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Luís Vaz de Camões




Sonetos





Dai-me üa lei, Senhora, de querer-vos


Dai-me üa lei, Senhora, de querer-vos,
que a guarde, sob pena de enojar-vos;
que a fé, que me obriga a tanto amar-vos,
fará que fique em lei de obedecer-vos.

Tudo me defendei, senão só ver-vos
e dentro na minh' alma contemplar-vos;
que, se assi não chegar a contentar-vos,
ao menos que não chegue a aborrecer-vos.

E, se essa condição cruel e esquiva
que me deis lei de vida não consente,
dai-ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva
sem saber como vivo, tristemente,
mas contente porém de minha sorte.
 


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De frescas belvederes rodeadas


De frescas belvederes rodeadas
estão as puras águas desta fonte;
fermosas ninfas lhes estão defronte,
a vencer e a matar acostumadas.

Andam contra Cupido levantadas
as suas graças, que não há quem conte;
doutro vale esquecidas, doutro monte,
a vida passam neste sossegadas.

O seu poder juntou, sua valia,
Amor, já não sofrendo este desprezo,
somente por se ver delas vingado.

Mas, vendo-as, entendeu que não podia
de ser morto livrar-se, ou de ser preso,
e ficou-se com elas desarmado.
 


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De quantas graças tinha, a Natureza


De quantas graças tinha, a Natureza
fez um belo e riquíssimo tesouro;
e com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza
do belo rostro as rosas, por quem mouro;
no cabelo o valor do metal louro;
no peito a neve em que a alma tenho acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,
e fez deles um sol, onde se apura
a luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura
ela a apurar chegou quanto sabia
de ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.
 


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De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança


De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,
sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento,
se mais há-de perder quem mais alcança.

Mas dou-vos esta firme segurança
que, posto que me mate meu tormento,
pelas águas do eterno esquecimento
segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
que com qualquer cous'outra se contentem;
antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,
que com esquecimento desmereçam
a glória que em sofrer tal pena sentem.
 


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Debaixo desta pedra sepultada


Debaixo desta pedra sepultada
jaz do mundo a mais nobre fermosura,
a quem a Morte, só de inveja pura,
sem tempo sua vida tem roubada,

sem ter respeito àquela assim estremada
gentileza de luz, que a noite escura
tornava em claro dia, cuja alvura
do Sol a clara luz tinha eclipsada.

Do Sol peitada foste, cruel Morte,
pera o livrar de quem o escurecia;
e da Lüa que, ante ela, luz não tinha.

Como de tal poder tiveste sorte?
E, se a tiveste, como tão asinha
tornaste a luz do mundo em terra fria?
 


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Dece do Céu imenso, Deus benino


Dece do Céu imenso, Deus benino,
para encarnar na Virgem soberana.
«Porque dece divino em cousa humana?»
«Para subir o humano a ser Divino».

«Pois como vem tão pobre e tão minino,
rendendo-se ao poder da mão tirana?»
«Porque vem receber morte inumana
para pagar de Adão o desatino».

«Pois como? Adão e Eva o fruto comem
que por seu próprio Deus lhe foi vedado?»
«Si, por que o próprio ser de deuses tomem».

«E por essa razão foi humanado?»
«Si. Porque foi com causa decretado,
se o homem quis ser deus, que Deus seja homem».
 


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Deixando o doce fato e a cabana


Deixando o doce fato e a cabana,
Hilário pastor por üa serra alçada
desta arte se aqueixava em voz irada
da fermosa pastora Terciana:

«Nem tu és nascida de gente humana,
nem foste em ventre de mulher gerada;
mas antre as duras feras és criada,
mamando o leite algüa tigre hircana.

Se em ti houvera algum modo de sentido,
meu mal movera a aspereza tua
e abrandara teu peito endurecido.

Mas creio que mostrando a ira sua,
Deus, pera ser das gentes mais temido,
fez a mim desditoso e a ti crua.»
 


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Descalço e sem chapéu Apolo louro


Descalço e sem chapéu Apolo louro,
dos mais vestidos bem ataviado,
um dia o vi vir tão namorado
da lira, que nas mãos trazia, de ouro...

Dizendo alegre vinha: «Ó meu tesouro,
vida e tempo nas músicas gastado,
com um defeito is desconcertado
que, sendo português, me fazeis mouro.

No trajo digo só, porque é costume
na minha gente ser o trajo inteiro,
não em parte; mas em tudo se resume.

Dais-me pelote e capa, sem sombreiro;
sem calças me subis num alto cume,
aonde o vento temo ser ligeiro».
 


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Despois que quis Amor que eu só passasse


Despois que quis Amor que eu só passasse
quanto mal já por muitos repartiu,
entregou-me à Fortuna, porque viu
que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se aventajasse
no tormento que o Céu me permitiu,
o que para ninguém se consentiu,
para mim só mandou que se inventasse.

Eis-me aqui vou, com vário som, gritando
copioso exemplário para a gente
que destes dous tiranos é sujeita,

desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita
que deste tão pequeno está contente!
 


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Despois que viu Cibele o corpo humano


Despois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Átis seu verde pinheiro,
em piedade o vão furor primeiro
convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a Júpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro
ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
que as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh, ditoso Pinheiro! Oh, mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando à vossa sombra verso eterno!
 


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Diana prateada, esclarecia


Diana prateada, esclarecia
com a luz que do claro Febo ardente,
por ser de natureza transparente,
em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe influía,
quando me apareceu o excelente
raio de vosso aspecto, diferente
em graça e em amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores
e tão propinco a ser de todo vosso,
louvei a hora clara, e a noite escura,

pois nela destes cor a meus amores;
donde colijo claro que não posso
de dia para vós já ter ventura.
 


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Ditosas almas, que ambas juntamente


Ditosas almas, que ambas juntamente
ao céu de Vénus e de Amor voastes,
onde um bem que tão breve cá lograstes
estais logrando agora eternamente.

Aquele estado vosso tão contente,
que só por durar pouco triste achastes,
por outro mais contente já o trocastes,
onde sem sobressalto o bem se sente.

Triste de quem cá vive tão cercado,
na amorosa fineza, de um tormento
que a glória lhe perturba mais crescida!

Triste, pois me não vale o sofrimento,
e Amor, pera mais dano, me tem dado
pera tão duro mal, tão larga vida!
 


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Ditoso seja aquele que somente


Ditoso seja aquele que somente
se queixa de amorosas esquivanças;
pois por elas não perde as esperanças
de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando absente,
não sente mais que a pena das lembranças;
porque inda que se tema de mudanças,
menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado
onde enganos, desprezos e isenção
trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
de erros em que não pode haver perdão,
sem ficar n'alma a mágoa do pecado.
 


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Diversos dões reparte o Céu benino


Diversos dões reparte o Céu benino,
e quer que cada üa um só possua.
Assi, ornou de casto peito a Lüa,
ornamento do assento cristalino;

de graça, a Mãe fermosa do Minino,
que nessa vista tem perdido a sua;
Palas de discrição, que imite a tua;
do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama
em ti o mais que tinha, e foi o menos,
em respeito do Autor da natureza;

que a seu pesar te dão, fermosa Dama,
Diana honestidade, e graça Vénus,
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.
 


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Dizei, Senhora, da Beleza ideia


Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
Para fazerdes esse áureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz febeia,
Esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas orientais
Que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal como quisestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais;
Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.
 


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Doce contentamento já passado


Doce contentamento já passado,
em que todo o meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi cruel e dura
aquela, que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que ordena sua estrela.
 


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Doce sonho, suave e soberano


Doce sonho, suave e soberano,
se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano,
se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
pois sempre nas verdades fui mofino.
 


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Doces águas e claras do Mondego


Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego:

de vós me aparto; mas, porém, não nego
Que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança;
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d' alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.
 


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Doces lembranças da passada glória


Doces lembranças da passada glória,
que me tirou Fortuna roubadora,
deixai-me repousar em paz üa hora,
que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho n'alma larga história
deste passado bem que nunca fora
(ou fora, e não passara); mas já agora
em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro de esquecido
de quem sempre devera ser lembrado,
se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nacido!
Soubera-me lograr do bem passado,
se conhecer soubera o mal presente.
 


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Dos Céus à terra dece a mor beleza


Dos Céus à terra dece a mor beleza,
une-se à carne nossa e fá-la nobre;
e, sendo a humanidade dantes pobre,
hoje subida fica à mor alteza.

Busca o Senhor mais rico a mor pobreza
que, como ao mundo o seu amor descobre,
de palhas vis o corpo tenro cobre,
e por elas o mesmo Céu despreza.

Como Deus em pobreza à terra dece?
O que é mais pobre tanto lhe contenta
que só rica a pobreza lhe parece.

Pobreza este Presépio representa.
Mas tanto, por ser pobre, já merece
que quanto é pobre mais, mais lhe contenta.
 


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Dos ilustres antigos que deixaram


Dos ilustres antigos que deixaram
tal nome, que igualou fama à memória,
ficou por luz do tempo a larga história
dos feitos em que mais se assinalaram.

Se se com cousas destes cotejaram
mil vossas, cada üa tão notória,
vencera a menor delas a mor glória
que eles em tantos anos alcançaram.

A glória sua foi; ninguém lha tome.
Seguindo cada um vários caminhos,
estátuas levantando no seu Templo.

Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos,
ilustre Dom João, com milhor nome
a vós encheis de glória e a nós de exemplo.
 


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El vaso reluciente y cristalino


El vaso reluciente y cristalino,
de Ángeles agua clara y olorosa,
de blanca seda ornado y fresca rosa,
ligado con cabellos de oro fino,

bien claro parecía el don divino
labrado por la mano artificiosa
de aquella blanca Ninfa, graciosa
más que el rubio lucero matutino.

Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,
raxado de los blancos miembros bellos,
y en el agua vuestra ánima pura.

La seda es la blancura, y los cabellos
son las prisiones y la ligadura
con que mi libertad fue asida dellos.
 


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Em fermosa Leteia se confia


Em fermosa Leteia se confia,
por onde vaidade tanto alcança
que, tornada em soberba a confiança,
com os deuses celestes competia.

Por que não fosse avante esta ousadia
- que nacem muitos erros da tardança -
em efeito puseram a vingança,
que tamanha doudice merecia.

Mas Oleno, perdido por Leteia,
não lhe sofrendo Amor que suportasse
castigo duro tanta fermosura,

quis padecer em si a pena alheia;
mas, por que a morte Amor não apartasse,
ambos tornados são em pedra dura.
 


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Em prisões baixas fui um tempo atado


Em prisões baixas fui um tempo atado,
Vergonhoso castigo de meus erros;
Inda agora arrojando levo os ferros
Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega e o Caso duvidoso,
Me fizeram de gostos haver medo.
 


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Em um batel que com doce meneio


Em um batel que com doce meneio
o aurífero Tejo dividia,
vi belas damas ou, melhor diria,
belas estrelas, e um Sol no meio.

As delicadas filhas de Nereio,
com mil cordas de doce harmonia,
iam amarrando a bela companhia
que, se eu não erro, por honrá-las veio.

Ó fermosas Nereidas que, cantando,
lograis aquela vista tão serena
que a vida, em tantos males, quer trazer-me:

dizei-lhe que olhe que se vai passando
o curto tempo e, a tão longa pena,
o espírito é pronto, a carne enferma.
 


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En una selva al despuntar del dia


En una selva al despuntar del dia
estava Endemion triste y lloroso,
buelto al rayo del sol que, presuroso,
por la falda de un monte decendia.

Mirando al turbador de su alegria,
contrario de su bien y su reposo,
tras un suspiro y otro congoxoso,
razones semejantes le dizia:

«Luz clara, para mi la más escura
que, con este passeo apresurado,
mi Sol con tu tiniebla escureciste:

si allá pueden moverte en essa altura
las quexas de un Pastor enamorado,
no tardes en bolver adó saliste».
 


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Enquanto Febo os montes acendia


Enquanto Febo os montes acendia
do Céu com luminosa claridade,
por evitar do ócio a castidade,
na caça o tempo Délia dispendia.

Vénus, que então de furto descendia,
por cativar de Anquises a vontade,
vendo Diana em tanta honestidade,
quase zombando dela, lhe dizia:

«Tu vais com tuas redes na espessura
os fugitivos cervos enredando;
mas as minhas enredam o sentido.»

«Milhor é – respondia a deusa pura -
nas redes leves cervos ir tomando
que tomar-te a ti nelas teu marido.»
 


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Enquanto quis Fortuna que tivesse


Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos.
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos.
 


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Erros meus, má fortuna, amor ardente


Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
 


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Esforço grande, igual ao pensamento


Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos em obras divulgados,
e não em peito tímido encerrados
e desfeitos despois em chuva e vento;

ânimo da cobiça baixa isento,
dino por isso só de altos estados,
fero açoute dos nunca bem domados
povos do Malabar sanguinolento;

gentileza de membros corporais,
ornados de pudica continência,
obra por certo rara de natura:

estas virtudes e outras muitas mais,
dinas todas da homérica eloquência,
jazem debaixo desta sepultura.
 


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Está o lascivo e doce passarinho


Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando,
O verso sem medida, alegre e brando,
Espedindo no rústico raminho.

O cruel caçador (que do caminho
Se vem calado e manso desviando),
Na pronta vista a seta endereitando,
Lhe dá no Estígio lago eterno ninho.

Destarte o coração, que livre andava
(Posto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,
Pera que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
 


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Está-se a Primavera trasladando


Está-se a Primavera trasladando
em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
natura quanto pode manifesta
que o monte, o campo, o rio e a floresta
se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos.
 


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Este amor que vos tenho, limpo e puro


Este amor que vos tenho, limpo e puro
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso ou duro Fado,
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o Inverno e Estio deita;
Só pera meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos pera mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.
 


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Eu cantarei de amor tão docemente


Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que o amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.
 


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Eu cantei já, e agora vou chorando


Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei: mas se me alguém pergunta "quando":
Não sei, que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
Que o passado por ledo estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, se tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?
 


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Eu vivia de lágrimas isento


Eu vivia de lágrimas isento,
num engano tão doce e deleitoso
que, em que outro amante fosse mais ditoso,
não valiam mil glórias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhüa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tão contente e alegre estado,
e passou-se este bem, que nunca fora;

em troco do qual bem só me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me à memória o bem passado.
 


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Ferido sem ter cura perecia


Ferido sem ter cura perecia
o forte e duro Télefo temido,
por aquele que n' água foi metido,
a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia
conselho para ser restituído;
respondeu que tornasse a ser ferido
por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura
que, ferido de ver-vos, claramente
com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,
que fico como hidrópico doente,
que co beber lhe crece mor secura.
 


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Fermosos olhos que na idade nossa


Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso, com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver-vos em mim, Senhora, não quereis,
tanto gosto levais de minha pena.
 


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Fiou-se o coração, de muito isento


Fiou-se o coração, de muito isento
de si, cuidando mal que tomaria
tão ilícito amor tal ousadia,
tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento
outros que visto têm, na fantasia,
que a razão, temerosa do que via,
fugiu, deixando o campo ao pensamento.

«Ó Hipólito casto que, de jeito,
de Fedra, tua madrasta, foste amado,
que não sabia ter nenhum respeito!

Em mim vingou o Amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado,
que se arrepende já do que tem feito».
 


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Foi já um tempo doce cousa amar


Foi já um tempo doce cousa amar,
enquanto me enganava a esperança;
o coração, com esta confiança,
todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana üa mudança!
Que, quanto é mor a bem-aventurança,
tanto menos se crê que há-de durar.

Quem já se viu contente e prosperado,
vendo-se em breve tempo em pena tanta,
razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado,
não o magoa a pena nem o espanta,
que mal se estranhará o costumado.
 


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Fortuna em mi guardando seu direito


Fortuna em mi guardando seu direito,
Em verde derrubou minha alegria.
Oh! quanto se acabou naquele dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito
Que, a tão bem, tal descanso se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a fortuna o fez por descontar-me
Tamanho gosto, em cujo sentimento
A memória não faz senão matar-me,

Que culpas pode dar-me o sofrimento,
Se a causa que ele tem de atormentar-me,
Eu tenho de sofrer o seu tormento?
 


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16/03/2006