou a Natureza damas belas


D

Dai-me üa lei, Senhora, de querer-vos
De frescas belvederes rodeadas
De quantas graças tinha, a Natureza
De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança
Debaixo desta pedra sepultada
Dece do Céu imenso, Deus benino
Deixando o doce fato e a cabana
Descalço e sem chapéu Apolo louro
Despois que quis Amor que eu só passasse
Despois que viu Cibele o corpo humano
Diana prateada, esclarecia
Ditosas almas, que ambas juntamente
Ditoso seja aquele que somente
Diversos dões reparte o Céu benino
Dizei, Senhora, da Beleza ideia
Doce contentamento já passado
Doce sonho, suave e soberano
Doces águas e claras do Mondego
Doces lembranças da passada glória
Dos Céus à terra dece a mor beleza
Dos ilustres antigos que deixaram


E

El vaso reluciente y cristalino
Em fermosa Leteia se confia
Em prisões baixas fui um tempo atado
Em um batel que com doce meneio
En una selva al despuntar del dia
Enquanto Febo os montes acendia
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Esforço grande, igual ao pensamento
Está o lascivo e doce passarinho
Está-se a Primavera trasladando
Este amor que vos tenho, limpo e puro
Eu cantarei de amor tão docemente
Eu cantei já, e agora vou chorando
Eu vivia de lágrimas isento


F

Ferido sem ter cura perecia
Fermosos olhos que na idade nossa
Fiou-se o coração, de muito isento
Foi já um tempo doce cousa amar
Fortuna em mi guardando seu direito


G

Grão tempo há já que soube da Ventura


I


Ilustre e dino ramo dos Meneses
Indo o triste pastor todo embebido


J

Já a saudosa Aurora destoucava
Já claro vejo bem, já bem conheço
Já não sinto, Senhora, os desenganos
Já tempo foi que meus olhos folgavam
Julga-me a gente toda por perdido


L


Leda serenidade deleitosa
Lembranças saudosas, se cuidais
Lembranças, que lembrais meu bem passado
Lindo e sutil trançado, que ficaste


M

Males, que contra mi vos conjurastes
Memória de meu bem, cortado em flores
Memórias ofendidas que um só dia
Moradoras gentis e delicadas
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


N

Na desesperação já repousava
Na metade do Céu subido ardia
Na ribeira do Eufrates assentado
Náiades, vós, que os rios habitais
Não passes, caminhante! Quem me chama?
Não vás ao monte, Nise, com teu gado
Nem o tremendo estrépito da guerra
No mundo quis um tempo que se achasse
No mundo, poucos anos e cansados
No tempo que de Amor viver soía
Nos braços de um Silvano adormecendo
Num bosque que das Ninfas se habitava
Num jardim adornado de verdura
Num tão alto lugar, de tanto preço


O

O céu, a terra, o vento sossegado...
O cisne, quando sente ser chegada
O culto divinal se celebrava
O dia em que eu nasci, moura e pereça
O filho de Latona esclarecido
O fogo que na branda cera ardia
Ó gloriosa cruz, ó vitorioso
O raio cristalino se estendia
O tempo acaba o ano, o mês e a hora
Oh! quão caro me custa o entender-te
Oh, como se me alonga, de ano em ano
Olhos fermosos, em quem quis Natura
Ondados fios de ouro reluzente
Onde mereci eu tal pensamento
Orfeu enamorado que tañía
Ornou mui raro esforço ao grande Atlante
Os reinos e os impérios poderosos
Os vestidos Elisa revolvia


P

Para se namorar do que criou
Passo por meus trabalhos tão isento
Pede o desejo, Dama, que vos veja
Pelos extremos raros que mostrou
Pensamentos, que agora novamente
Pois meus olhos não cansam de chorar
Por cima destas águas, forte e firme
Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Porque a tamanhas penas se oferece
Porque quereis, Senhora, que ofereça
Posto me tem fortuna em tal estado
Presença bela, angélica figura
Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes


Q

Qual tem a borboleta por costume
Quando a suprema dor muito me aperta
Quando cuido no tempo que, contente
Quando da bela vista e doce riso
Quando de minhas mágoas a comprida
Quando o Sol encoberto vai mostrando
Quando se vir com água o fogo arder
Quando vejo que meu destino ordena
Quando, Senhora, quis Amor que amasse
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quantas vezes do fuso se esquecia
Que gritos são os que ouço? – De tristeza
Que levas, cruel Morte? Um claro dia
Que me quereis, perpétuas saudades?
Que modo tão sutil da Natureza
Que pode já fazer minha ventura
Que poderei do mundo já querer
Quem diz que Amor é falso ou enganoso
Quem fosse acompanhando juntamente
Quem pode livre ser, gentil Senhora
Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
Quem pudera julgar de vós, Senhora
Quem quiser ver d' Amor üa excelência
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
Quem vos levou de mi, saudoso estado


R

Razão é já que minha confiança
Resposta do Autor a um soneto, pelos


S


Se a Fortuna inquieta e mal olhada
Se a ninguém tratais com desamor
Se algüa hora em vós a piedade
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Se com desprezos, Ninfa, te parece
Se cuidasse que nesse peito isento
Se de vosso fermoso e lindo gesto
Se em mi, ó Alma, vive mais lembrança
Se lágrimas choradas de verdade
Se os capitães antigos colocados
Se pena por amar-vos se merece
Se tanta pena tenho merecida
Se tomar minha pena em penitência
Se, despois de esperança tão perdida
Seguia aquele fogo, que o guiava
Sempre a Razão vencida foi de Amor
Sempre, cruel Senhora, receei
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Senhora já dest' alma, perdoai
Senhora minha, se a Fortuna imiga
Sentindo-se tomada a bela esposa
Sete anos de pastor Jacob servia
Suspiros inflamados, que cantais
Sustenta meu viver üa esperança


T

Tal mostra dá de si vossa figura
Tanto de meu estado me acho incerto
Todas as almas tristes se mostravam
Todo o animal da calma repousava
Tomava Daliana por vingança
Tomou-me vossa vista soberana
Tornai essa brancura à alva açucena
Transforma-se o amador na cousa amada


U

Üa admirável erva se conhece
Um mover de olhos, brando e piadoso


V

Vai-me gastando Amor e um pensamento
Vencido está de Amor meu pensamento
Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Vós outros, que buscais repouso certo
Vós que, de olhos suaves e serenos
Vossos olhos, Senhora, que competem



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Luís Vaz de Camões



 

A chaga que, Senhora, me fizestes
 


A chaga que, Senhora, me fizestes,
não foi pera curar-se em um só dia;
porque crescendo vai com tal porfia
que bem descobre o intento que tivestes.

De causar tanta dor vos não doestes.
Mas, a doer-vos, dor me não seria,
pois já com esperança me veria
do que vós que em mim visse não quisestes.

Os olhos com que todo me roubastes
foram causa do mal que vou passando;
e vós estais fingindo o não causastes.

Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Quando vos vir queixar porque deixastes
ir-se a minha alma neles abrasando.


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A D. Leonis Pereira


Vós, Ninfas da gangética espessura,
cantai suavemente, em voz sonora,
um grande Capitão, que a roxa Aurora
dos filhos defendeu da noite escura.

Ajuntou-se a caterva negra e dura,
que na áurea Quersoneso afouta mora,
para lançar do caro ninho fora
aqueles que mais podem que a ventura.

Mas um forte Leão, com pouca gente,
a multidão tão fera como nécia
destruindo castiga e torna fraca.

Pois, ó Ninfa, cantai; que claramente
mais do que fez Leónidas em Grécia,
o nobre Leonis fez em Malaca.


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A D. Luís de Ataíde, Viso-Rei


Que vençais no Oriente tantos reis,
que de novo nos deis da Índia o estado,
que escureçais a fama que ganhado
tinham os que ganharam a infiéis;

que do tempo tenhais vencido as leis,
que tudo, enfim, vençais co tempo armado;
mais é vencer na pátria, desarmado,
os monstros e as quimeras que venceis.

E assi, sobre vencerdes tanto imigo,
e por armas fazer que, sem segundo,
vosso nome no mundo ouvido seja,

o que vos dá mais nome inda no mundo
é vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
tantas ingratidões, tão grande enveja!


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A D. Simão da Silveira


A D. Simão da Silveira, em resposta de outro seu, pelos mesmos consoantes, mandando-lhe perguntar quem fora
o primeiro poeta que fizera sonetos

De um tão felice engenho, produzido
de outro, que o claro Sol não viu maior,
é trazer cousas altas no sentido,
todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,
filósofo e poeta conhecido,
discípulo do Músico amador
que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,
cantando aquele mal, que eu já passei,
do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),
Tasso, e o nosso Boscão, que disse tudo
dos segredos que move o cego Rei.


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A fermosura desta fresca serra


A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do Sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos of'rece,
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza.


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À morte de D. António de Noronha


Em flor vos arrancou, de então crescida
- Ah! Senhor dom António! -, a dura sorte,
donde fazendo andava o braço forte
a fama dos Antigos esquecida.

Üa só razão tenho conhecida
com que tamanha mágoa se conforte:
que pois no mundo havia honrada morte,
que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto
que co desejo meu se iguale a arte,
especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,
se morrestes nas mãos do fero Marte,
na memória das gentes vivereis.


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A Morte, que da vida o nó desata


A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contra ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
a Morte, em apartar dum corpo a alma.
Duas num corpo o Amor ajunte e una;

por que assi leve triunfante a palma
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.
 


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À romana Populónia perguntava


À romana Populónia perguntava
um certo curioso e não prudente
porque a alimária comummente
em tempo certo do ano se juntava;

a qual, como discreta e que cuidava
em repostas ser suma e eminente,
com üa só palavra, claramente,
respondeu, e mostrou com quem folgava:

«Bestas são». Dá a entender que não entendem
quão grande suavidade se encerra
na cópula himeneia e ajuntamento.

Mas mores bestas são os que pretendem
buscar contentamento à carne e à terra,
deixando a alma prestes ao tormento.
 


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À sepultura de D. Fernando de Castro


Debaixo desta pedra está metido,
das sanguinosas armas descansado,
o capitão ilustre, assinalado,
Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,
e da enveja da fama tão cantado,
este, pois, só agora sepultado,
está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia,
por este Viriato que criaste;
e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;
que, se a Roma co ele aniquilaste,
nem por isso Cartago está contente.


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À sepultura del-Rei D. João III


«Quem jaz no grão sepulcro, que descreve
tão ilustres sinais no forte escudo?»
«Ninguém; que nisso, enfim, se torna tudo;
mas foi quem tudo pôde e tudo teve».

«Foi Rei?» «Fez tudo quanto a Rei se deve;
pôs na guerra e na paz devido estudo;
mas quão pesado foi ao Mouro rudo
tanto lhe seja agora a terra leve».

«Alexandre será?» «Ninguém se engane;
que sustentar mais que adquirir se estima».
«Será Adriano, grão senhor do mundo?»

«Mais observante foi da Lei de cima».
«É Numa?» «Numa, não; mas é Joane
de Portugal terceiro, sem segundo».


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A ti, Senhor, a quem as sacras Musas


A ti, Senhor, a quem as sacras Musas
nutrem e cibam de poção divina
(não as da fonte Délia cabalina,
que são Medeias, Circes e Medusas,

mas aquelas, em cujo peito, infusas
as leis estão, que a lei da Graça ensina,
beninas no amor e na doutrina
e não soberbas, cegas e confusas),

este pequeno parto, produzido
de meu saber e fraco entendimento,
üa vontade grande te oferece.

Se for de ti notado de atrevido,
daqui peço perdão do atrevimento,
o qual esta vontade te merece.
 


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A violeta mais bela que amanhece


A violeta mais bela que amanhece
no vale, por esmalte da verdura,
com seu pálido lustre e fermosura,
por mais bela, Violante, te obedece.

Perguntas-me porquê? Porque aparece
seu nome em ti e sua cor mais pura;
e estudar em [teu] rosto só procura
tudo quanto em beldade mais florece.

Oh! luminosa flor, oh! Sol mais claro,
único roubador de meu sentido,
não permitas que Amor me seja avaro!

Oh! penetrante seta de Cupido,
que queres? Que te peça, por reparo,
ser, neste vale, Eneias desta Dido?
 


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Ah! imiga cruel, que apartamento


Ah! imiga cruel, que apartamento
é este que fazeis da pátria terra?
Quem do paterno ninho vos desterrra,
glória dos olhos, bem do pensamento?

Is tentar da Fortuna o movimento
e dos ventos cruéis a dura guerra?
Ver brenhas de água, e o mar feito em serra,
levantado de um vento e de outro vento?

Mas já que vos partis, sem vos partirdes,
parta convosco o Céu tanta ventura
que seja mor que aquela que esperardes.

E só nesta verdade ide segura:
que ficam mais saudades, com partirdes,
do que breves desejos de chegardes.
 


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Ah, Fortuna cruel! Ah, duros Fados


Ah, Fortuna cruel! Ah, duros Fados!
Quão asinha em meu dano vos mudastes!
Passou o tempo que me descansastes;
Agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,
Para mor dor da dor que me ordenastes;
Então núa hora juntos mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,
Gostos, que assi passais tão de corrida
Que fico duvidoso se vos vi.

Sem vós já me não fica que perder,
Senão se for esta cansada vida
Que, por mor perda minha, não perdi.


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Ah, minha Dinamene assi deixaste


Ah, minha Dinamene assi deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah, Ninfa minha, já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar! Ó céu! Ó minha escura sorte!
Qual pena sentirei, que valha tanto,
Que ainda tenho por pouco o viver triste?


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Alegres campos, verdes arvoredos


Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual,
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.


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Alma gentil, que à firme Eternidade

 

Alma gentil, que à firme Eternidade
subiste clara e valerosamente,
cá durará de ti perpetuamente
a fama, a glória, o nome e a saudade.

Não sei se é mor espanto em tal idade
deixar de teu valor inveja à gente,
se um peito de diamante ou de serpente
fazeres que se mova a piedade.

Invejosas da tua acho mil sortes,
e a minha mais que todas invejosa,
pois ao teu mal o meu tanto igualaste.

Oh! ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil sortes,
tu com üa só morte o alcançaste!



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Alma minha gentil, que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Algúa cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


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Amor é um fogo que arde sem se ver


Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


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Amor, co a esperança já perdida


Amor, co a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar-me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta-te co as lágrimas que choro.
 


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Amor, que o gesto humano n' alma escreve


Amor, que o gesto humano n' alma escreve,
vivas faíscas me mostrou um dia,
donde um puro cristal se derretia
por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
por se certificar do que ali via,
foi convertida em fonte, que fazia
a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
causa o primeiro efeito; o pensamento
endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento,
de lágrimas de honesta piedade,
lágrimas de imortal contentamento.


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Apartava-se Nise de Montano


Apartava-se Nise de Montano,
em cuja alma partindo-se ficava;
que o pastor na memória a debuxava,
por poder sustentar-se deste engano.

Pelas praias do índico Oceano
sobre o curvo cajado se encostava,
e os olhos pelas águas alongava,
que pouco se doíam de seu dano.

«Pois com tamanha mágoa e saudade
- dezia – quis deixar-me a que eu adoro,
por testemunhas tomo Céu e estrelas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,
levai também as lágrimas que choro,
pois assi me levais a causa delas!»
 


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Apolo e as nove Musas, discantando


Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influíam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:

«Ditoso seja o dia e hora, quando
tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar-se em seu desejo traspassando»...

Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corrria
tão ligeira que quase era invisível.

Converteu-se-me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível.
 


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Aquela fera humana que enriquece


Aquela fera humana que enriquece
sua presuntuosa tirania
destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal que falta quando crece;

se nela o Céu mostrou – como parece -
quanto mostrar ao mundo pretendia,
porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte se enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,
Senhora, com vencer-me e cativar-me:
fazei disto no mundo larga história.

Que, por mais que vos veja maltratar-me,
já me fico logrando desta glória
de ver que tendes tanta de matar-me.
 


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Aquela que, de pura castidade


Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança
contrária à sua honra e qualidade,

venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança,
por que ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade.

De si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.

Estranha ousadia! estranho feito!
Que, dando breve morte ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!
 


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Aquela triste e leda madrugada


Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se dúa outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.


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Aqueles claros olhos que chorando


Aqueles claros olhos que chorando
ficavam, quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou se estarão aquele alegre dia,
que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
 


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Árvore, cujo pomo, belo e brando


Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruito debuxando.

Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando-te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.
 


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Bem sei, Amor, que é certo o que receio


Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras,
de manhoso mo negas, e mo juras
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,
e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
me possa inda cegar um moço cego!
 


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Cá nesta Babilónia, donde mana


Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a desengana;

Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;

Cá neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!


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Cantando estava um dia bem seguro


Cantando estava um dia bem seguro,
quando, passando, Sílvio me dizia
(Sílvio, pastor antigo, que sabia
pelo canto das aves o futuro):

«Méris, quando quiser o Fado escuro,
oprimir-te virão em um só dia
dous lobos; logo a voz e a melodia
te fugirão, e o som suave e puro».

Bem foi assi; porque um me degolou
quanto gado vacum pastava e tinha,
de que grandes soldadas esperava;

e outro, por meu dano, me matou
a cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua saudade da alma minha!
 


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Cara minha inimiga, em cuja mão


Cara minha inimiga, em cuja mão
Pôs meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina fermosura;
Mas, enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto
Que possam prometer-te longa história
Daquele amor tão puro e verdadeiro,

Celebrada serás sempre em meu canto;
Porque, enquanto no mundo houver memória,
Será a minha escritura o teu letreiro.


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Chorai, Ninfas, os fados poderosos


Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplendor na terra dura,
com tal rostro e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era digno dela;
por isso mais na terra não esteve:
ao Céu subiu, que já se lhe devia.
 


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Com grandes esperanças já cantei


Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar, porque cantara;
e agora choro já, porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa-me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas, que passara,
tenho pola mor mágoa, que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente!
 


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Com que voz chorarei meu triste fado


Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?

Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.

Assi a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!

De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mi tenho ausente
por quem a vida, e bens dela, aventuro.
 


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Com voz desordenada, sem sentido


Com voz desordenada, sem sentido,
e com olhos de lágrimas cobertos,
soltava o peito em ásperos desertos
entre um vale escuro, empedernido,

Silvano triste, a quem endurecido
têm de uma bela Ninfa os desconcertos,
perdendo a esperança dos incertos
bens em que a Fortuna o há metido;

mas, volto em si um pouco, perguntava
asi por si o pastor; desta tristeza
levanta o coração já desmaiado

e canta, como quem melhor se achava:
«Não desmaies, esprito, na pobreza,
que a fortuna à razão é mau treslado!»
 


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Como fizeste, Pórcia, tal ferida?


«Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?»
«Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar-me a vida».

«E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?»
«Ando-me acostumando à paciência,
por que o temor a morte não impida».

«Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?» «Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente».

«E tens a dor do ferro por pequena?»
«Si; que a dor costumada não se sente.
E eu não quero a morte sem a pena».



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Como podes, ó cego pecador


Como podes, ó cego pecador,
estar em teus errores tão isento,
sabendo que esta vida é um momento,
se comparada com a eterna for?

Não cuides tu que o justo Julgador
deixará tuas culpas sem tormento,
nem que passando vai o tempo lento
do dia de horrendíssimo pavor.

Não gastes horas, dias, meses, anos,
em seguir de teus danos a amizade,
de que depois resultam mores danos.

E pois de teus enganos a verdade
conheces, deixa já tantos enganos,
pedindo a Deus perdão com humildade.
 


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Como quando do mar tempestuoso


Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
de um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso,

e jura que, em que veja bonançoso
o violento mar e sossegado,
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

assi, Senhora, eu, que da tormenta
de vossa vista fujo, por salvar-me,
jurando de não mais em outra ver-me:

minha alma, que de vós nunca se ausenta,
dá-me por preço ver-vos, faz tornar-me
donde fugi tão perto de perder-me.
 


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Contente vivi já, vendo-me isento


Contente vivi já, vendo-me isento
deste mal, de que a muitos queixar via.
Chamam-lhe amor; mas eu lhe chamaria
discórdia e sem-razão, guerra e tormento.

Enganou-me co nome o pensamento
(quem com tal nome não se enganaria?);
agora tal estou que temo um dia,
em que venha a faltar-me o sofrimento.

Com desesperação e com desejo
me paga o que por ele estou passando;
e inda está do meu mal mal satisfeito.

Pois sobre tantos danos inda vejo,
para dar-me outros mil, um olhar brando,
e para os não curar um duro peito.
 


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Conversação doméstica afeiçoa


Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de üa amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.
 


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Correm turvas as águas deste rio


Correm turvas as águas deste rio,
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram,
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
Úas cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.


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Crecei, desejo meu, pois que a Ventura


Crecei, desejo meu, pois que a Ventura
já vos tem nos seus braços levantado;
que a bela causa de que sois gerado
o mais ditoso fim vos assegura.

Se aspirais por ousado a tanta altura,
não vos espante haver ao Sol chegado;
porque é de águia real vosso cuidado,
que, quanto mais o sofre, mais se apura.

Ânimo, coração! que o pensamento
te pode inda fazer mais glorioso,
sem que respeite a teu merecimento.

Que cresças inda mais é já forçoso,
porque, se foi de ousado o teu intento,
agora de atrevido é venturoso.
 


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Criou a Natureza damas belas


Criou a Natureza damas belas,
que foram de altos plectros celebradas;
delas tomou as partes mais prezadas,
e a vós, Senhora, fez do melhor delas.

Elas, diante vós, são as estrelas,
que ficam, com vos ver, logo eclipsadas.
Mas, se elas têm por Sol essas rosadas
luzes de Sol maior, felices elas!

Em perfeição, em graça e gentileza,
por um modo entre humanos peregrino,
a todo o belo excede essa beleza.

Oh! quem tivera partes de divino
pera vos merecer! Mas se pureza
de amor vale ante vós, de vós sou dino.
 


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Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)





 

16/03/2006