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Luís Vaz de Camões




Redondilhas (Parte IV)




CANTIGA VELHA

Apartaram-se os meus olhos
de mim, tão longe...
Falsos amores:
falsos, maus, enganadores...

VOLTAS PRÓPRIAS

Trataram-me com cautela
por me enganar mais asinha;
dei-lhe posse da alma minha;
foram-me fugir co ela.
Não há vê-los, nem há vê-la,
de mim tão longe...
Falsos amores,
falsos, maus, enganadores!

Entreguei-lhe a liberdade
e, enfim, da vida o milhor;
foram-se e do desamor
fizeram necessidade.
Quem teve a sua vontade
de mim tão longe?
Falsos amores
eram cruéis matadores.

Não se pôs terra nem mar
entre nós, que fora em vão;
pôs-se vossa condição,
que tão doce é de passar.
Só ela vos quis leixar
de mim tão longe!
Falsos amores...
e oxalá que enganadores!
 



MOTE ALHEIO

Sem vós e com meu cuidado,
olhai com quem e sem quem.

GLOSA PRÓPRIA

Amor, cuja providência
foi sempre que não errasse
por que n' alma vos levasse,
respeitando o mal – de ausência,
quis que em vós me transformasse.
E vendo-me ir maltratado,
eu e meu cuidado sós,
proveio nisso, de atentado,
por não me ausentar de vós,
sem vós e com meu cuidado.

Mas est' alma que eu trazia
porque vós nela morais,
deixa-me cego e sem guia,
que há por milhor companhia
ficar onde vós ficais.
Assi me vou de meu bem
onde quer a forte estrela,
sem a alma, que em si vos tem,
co mal de viver sem ela:
olhai com quem, e sem quem.


Outra sua ao mesmo mote:

Querendo Amor esconder-vos
em parte que vos não visse,
com extremos de querer-vos
cegou-me os olhos com ver-vos,
levou-os, sem que vos visse.
Eu, cego, mas atinado,
quando vi que vos não via,
do mesmo Amor indinado,
já vedes qual ficaria
sem vós e com meu cuidado.
 



CANTIGA VELHA

Saudade minha,
quando vos veria?

VOLTA PRÓPRIA

Este tempo vão,
esta vida escassa,
para todos passa,
só para mim não.
Os dias se vão
sem ver este dia
quando vos veria.

Vede esta mudança
se está bem perdida:
e em tão curta vida
tão longa esperança!
Se este bem se alcança,
tudo sofreria,
quando vos veria.

Saudosa dor,
eu bem vos entendo;
mas não me defendo,
porque ofendo Amor.
Se fôsseis maior,
em maior valia
vos estimaria.

Minha saudade,
caro penhor meu,
a quem direi eu
tamanha verdade?
Na minha vontade,
de noite e de dia
sempre vos teria.
 



MOTE ALHEIO

Minh'alma, lembrai-vos dela.

GLOSA PRÓPRIA

Pois o ver-vos tenho em mais
que mil vidas que me deis,
assi como a que me dais,
meu bem, já que mo negais,
meus olhos, não mos negueis.
E se a tal estado vim,
guiado de minha estrela,
quando houverdes dó de mim,
minha vida, dai-lhe a fim,
minh' alma, lembrai-vos dela.
 



TROVA DE BOSCÁN

Justa fué mi perdición
de mis males soy contento;
ya no espero galardon,
pues vuestro merecimiento
satisfizo a mi pasión.

GLOSA PRÓPRIA

Después que Amor me formó
todo de amor, cual me veo,
en las leyes que me dió,
el mirar me consintió
y defendióme el deseo.
Mas el alma, como injusta,
en viendo tal perfición,
dió al deseo ocasión:
y pues quebré ley tan justa,
justa fué mi perdición.

Mostrándoseme el Amor
más benigno que cruel,
sobre tirano, traidor,
de celos de mi dolor,
quiso tomar parte en él.
Yo, que tan dulce tormento
no quiero dallo, aunque peco,
resisto y no lo consiento;
mas, si me lo toma á trueco
de mis males, soy contento.

Señora, ved lo que ordena
este Amor tan falso nuestro!
Por pagar á costa ajena
manda que de un mirar vuestro
haga el premio de mi pena.
Mas vos, para que veáis
tan engañosa tención,
aunque muerto me sintáis,
no miréis; que, si miráis,
ya no espero galardón.

«Pues que premio (me diréis)
esperas que será bueno?»
Sabed, si no lo sabéis,
que es lo más de lo que peno
lo menos que merecéis.
Quién hace al mal tan ufano,
y tan libre al sentimiento?
El deseo? No, que es vano.
El Amor? No, que es tirano.
Pues? Vuestro merecimiento.

No pudiendo Amor robarme
de mis tan caros despojos,
aunque fué por más honrarme,
vos sola para matarme
le prestastes vuestros ojos.
Matáronme ambos á dos;
mas á vos con mas razón
debe él la satisfacción;
que á mi por él, y por vos,
satisfizo mi pasión.
 



CHISTE

Irme quiero, madre,
aquella galera
con el marinero
a ser marinera.

VOLTAS PRÓPRIAS

Madre, si me fuere,
dó quiera que vó,
no lo quiero yo,
que el Amor lo quiere.
Aquél niño fiero
hace que me muera,
por un marinero
á ser marinera.

Él que todo puede,
madre, no podrá;
pues es alma vá,
que el cuerpo se quede.
Con él por quién muero
voy, por que no muera;
que, si es marinero,
seré marinera.

Es tirana ley
del niño Señor
que, por un amor,
se deseche un Rey.
Pues desta manera
quiere, yo me quiero
por un marinero
hacer marinera.

Decid, ondas, cuando
vistes vos doncella,
siendo tierna y bella,
andar navegando?
Más no se espera
daquel niño fiero,
vea ya quién quiero,
sea marinera.
 



MOTE

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas, muerto, volved á mirarme
por que me resucitéis.

VOLTAS

Pues me distes tal herida
con gana de darme muerte,
el morir me es dulce suerte,
pues con morir me dais vida.
Ojos, qué os detenéis?
Aoabad ya de matarme;
mas muerto volved á mirarme,
pos que me resucitéis.

La llaga cierto ya es mía,
aunque, ojos, vos no queráis;
mas si la muerte me dais,
el morir me es alegría.
Y así digo que acabéis,
ojos, ya de matarme;
mas muerto, volved á mirarme,
por que me resucitéis.
 



MOTE ALHEIO

Campos bem-aventurados,
tornai-vos agora tristes;
que os dias em que me vistes
alegre já são passados.

GLOSA

Campos cheios de prazer,
vós que estais reverdecendo,
já me alegrei com vos ver;
agora venho a temer
que entristeçais em me vendo.
E pois a vista alegrais
dos olhos desesperados,
não quero que me vejais,
para que sempre sejais
campos bem-aventurados.

Porém se, por acidente,
vos pesar de meu tormento,
sabereis que Amor consente
que tudo me descontente,
senão descontentamento.
Por isso vós, arvoredos,
que já nos meus olhos vistes
mais alegrias que medos,
se mos quereis fazer ledos,
tornai-vos agora tristes.

Já me vistes ledo ser;
mas despois que o falso Amor
tão triste me fez viver,
ledos folgo de vos ver,
por que me dobreis a dor.
E se este gosto sobejo
de minha dor me sentistes,
julgai quanto mais desejo
as horas que vos não vejo
que os dias em que me vistes.

O tempo, que é desigual,
de secos, verdes vos tem;
porque em vosso natural
se muda o mal para o bem,
mas o meu para mor mal.
Se perguntais, verdes prados,
pelos tempos diferentes
que de Amor me foram dados,
tristes aqui são presentes,
alegres já são passados.
 



CANTIGA ALHEIA

Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha.

VOLTAS

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.

Quis voar a üa alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.
 



MOTE

Foi-se gastando a esperança;
fui entendendo os enganos:
do mal ficaram meus danos,
e do bem só a lembrança.

GLOSA

Nunca em prazeres passados
tive firmeza segura,
antes tão arrebatados
que inda não eram chegados
quando mos levou ventura.
E, como quem desconfia
ter em tal sorte mudança,
no meio desta porfia,
de quanto bem pretendia
foi-se gastando a esperança.

Não tive por desatino
a ocasião de perdê-la;
mas foi culpa do destino,
que a ninguém, como mais dino,
Amor pudera sustê-la.
Dei-lhe tudo o que era seu,
não receando tais danos
deste, a quem alma lhe deu;
quando já não era meu,
fui entendendo os enganos.

Fiquei deste mal sobejo,
a quem a causa compete
dizer-lhe tudo o que vejo;
que Amor aceita o desejo,
mas mente no que promete.
Que, se a mim se me obrigou
a dar-me bens soberanos,
foi engano que ordenou;
que do bem tudo levou,
do mal ficaram meus danos.

E se de dor tão desigual
sofro em mim, com padecê-los,
quero de novo sofrê-los;
que, por a causa ser tal,
não determino ofendê-los.
Dobre-se o mal, falte a vida,
creça a fé, falte a esperança,
pois foi mal agradecida;
fique a dor n' alma imprimida,
e do bem só a lembrança.
 



CANTIGA ALHEIA

Pequenos contentamentos,
i buscar quem contenteis,
que a mim não me conheceis.

VOLTAS

Os gostos, que tantas dores
fizeram já valer menos,
não os aceita pequenos
quem nunca teve maiores.
Bem parecem vãos favores,
pois tão tarde me quereis
qu' inda me não conheceis.

Ofereceis-me alegria,
tendo-me já cego e mouco:
é baixeza aceitar pouco
quem tanto vos merecia.
Ide-vos por outra via,
pois o bem que me deveis
nunca mo satisfareis.
 



MOTE ALHEIO

Vede bem se nos meus dias
os desgostos vi sobejos,
pois tenho medo a desejos
e quero mal a alegrias.

VOLTAS PRÓPRIAS

Se desejos fui já ter,
serviram de atormentar-me;
se algum bem pôde alegrar-me,
quis-me antes entristecer.
Passei anos, passei dias,
em desgostos tão sobejos
que, só por não ter desejos,
perderei mil alegrias.
 



MOTE

A alma que está of'recida
a tudo, nada lhe é forte;
assi passa o bem da vida
como passa o mal da morte.

VOLTA

De maneira me sucede
o que temo e o que desejo,
que sempre o que temo vejo,
nunca o que a vontade pede.
Tenho tão oferecida
alma e vida a toda a sorte
que isso me dera da morte
como já me dá da vida.
 



MOTE

Retrato, vós não sois meu.
Retrataram-vos mui mal:
que, a serdes meu natural,
fôreis mofino como eu.

GLOSA

Inda que em vós a arte vença
o que o natural tem dado,
não fostes bem retratado,
que há em vós mais diferença
que do vivo ao pintado.
Se o lugar se considera
do alto estado que vos deu
a sorte, que eu mais quisera,
se é que eu sou quem de antes era,
retrato, vós não sois meu.

Vós na vossa glória posto,
eu na minha sepultura;
vós com bens, eu com desgosto;
parecei-vos ao meu rosto,
e não já à minha ventura.
E pois nela e vós erraram
o que em mim é principal,
muito em ambos se enganaram.
Se por mim vos retrataram,
retrataram-vos mui mal.

Mas se esse rosto fingido
quiseram representar,
e houveram por bom partido
dar-vos a alma do sentido
pera a glória do lugar,
víreis, posto nessa alteza,
que em vós não há cousa igual,
e que nem a maior mal
podeis vir, nem por baixeza,
que a serdes meu natural.

Por isso não confesseis
serdes meu, que é desatino
com que o lugar perdereis.
Se conservar-vos quereis,
blazonai que sois divino;
que, se nesta ocasião
conhecessem que éreis meu,
por meu vos deram de mão,
..................
fôreis mofino, como eu.
 



MOTE

Do la mi ventura,
que non veo alguna.

VOLTAS

Sepa quién padece
que en la sepultura
se esconde ventura
de quién la merece.
Allá me parece
que quiere fortuna
que yo halle alguna.

Naciendo mezquino,
dolor fué mi cama;
tristeza fué el ama,
cuidado el padrino.
Vestióse el destino
negra vestidura:
huyó la ventura.

No se halló tormento
que alli no se hallasse;
ni bien que pasase,
sino como viento.
Oh, que nacimiento,
que luego en la cuna
me seguió fortuna!

Esta dicha mía
que siempre busqué,
buscandola, hallé
que no la hallaría;
que, quién nace en día
d'estrella tan dura,
nunca halla ventura.

No puso mi estrella
más ventura en mi;
así vive en fin
quién nace sin ella.
No me quejo della;
quéjome que atura
vida tan escura.
 



Sentenças do Autor por fim do livro

Vai o bem fugindo
crece o mal co' os anos
vão-se descobrindo
co tempo os enganos.

Amor e alegria
menos tempo dura.
Triste de quem fia
nos bens da ventura!

Bem sem fundamento
tem certa a mudança,
certo o sentimento
na dor da lembrança.

Quem vive contente
viva receoso:
mal que se não sente
é mais perigoso.

Quem males sentiu
saiba já temer
e, pelo que viu,
julgue o que há-de ser.

Alegre vivia;
triste vivo agora:
chora a alma de dia,
e de noite chora.

Confesso os enganos
de meu pensamento.
Bem de tantos anos
foi-se num momento.

Meus olhos, que vistes?
Pois vos atrevestes,
chorai, olhos tristes,
o bem que perdestes.

A luz do sol pura
só a vós se negue;
seja a noite escura,
nunca a manhã chegue.

O campo floreça,
murmurem as águas;
tudo me entristeça,
creçam minhas mágoas.

Quisera mostrar
o mal que padeço:
não lhe dá lugar
quem lhe deu começo.

Em tristes cuidados
passo a triste vida;
cuidados cansados,
vida aborrecida.

Nunca pude crer
o que agora creio;
cegou-me o prazer
do mal que me veio.

Ah, ventura minha,
como me negaste
um só bem que tinha?
Porque mo roubaste?

Triste fantasia
quanta cousa guarda!
Quem já visse o dia
que tanto lhe tarda!

Nesta idade cega
nada permanece:
o que inda não chega
já desaparece.

Qualquer esperança
foge como o vento:
tudo faz mudança,
salvo meu tormento.

Amor cego e triste,
quem o tem padece.
Mal quem lhe resiste!
Mal quem lhe obedece!

No meu mal esquivo,
sei como Amor trata.
E pois nele vivo,
nenhum amor mata.
 



MOTE DO AUTOR

Venceu-me Amor, não o nego;
tem mais força que eu assaz
que, como é ceg'o e rapaz,
dá-me porrada de cego.

VOLTA

Só porque é rapaz ruim,
dei-lhe um bofete, zombando.
Diz-me: «Ó mau, estais-me dando
porque sois maior que mim?
Pois se vos eu descarrego»...
Em dizendo isto, chaz!
torna-me outra. Tá! rapaz,
que dás porrada de cego!
 



MOTE SEU

Enforquei minha esperança,
mas Amor foi tão madraço
que lhe cortou o baraço.

VOLTAS

Foi a Esperança julgada
por sentença da Ventura,
que pois me teve à pendura,
que fosse dependurada.
Vem Cupido co a espada,
corta-lhe cerce o baraço...
Cupido, foste madraço!
 



MOTE SEU

Pus meus olhos nüa funda
e fiz um tiro com ela
às grades de üa janela.

VOLTAS

Üa Dama, de malvada,
tomou seus olhos na mão
e tirou-me üa pedrada
com eles ao coração.
Armei minha funda então,
e pus os meus olhos nela:
Trape! quebro-lh'a janela.
 



A D. António, senhor de Cascais, que prometera a Luís de
Camões seis galinhas recheadas por uma cópia que lhe fizera,
e lhe mandava, por princípio de paga, meia galinha


Cinco galinhas e meia
deve o Senhor de Cascais;
e a meia vinha cheia
de apetitos para as mais.
 



Para homem tão honrado


Para homem tão honrado
fazem-vos mui pouca festa;
mas se eres avisado,
nunca em tábua como esta
tu, Lourenço, vás pegado.
 



A umas senhoras que, jogando perto de uma janela, lhe
caíram três paus e deram na cabeça de Camões.


Para evitar dias maus
da vida triste que passo,
mandem-me dar um baraço,
que já cá tenho três paus.
 



Duas que o diabo leve


Duas que o diabo leve
moram aqui nesta casa:
üa mais quente que a brasa,
outra mais fria que a neve.
 



Já eu vi a taberneiro


Já eu vi a taberneiro
vender vaca por carneiro;
mas não vi por vida minha
vender vaca por galinha
senão ao duque de Aveiro.
 



Esparsa a um fidalgo na Índia que lhe tardava com üa
camisa galante, que lhe prometeu

Quem no mundo quiser ser
havido por singular,
para mais se engrandecer,
há-de trazer sempre o dar
nas ancas do prometer.
E já que vossa mercê
largueza tem por divisa,
como todo mundo vê,
há mister que tanto dê
que venha dar a camisa.
 



Estas trovas mandou o Autor da cadeia em que o tinha
embargado (por) üa dívida Miguel Roiz, Fios Secos de
alcunha, que se embarcava para fora, ao conde do Redondo, viso-rei, pedindo-lhe o fizesse desembargar

Que diabo há tão danado
que não tema a cutilada
dos fios secos da espada
do fero Miguel armado?
Pois se tanto um golpe seu
soa na infernal cadeia,
do que o demónio arreceia,
como não fugirei eu?

Com razão lhe fugiria
se, contra ele e contra tudo,
não tivesse um forte escudo
só em Vossa Senhoria.
Portanto, Senhor, proveja,
pois me tem ao remo atado,
que, antes que seja embarcado,
eu desembargado seja.
 



A üa mulher que foi açoutada por um homem que chamavam
foão Coresma, na Índia.

MOTE

Não estejais agravada
senão se for de vós mesma;
porque a mulher que é errada
com razão pela Coresma
deve ser disciprinada,

GLOSA

Quererdes profano amor
em Coresma, É consciência;
açoutes e penitência
vos está muito milhor.
Não fiqueis disto afrontada,
pois a culpa é vossa mesma;
que mulher, que é tão malvada,
é bem que pela Coresma
seja bem desciprinada.

Se a penitência vos val,
mui bem açoutada estais;
pois por Coresma pagais
vossos vícios do carnal.
Não torneis a ser errada
nem condeneis a vós mesma,
pois estais já emendada;
e não sereis por Coresma
outra vez desciprinada.
 



A üa mulher que se chamava Graça de Morais

MOTE

Olhos em que estão mil flores
e com tanta graça olhais
que parece que os amores
moram onde vós morais.


Vêem-se rosas e boninas
olhos, nesse vosso ver;
vêem-se mil almas arder
no fogo dessas mininas.
E di-lo-ão minhas dores
meus suspiros e meus ais;
e dirão mais, que os Amores
moram onde vós morais.
 



Endechas a üa cativa com quem andava de amores na Índia,
chamada Bárbora.

Aquela cativa,
que me tem cativo
porque nela vivo,
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Üa graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa...
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbora não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo.
E pois nela vivo,
é força que viva.
 



Mote que lhe mandou o viso-rei, na Índia, pera lhe fazer üas
voltas

Muito sou meu inimigo,
pois que não tiro de mi
cuidados com que naci,
que põem a vida em perigo.
Oxalá que fora assi!

VOLTAS PRÓPRIAS

Viver eu, sendo mortal,
de cuidados rodeado,
parece meu natural,
que a peçonha não faz mal
a quem foi nela criado.
Tanto sou meu inimigo
que, por não tirar de mi
cuidados com que naci,
porei a vida em perigo.
Oxalá que fora assi!

Tanto vim a acrecentar
cuidados, que nunca amansam
enquanto a vida durar,
que canso já de cuidar
como cuidados não cansam.
Se estes cuidados que digo
dessem fim a mi e a si,
fariam pazes comigo;
que pôr a vida em perigo
o bom fora para mi.
 



Trovas mandadas ao viso-rei com o modo atrás

Conde, cujo ilustre peito
merece nome de Rei,
do qual muito certo sei
que lhe fica sendo estreito
o cargo de Viso-Rei:
servirdes-vos de ocupar-me,
tanto contra meu planeta,
não foi senão asas dar-me,
com as quais vou a queimar-me
como faz a borboleta.

E se eu a pena tomar
que tão mal cortada tenho,
será para celebrar
vosso valor singular,
dino de mais alto engenho.
Que, se o meu vos celebrasse,
necessário me seria
que os olhos d' águia tomasse,
só para que não cegasse
no sol de vossa valia.

Vossos feitos sublimados,
nas armas dinos de glória,
são no mundo tão soados
que, em vós, de vossos passados
se ressucita a memória.
Pois aquele ânimo estranho,
pronto para todo o efeito,
espanta todo o conceito
como coração tamanho
vos pode caber no peito.

A clemência que asserena
coração tão singular,
s' eu nisso pusesse a pena,
seria encerrar o mar
em cova muito pequena.
Bem basta, Senhor, que agora
vos sirvais de me ocupar,
que assi fareis aparar
a pena com que algüa hora
vos vereis ao Céu voar.

Assi vos irei louvando,
vós a mim do chão erguendo,
ambos o mundo espantando:
vós, co a espada cortando,
eu co a pena escrevendo.
 



Estas trovas mandou Heitor da Silveira ao mesmo conde,
invernando em Goa

Vossa Senhoria creia
que não apura o engenho
fome, se é como a que tenho;
mas afraca e corta a veia.
E, quem o contrário sente,
está farto em toda a hora,
como estou faminto agora.
Mas Marta, se está contente,
dá-lhe pouco de quem chora.

E pois Vossa Senhoria
em geral a tudo acode,
acuda a mim, que só pode
dar-me no engenho valia.
Esperte esta musa minha,
que o tempo traz sonorenta;
valha-me nesta tormenta
com essa doce mezinha
que só dá vida e a contenta.

Acuda com provisão
não de papel, mas provida
de ouro e prata; que esta vida
não sustentam papéis, não.
De feitor a tesoureiro
ser-me-ia trabalho grande;
Vossa Senhoria mande
algum remédio primeiro
com que a morte o ferro abrande.


Ajuda de Luís de Camões:

Nos livros doutos se trata
que o grande Aquiles insano
deu a morte a Heitor troiano;
mas agora a fome mata
o nosso Heitor lusitano.
Só ela o pode acabar,
se essa vossa condição
liberal e singular
não mete entre eles bastão
bastante para o fartar.
 



Convite que Luís de Camões fez na Índia a certos fidalgos,
cujos nomes aqui vão:

A primeira iguaria foi posta a Vasco d'Ataíde, entre dous
pratos, e dizia:

Se não quereis padecer
üa ou duas horas tristes,
sabeis que haveis de fazer?
Volveros por dó venistes,
que aqui não há que comer.
E posto que aqui leiais
trovinha que vos enleia,
corrido não estejais;
porque, por mais que corrais,
não heis-de alcançar a ceia.

A segunda foi posta a D. Francisco d'Almeida, e dizia.

Heliogábalo zombava
das pessoas convidadas,
e de sorte as enganava
que as iguarias que dava
vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
pois já não pode ser nova;
que a ceia está mui segura
de vos não vir em pintura,
mas há-de vir toda em trova.

A terceira foi posta a Heitor da Silveira, e dizia:

Ceia não a papareis;
contudo, por que não minta,
para beber achareis,
não Caparica, mas tinta,
e mil cousas que papeis.
E vós torceis o focinho
com esta anfibologia?
Pois sabei que a Poesia
vos dá aqui tinta por vinho,
e papéis por iguaria.

A quarta foi posta a João Lopes Leitão, a quem o Autor
mandou um moto, que vai adiante, sobre üa peça de cacha, que
este mandou a üa Dama:

Por que os que vos convidaram
vosso estâmago não danem,
por justa causa ordenaram,
se trovas vos enganaram,
que trovas vos desenganem.
Vós tereis isto por tacha:
converter tudo em trovar.
Pois se me virdes zombar,
não cuideis, Senhor, que é cacha,
que aqui não há cachar.

Finge que responde João Lopes Leitão:

Pesar ora não de São!
Eu juro pelo Céu bento,
se de comer me não dão,
que eu não sou camaleão
que m' hei-de manter do vento.

Finge que responde o Autor:

Senhor, não vos agasteis,
porque Deus vos proverá.
E, se mais saber quereis,
nas costas deste lereis
as iguarias que há.

Vira o papel, que dizia assi:

Tendes nem migalha assada,
cousa nenhüa de molho,
e nada feito em empada,
e vento de tigelada,
picar no dente em remolho.
De fumo tendes tassalhos,
aves da pena que sente
quem de fome anda doente;
bocejar de vinho e d' alhos,
manjar em branco excelente.

A quinta e derradeira foi posta a Francisco de Melo, e dizia:

D' um homem, que teve o cetro
da veia maravilhosa,
não foi cousa duvidosa
que se lhe tornava em metro
o que ia a dizer em prosa.
De mim vos quero apostar
que faça cousas mais novas
de quanto podeis cuidar:
esta ceia, que é manjar,
vos faça na boca em trovas.
 



Esparsa sua ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau; mas fui castigado.
Assim que só para mim
anda o mundo concertado.
 



Mote a João Lopes Leitão sobre üa peça de cacha que ele
mandou a üa dama na Índia, que se lhe fazia donzela; o qual
João Lopes Leitão é o que ele convidou no banquete atrás

MOTE

Se vossa dama vos dá
tudo quanto vós quisestes,
dizei para que lhe destes
o que vos ela fez já.

VOLTA

Sendo os restos envidados
e vós de cachas mil contos,
sabeis com quão poucos pontos
que lhos achastes quebrados;
se o que tem, isso vos dá,
vós mui bem lho merecestes
porque, se a cacha lhe destes,
tinha-vo-la feita já.
 



Labirinto do Autor, queixando-se do mundo

Corre sem vela e sem leme
o tempo desordenado,
dum grande vento levado;
o que perigo não teme
é de pouco exprimentado.

As rédeas trazem na mão
os que rédeas não tiveram.
Vendo quanto mal fizeram
a cobiça e ambição,
disfarçados se acolheram.

A nau que se vai perder
destrui mil esperanças;
vejo o mau que vem a ter;
vejo perigos correr
quem não cuida que há mudanças.

Os que nunca em sela andaram
na sela pastos se vêem:
de fazer mal não deixaram
de demónios hábito têm
os que o justo profanaram.

Que poderá vir a ser
o mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
aquele que quer valer,
levando o caminho errado.

É para os bons confusão
ver que os maus prevaleceram;
posto que se detiveram
com esta simulação,
sempre castigos tiveram.

Não porque governe o leme
em mar envolto e turbado,
que tem seu remo mudado,
se merece, grita e geme
em tempo desordenado.

Terem justo galardão
e dor dos que mereceram,
sempre castigos tiveram
sem nenhüa redenção,
posto que se detiveram.

Na tormenta, se vier,
desespere na bonança
quem manhas não sabe ter.
Sem que lhe valha gemer
verá falsar a balança.

Os que nunca trabalharam,
tendo o que lhe não convém,
se ao inocente enganaram,
perderão o eterno bem
se do mal não se apartaram.
 



Disparates seus na Índia

Este mundo es el camino
adó ay ducientos vaus
ou por onde bons e maus
todos somos del merino.
Mas os maus são de teor
que, dês que mudam a cor,
chamam logo a el-Rei compadre;
e enfim, dejadlos, mi madre,
que sempre tem um sabor
de «quem torto nace, tarde se endireita».

Deixai a um que se abone;
diz logo de muito sengo:
villas e castillos tengo,
todos á mi mandar sone.
Então eu, que estou de molho,
com a lágrima no olho,
pelo virar do envés,
digo-lhe: tu insanus es,
e por isso não to tolho,
pois «honra e proveito não cabem num saco».

Vereis uns, que no seu seio
cuidam que trazem Paris,
e querem com dous ceitis
fender anca pelo meio.
Vereis mancebinho d' arte
com espada em talabarte:
não há mais Italiano.
A este direis: – Meu mano,
vós sois galante que farte,
mas «pan y vino anda el camino, que no mozo garrido».

Outros em cada treatro
por ofício lhe ouvireis
que se matarán con tres
y lo mismo harán con cuatro.
Prezam-se de dar repostas
com palavras bem compostas;
mas, se lhe meteis a mão,
na paz mostram coração,
na guerra mostram as costas:
porque «aqui torce a porca o rabo».

Outros vejo por aqui,
a que se acha mal o fundo,
que andam emendando o mundo
e não se emendam a si.
Estes respondem a quem
deles não entende bem
el dolor que está secreto;
mas porém quem for discreto
responder-lhe-á muito bem:
«Assi entrou o mundo, assi há-de sair».

Achareis rafeiro velho,
que se quer vender por galgo:
diz que o dinheiro é fidalgo,
que o sangue todo é vermelho.
S' ele mais alto o dissera,
este pelote pusera;
que o seu eco lhe responda
que su padre era de Ronda
y su madre de Antequera,
e «quer cobrir o céu c' üa joeira».

Fraldas largas, grave aspeito
para senador romano.
Ó que grandíssimo engano!
Que Momo lhe abrisse o peito!
Consciência que sobeja,
siso com que o mundo reja,
mansidão outro que si...
Mas que lobo está em ti,
metido em pele de oveja!
E sabem-no poucos.

Guardai-vos d' uns meus senhores
que ainda compram e vendem;
uns que é certo que descendem
da geração de pastores.
Mostram-se-vos bons amigos;
mas, se vos vêem em perigos,
escarram-vos nas paredes
que de fora dormiredes,
irmão, que é tempo de figos;
porque «de rabo de porco nunca bom virote».

Que dizeis duns, que as entranhas
lhe estão ardendo em cobiça?
E, se têm mando, a justiça
fazem de teias de aranhas,
com suas hipocrisias
que são de vossas espias?
Para os pequenos, uns Neros;
para os grandes, tudo feros.
Pois tu, parvo, não sabias
que «lá vão leis, onde querem cruzados»?

Mas tornando a uns enfadonhos
cujas cousas são notórias:
uns, que contam mil histórias
mais desmanchadas que sonhos;
uns, mais parvos que zamboas,
que estudam palavras boas,
a que ignorância os atiça;
estes paguem por justiça,
que têm morto mil pessoas,
por vida de quanto quero.

Adonde tienen las mentes
uns secretos trovadores,
que fazem cartas d' amores,
de que ficam mui contentes?
Não querem sair à praça;
trazem trova por negaça
e, se lha gabais que é boa,
diz que é de certa pessoa...
Ora que quereis que faça,
senão ir-me por esse mundo?

Ó tu, como me atarracas,
escudeiro de solia,
com bocais de fidalguia,
trazidos quase com vacas;
importuno a importunar,
morto por desenterrar
parentes que cheiram já!
Voto a tal que me fará
um destes nunca falar
mais com viva alma.

Uns que falam muito vi,
de que quisera fugir;
uns que, enfim, sem se sentir,
andam falando entre si;
porfiosos sem razão;
e dês que tomam a mão,
falam sem necessidade;
e se algüa hora é verdade,
deve ser na confissão;
porque «quem não mente...» Já me entendeis.

Ó vós, quem quer que me ledes,
que haveis de ser avisado:
que dizeis ao namorado
que caça vento com redes?
Jura por vida da Dama,
fala consigo na cama,
passa de noite, e escarra;
por falsete na guitarra
põe sempre: Viva quem ama,
porque calça a seu propósito.

Mas deixemos, se quiserdes,
por um pouco as travessuras,
por que, entre quatro maduras,
leveis também cinco verdes.
Deitemo-nos mais ao mar;
e, se algum se arrecear,
passe três ou quatro trovas.
E vós tomais cores novas?
Mas não é para espantar,
que «quem porcos há menos, em cada mouta lhe roncam».

Ó vós, que sois secretários
das consciências reais,
que entre os homens estais
por senhores ordinários:
porque não pondes um freio
ao roubar, que vai sem meio,
debaixo de bom governo?
Pois um pedaço d'inferno
por pouco dinheiro alheio
se vende a Mouro e a Judeu.

Porque a mente, afeiçoada
sempre à real dignidade,
vos faz julgar por bondade
a malícia desculpada.
Move a presença real
üa aflição natural,
que logo inclina ao juiz
a seu favor; e não diz
um rifão muito geral
que «o abade donde canta, daí janta»?

E vós bailais a esse som?
Por isso, gentis pastores,
vos chama a vós mercadores
um que só foi pastor bom.
 



SOBRE OS RIOS QUE VÃO

(SÔBOLOS RIOS QUE VÃO)

Sobre os rios que vão
por Babilónia m' achei
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado:
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val
que então se entende milhor
quando mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento;
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mágoas
e confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo,
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou,

assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei,
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: «Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam decendo,
tornavam logo a subir.
Jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam;
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que, por vos ouvir, deixavam.

Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.

Ficareis oferecida
à Fama, que sempre vela,
frauta de mim tão querida;
porque, mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
já sente por pouquedade
aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança
amanhã já o não vejo;
assi nos traz a mudança
de esperança em esperança,
e de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte
que quanto da vida passa
está receitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade...
Não cuide a gente futura
que será obra da idade
o que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quão ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixe o canto,
a causa dele deixasse.

Mas, em tristezas e enojos
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
terné presente á los ojos
por quien muero tan contento».
Órgãos e frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava;
que para troféu ficava
de quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição,
que ali cativo me tinha,
me perguntaram então
que era da música minha
qu'eu cantava em Sião.
Que foi daquele cantar
das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por antre o espesso arvoredo;
e de noite o temeroso,
cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente
os duros grilhões tocando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente.

Eu, que estas cousas senti
n' alma, de mágoas tão cheia,
«Como dirá, respondi,
quem tão alheio está de si
doce canto em terra alheia?»
Como poderá cantar
quem en choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu só descansos enjeito.

Que não parece razão
nem seria cousa idónea,
por abrandar a paixão,
que cantasse em Babilónia
as cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
de saudade quebrante
esta vital fortaleza,
antes moura de tristeza
que, por abrandá-la, cante.

Que, se o fino pensamento
só na tristeza consiste,
não tenho medo ao tormento:
que morrer de puro triste,
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo e passei já,
nem menos o escreverei;
porque a pena cansará,
e eu não descansarei.

Que, se vida tão pequena
se acrecenta em terra estranha
e se amor assi o ordena,
razão é que canse a pena
de escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
o que sente o coração,
a pena já me cansar,
não canse para voar
a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,
se, por algum movimento,
d' alma me fores mudada,
minha pena seja dada
a perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser
em Babilónia sujeito,
Hierusalém, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A minha língua se apegue
às fauces, pois te perdi,
se, enquanto viver assi,
houver tempo em que te negue
ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,
se eu nunca vi tua essência,
como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina
que voa da própria casa,
e sobe à pátria divina.

Não é logo a saudade
das terras onde naceu
a carne, mas é do Céu,
daquela santa cidade,
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que cá me pôde alterar,
não é quem se há-de buscar:
é raio da fermosura
que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que cá sujeita,
não do sol, mas da candeia,
é sombra daquela Ideia
que em Deus está mais perfeita.
E os que cá me cativaram
são poderosos efeitos
que os corações têm sujeitos:
sofistas, que me ensinaram
maus caminhos por direitos.

Destes o mando tirano
me obriga, com desatino,
a cantar ao som do dano
cantares de amor profano
por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
de confusão e de espanto,
como hei-de cantar o canto
que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o benefício
da Graça que dá saúde,
que ordena que a vida mude;
e o que tomei por vício
me fez grau para a virtude.
E faz este natural
amor, que tanto se preza,
suba da sombra real,
da particular beleza
para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
a frauta com que tangi,
ó Hierusalém sagrada,
e tome a lira dourada
para só cantar de ti!
Não cativo e ferrolhado
na Babilónia infernal;
mas dos vícios desatado,
e cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
a mundanos acidentes,
duros, tiranos e urgentes,
risque-se quanto já fiz
do grão livro dos viventes.
E tomando já na mão
a lira santa e capaz
doutra mais alta invenção,
cale-se esta confusão,
cante-se a visão da paz.

Ouça-me o pastor e o rei,
retumbe este acento santo,
mova-se no mundo espanto,
que do que já mal cantei
a palinódia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
da alta torre de Sião,
à qual não posso subir
se me vós não dais a mão.

No grão dia singular
que na lira o douto som
Hierusalém celebrar,
lembrai-vos de castigar
os ruins filhos de Edom.
Aqueles, que tintos vão
no pobre sangue inocente,
soberbos co poder vão;
arrasai-os igualmente,
conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro
dos efeitos com que venho,
que encendem alma e engenho,
que já me entraram o muro
do livre alvídrio que tenho;
estes, que tão furiosos
gritando vêm a escalar-me,
maus espíritos danosos,
que querem como forçosos
do alicerce derrubar-me;

derrubai-os, fiquem sós,
de forças fracos, imbeles,
porque não podemos nós
nem com eles ir a Vós,
nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
para me dar defensão,
se vós, santo Capitão,
nesta minha fortaleza
não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,
filha de Babel tão feia,
toda de misérias cheia,
que mil vezes te levantas
contra quem te senhoreia!
Beato só pode ser
quem co a ajuda celeste
contra ti prevalecer,
e te vier a fazer
o mal que lhe tu fizeste;

quem com disciplina crua
se fere mais que üa vez,
cuja alma, de vícios nua,
faz nódoas na carne sua,
que já a carne na alma fez;
e beato quem tomar
seus pensamentos recentes
e, em nacendo, os afogar,
por não virem a parar
em vícios graves e urgentes;

quem com eles logo der
na pedra do furor santo
e, batendo, os desfizer
na Pedra, que veio a ser
enfim cabeça do Canto;
quem logo, quando imagina
nos vícios da carne má,
os pensamentos declina
àquela Carne divina
que na Cruz esteve já;

quem do vil contentamento
cá deste mundo visível,
quanto ao homem for possível,
passar logo o entendimento
para o mundo inteligível,
ali achará alegria
em tudo perfeita e cheia
de tão suave harmonia
que nem, por pouca, recreia,
nem, por sobeja, enfastia.

Ali verá tão profundo
mistério na suma alteza
que, vencida a natureza,
os mores faustos do mundo
julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular!
Se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
tão justo e tão penitente
que, despois de a ti subir,
lá descanse eternamente.


 

 

 

 


 

16/03/2006