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Luís Vaz de Camões




Redondilhas (Parte III)




A üa dama

Querendo escrever um dia
o mal que tanto estimei,
cuidando no que poria,
vi Amor que me dizia:
«Escreve, que eu notarei.»
E como para se ler
não era história pequena
a que de mim quis fazer,
das asas tirou a pena
com que me fez escrever.

E logo como a tirou,
me disse: «Aviva os espritos,
que pois em teu favor sou,
esta pena que te dou
fará voar teus escritos.»
E, dando-me a padecer
tudo o que quis que pusesse,
pude, enfim, dele dizer
que me deu com que escrevesse
o que me deu a escrever.

Eu, qu' este engano entendi,
disse-lhe: «Que escreverei?»
Respondeu, dizendo assi:
«Altos efeitos de ti
e daquela a quem te dei.
E já que te manifesto
todas minhas estranhezas,
escreve, pois que te prezas,
milagres dum claro gesto
e, de quem o viu, tristezas.»

Ah! Senhora, em quem se apura
a fé de meu pensamento!
Escutai e estai a tento,
que com vossa fermosura
iguala Amar meu tormento.
E posto que tão remota
estejais de me escutar,
por me não remediar,
ouvi, que pois Amor nota,
milagres se hão-de notar:

NOTA

Escrevem vários autores
que, junto da clara fonte
do Ganges, os moradores
vivem do cheiro das flores
que nacem naquele monte.
Se os sentidos podem dar
mantimento ao viver,
não é, logo, d' espantar,
se estes vivem de cheirar,
que viv' eu só de vos ver.

Üa árvore se conhece
que, na geral alegria,
ela só tanto entristece
que, como é noite, florece,
e perde as flores de dia.
Eu, que em ver-vos sinto o preço
que em vossa vista consiste,
em a vendo, me entristeço,
porque sei que não mereço
a glória de viver triste.

Um rei de grande poder
com veneno foi criado,
por que, sendo costumado,
não lhe pudesse empecer,
se despois lhe fosse dado.
Eu, que criei de pequena
a vida a quanto padece,
desta sorte me acontece
que não me faz mal a pena,
senão quando me falece.

Quem da doença real,
de longe, enfermo se sente,
por segredo natural
fica são, vendo somente
um volátil animal.
Do mal que Amor em mim cria,
quando aquela Fénix vejo,
são de toda ficaria;
mas fica-me hidropesia,
que quanto mais, mais desejo.

Da bívora é verdadeiro
- se a consorte vai buscar -
que, em se querendo juntar,
deixa a peçonha primeiro,
porque lhe impede o gerar.
Assi, quando me apresento
à vossa vista inumana,
a peçonha do tormento
deixo aparte, porque dana
tamanho contentamento.

Querendo Amor sustentar-se,
fez üa vontade esquiva
düa estátua namorar-se;
despois, por manifestar-se,
converteu-a em mulher viva.
De quem me irei queixando,
ou quem direi que m' engana,
se vou seguindo e buscando
üa imagem que, de humana,
em pedra se vai tornando?

De üa fonte se sabia,
da qual certo se provava
que, quem sobr' ela jurava,
se falsidade dizia,
dos olhos logo cegava.
Vós, que minha liberdade,
Senhora, tiranizais,
injustamente mandais,
quando vos falo verdade,
que vos não possa ver mais.

Da palma se escreve e canta
ser tão dura e tão forçosa
que peso não a quebranta;
mas antes, de presunçosa,
com ele mais se levanta.
Co peso do mal que dais,
a constância que em mim vejo
não somente ma dobrais,
mas dobra-se meu desejo,
com que então vos quero mais.

Se alguém os olhos quiser
às andorinhas quebrar,
logo a mãe, sem se deter,
üa erva lhe vai buscar,
que lhe faz outros nacer.
Eu, que os olhos tenho a tento
nos vossos, que estrelas são,
cegam-se os do entendimento;
mas nacem-me os da razão
de folgar com meu tormento.

Lá para onde o sol sai
descobrimos, navegando,
um novo rio admirando,
que o lenho, que nele cai,
em pedra se vai tornando.
Não se espantem disto as gentes:
mais razão será que espante
um coração tão possante
que, com lágrimas ardentes,
se converte em diamante.

Pode um mudo nadador
na linha e cana influir
tão venenoso vigor
que faz mais não se bulir
o braço do pescador.
Se começam de beber
deste veneno excelente
meus olhos, sem se deter,
não se sabem mais mover
a nada que se apresente.

Isto são claros sinais
do muito que em mim podeis:
nem podeis desejar mais;
que, se ver-vos desejais,
em mim claro vos vereis.
E quereis ver a que fim
em mim tanto bem se pôs?
Porque quis Amor assim:
que, por vos verdes a vós,
também me vísseis a mim.

Dos males que me ordenais,
que inda tenho por pequenos,
sabei, se mos escutais,
que já não sei dizer mais,
nem vós podeis saber menos.
Mas já que a tanto tormento
não se acha quem resista,
eu, Senhora, me contento
de terdes meu sofrimento
por alvo de vossa vista.

Quantos contrários consente
Amor, por mais padecer!
Que aquela vista excelente,
que me faz viver contente,
me faça tão triste ser!
Mas dou este entendimento
ao mal que tanto me ofende:
como na vela se entende
que, se se apaga co vento,
co mesmo vento se acende.

Exprimentou-se algü' hora
da ave que chamam Camão,
que, se da casa onde mora
vê adúltera a senhora,
morre de pura paixão.
A dor é tão sem medida
que remédio lhe não val;
mas oh, ditoso animal,
que pode perder a vida
quando vê tamanho mal!

Nos gostos de vos querer
estava agora enlevado,
se não fora salteado
das lembranças de temer
ser por outrem desamado.
Estas suspeitas tão frias,
com que o pensamento sonha,
são assi como as Harpias,
que as mais doces iguarias
vão converter em peçonha.

Faz-me este mal infinito
não poder já mais dizer,
por não vir a corromper
os gastos que tenho escrito
cos males que hei-de escrever.
Não quero que se apregoe
mal tanto para encobrir,
por que, em quanto aqui se ouvir,
nenhüa outra cousa soe
que a glória de vos servir.
 



MOTE ALHEIO

Amores de üa casada
que eu vi polo meu mal.

VOLTAS PRÓPRIAS

Nüa casada fui pôr
os olhos, de si senhores;
cuidei que fossem amores,
eles fizeram-se Amor.
Faz-se o desejo maior
donde o remédio não val,
em perigo de meu mal.

Não me pareceu que Amor
pudesse tanto comigo
que, donde entra por amigo,
se levante por senhor.
Leva-me de dor em dor
e de sinal em sinal,
cada vez para mor mal.
 



A üa dama por quem penava

Se n' alma e no pensamento
por vosso me manifesto
não me pesa do que sento;
que, se não sofrer tormento,
faço ofensa a vosso gesto.
E pois quanto Amor ordena
e quanto esta alma deseja
tudo à morte me condena,
não quero senão que seja
tudo pena, pena, pena.
 



MOTE ALHEIO

Sem ventura é por demais

GLOSA PRÓPRIA

Todo o trabalhado bem
promete gostoso fruito;
mas os trabalhos, que vêm
para quem dita não tem,
valem pouco e custam muito.
Rompe toda a pedra dura,
faz os homens imortais
o trabalho, quando atura;
mas querer achar ventura
sem ventura, é por demais.
 



MOTE ALHEIO

Triste vida se me ordena.,
pois quer vossa condição
que os males, que dais por pena,
me fiquem por galardão.

GLOSA PRÓPRIA

Despois de sempre sofrer,
Senhora, vossas cruezas,
apesar de meu querer,
me quereis satisfazer
meus serviços com tristezas.
Mas pois embalde resiste
quem vossa vista condena,
prestes estou para a pena;
que, de galardão tão triste,
triste vida se me ordena.

De contente do mal meu,
a tão grande extremo vim
que consinto em minha fim;
assi que, vós e mais eu,
ambos somos contra mim.
Mas que sofra meu tormento
sem querer mais galardão,
não é fora de razão
que queira meu sofrimento,
pois quer vossa condição.

O mal que vós dais por bem,
esse, Senhora, é mortal;
que o mal que dais como mal,
em muito menos se tem,
por costume natural.
Mas porém nesta vitória,
que comigo é bem pequena,
a maior dor me condena
a pena, que dais por glória,
que os males, que dais por pena.

Que mor bem me possa vir
que servir-vos, não o sei.
Pois que mais quero eu pedir
se, quanto mais vos servir,
tanto mais vos deverei?
Se vossos merecimentos
de tão alta estima são,
assaz de favor me dão
em querer que meus tormentos
me fiquem por galardão.
 



A üa dama perguntando-lhe quem o matava

MOTE

Perguntais-me quem me mata;
não quero responder nada,
por vos não fazer culpada.

VOLTAS

E se a pena não me atiça
a dizer pena tão forte,
quero-me entregar à morte,
antes que vós à justiça.
Porém, se tendes cobiça
de vos verdes tão culpada,
direi que não sinto nada.
 



MOTE

Ferro, fogo, frio e calma
todo o mundo acabarão;
mas nunca vos tirarão,
alma minha, da minha alma.

GLOSA

Não vos guardei, quando vinha,
em torre, força ou engenho;
que mais guardada vos tenho
em vós, que sois alma minha.
Ali, nem frio nem calma
não podem ter jurdição;
na vida sim, porém não
em vós, que tenho por alma.
 



MOTE ALHEIO

Trabalho descansariam,
se para vós trabalhasse;
tempos tristes passariam,
se algüa hora vos lembrasse.

GLOSA PRÓPRIA

Nunca o prazer se conhece
senão despois da tormenta;
tão-pouco o bem permanece
que, se o descanso florece,
logo o trabalho arrebenta.
Sempre os bens se lograriam;
mas os males tudo atalham.
Porém, já que assi porfiam,
onde descansos trabalham,
trabalhos descansariam.

Qualquer trabalho me fora
por vós grão contentamento;
nada sentira, Senhora,
se vira disto algüa hora
em vós um conhecimento.
Por mal que o mal me tratasse,
tudo por bem tomaria;
posto que o corpo cansasse,
a alma descansaria,
se para vós trabalhasse.

Quem vossas cruezas já
sofreu, a tudo se pôs;
costumado ficará,
e muito milhor será,
se trabalhar para vós.
Tristezas esqueceriam,
posto que mal me trataram;
anos não me lembrariam,
que, como estoutros passaram,
tempos tristes passariam.

Se fosse galardoado
este trabalho tão duro,
não vivera magoado.
Mas não o foi o passado,
como o será o futuro?
De cansar não cansaria,
se quiséreis que cansasse.
Cavar, morrer, fá-lo-ia;
tudo, enfim, me esqueceria,
se algüa hora vos lembrasse.
 



A üas suspeitas

Suspeitas, que me quereis?
Que eu vos quero dar lugar
que, de certas, me mateis,
se a causa de que naceis
vos quisesse confessar.
Que de não lhe achar desculpa,
a grande mágoa passada
me tem a alma tão cansada
que, se me confessa a culpa,
tê-la-ei por desculpada.

Ora vede que perigos
têm cercado o coração;
que, no meio da opressão,
a seus próprios inimigos
vai pedir a defensão!
Que, suspeitas, eu bem sei,
como se claro vos visse,
que é certo o que já cuidei;
que nunca mal suspeitei
que certo me não saísse.

Mas queria esta certeza
daquela que me atormenta;
porque, em tamanha estreiteza,
ver que disso se contenta
é descanso da tristeza.
Porque se esta só verdade
me confessa, limpa e nua
de cautela e falsidade,
não pode a minha vontade
desconformar-se da sua.

Por segredo namorado,
é certo estar conhecido
que o mal de ser enjeitado
mais atormenta, sabido,
mil vezes, que suspeitado.
Mas eu só, em quem se ordena
novo modo de querela,
de medo da dor pequena,
venho achar na maior pena
o refrigério para ela.

Já nas iras me inflamei,
nas vinganças, nos furores
que já, doudo, imaginei;
e já mais doudo jurei
d' arrancar d' alma os amores.
Já determinei mudar-me
para outra parte, com ira;
despois vim a concertar-me
que era bom certificar-me
no que mostrava a mentira.

Mas despois já de cansadas
as fúrias do imaginar,
vinha enfim a arrebentar
em lágrimas magoadas
e bem para magoar.
E deixando-se vencer
os meus fingidos enganos
de tão claros desenganos,
não posso menos fazer
que contentar-me cos danos

e pedir que me tirassem
este mal de suspeitar,
que me vejo atormentar,
inda que me confessassem
quanto me pode matar.
Olhai bem se me trazeis,
Senhora, posto no fim;
pois neste estado a que vim,
para que vós confesseis,
se dão os tratos a mim.

Mas para que tudo possa
Amor, que tudo encaminha,
tal justiça lhe convinha:
por que, da culpa que é vossa,
venha a ser a morte minha.
Justiça tão mal olhada,
olhai com que cor se doura;
que quer, no fim da jornada,
que vós sejais confessada
para que eu seja o que moura!

Pois confessai-vos já 'gora,
inda que tenho temor
que nem nest' última hora
me há-de perdoar Amor
vossos pecados, Senhora.
E assi vou desesperado,
porque estes são os costumes
d' amor que é mal empregado,
do qual vou já condenado
ao inferno de ciúmes!
 



MOTE

Vosso bem-querer, Senhora?
Vosso mal melhor me fora!

VOLTAS

Já 'gora certo conheço
ser milhor todo tormento
onde o arrependimento
se compra por justo preço.
Enganou-me um bom começo;
mas o fim me diz agora
que o mal milhor me fora.

Quando um bem é tão danoso
que, sendo bem, dá cuidado,
o dano fica obrigado
a ser menos perigoso.
Mas se a mim, por desditoso,
co bem me foi mal, Senhora,
co vosso mal bem me fora.
 



MOTE ALHEIO

Trocai o cuidado,
Senhora, comigo:
vereis o perigo
que é ser desamado.

VOLTAS PRÓPRIAS

Se trocar desejo
o amor entre nós,
é para que em vós
vejais o que vejo.
E, sendo trocado
este amor comigo,
ser-vos-á castigo
terdes meu cuidado.

Tendes o sentido
d' amor livre e isento,
e cuidais que é vento
ser tão mal querido.
Não seja o cuidado
tão vosso inimigo
que queira o perigo
de ser desamado.

Mas nunca foi tal
este meu querer
que, a quem tanto quer,
queira tanto mal.
Seja eu maltratado,
e nunca o castigo
vos mostre o perigo
que é ser desamado.
 



A üa senhora a quem deram pera üa filha sua um
pedaço de cetim amarelo, de quem se tinha suspeita.

Se derivais de verdade
esta palavra Sitim,
achareis, sem falsidade,
que após o si, tem o tim,
que tine em toda a cidade.
Bem vejo que me entendeis;
mas, por que não fale em vão,
sabei que a esta nação
tanto que o si concedeis
o tim logo está na mão.

E quem da fama se arreda
que tudo vai descobrir,
deve sempre de fugir
de sitins, porque da seda
seu natural é rugir.
Mas pano fino e delgado,
qual raxa e outros assi,
dura, aquenta e é calado,
amoroso, e dá de si
mais que sitim nem borcado.

Mas estes, que sedas são,
com quem s' enganam mil damas
mais vos tomam do que dão:
prometem, mas não darão
senão nódoas para as famas.
E se não me quereis crer
ou tomais outro caminho,
por exemplo o podeis ver,
quando lá virdes arder
a casa de algum vizinho.

Ó feminina simpreza.
donde estão culpas a pares,
que, por um Dom de nobreza,
deixam dões de natureza
mais altos e singulares!
Um dom que anda enxertado
no nome, e nas obras não!...
Falo como exprimentado,
que sitim desta feição
eu tenho muito cortado.

Dizem-me que era amarelo;
a quem assi o quis dar,
só para me Deus vingar,
se vem à mão, amarei-lo,
o que eu não posso cuidar.
Porque quem sabe viver
por estas artes manhosas
isto bem pode não ser:
dá a mininas fermosas
somente polas fazer.

Quem vos isto diz, Senhora,
serviu nas vossas armadas
muito, mas anda já fora;
e pode ser que inda agora
traz abertas as frechadas.
E, posto que desfavores
o tiram de servidor,
quer-vos ventura milhor;
que, dos antigos amores,
inda lhe fica este amor.
 



OUTRO MOTE ALHEIO

Para que me dán tormento
aprovechando tan poco»?
Perdido, mas no tan loco
que descubra lo que siento.

VOLTAS PRÓPRIAS

Tiempo perdido es aquel
que se pasa en darme afán,
pues quanto más me lo dán
tanto menos siento del.
Que descubra lo que siento?
No lo haré, que no es tan poco;
que no puede ser tan loco
quién tiene tal pensamiento.

Sepan que me manda Amor
que, de tan dulce querella,
a nadie dé parte della,
porque la sienta mayor.
Es tan dulce mi tormiento
que aún se me antoja poco;
y si es mucho, quedo loco
de gusto de lo que siento.
 



A üa dama com quem queria andar d'amores

MOTE

Minina fermosa e crua,
bem sei eu
quem deixara de ser seu,
se vós quiséreis ser sua.

VOLTA

Minina mais que na idade,
se, para me querer bem,
vos não vejo ter vontade,
é porque outrem vo-la tem;
tem-vo-la, e faz-vo-la crua.
Porém eu
já tomara não ser meu,
se vós não fôreis tão sua.

Nos olhos e na feição
vos vi, quando vos olhava,
tanta graça que vos dava
de graça este coração.
Não no quisestes, de crua,
por ser meu;
se outrem vos dera o seu,
pode ser fôreis mais sua.

Minina, tende maneira
que ainda não venha a ser
- pois não quereis quem vos quer -
que queirais quem vos não queira.
Olhai, não me sejais crua;
que, pois eu
quero ser vosso e não meu,
sede vós minha e não sua.
 



CANTIGA ALHEIA

Minina fermosa,
dizei: de que vem
serdes rigorosa
a quem vos quer bem?

VOLTAS PRÓPRIAS

Não sei quem assela
vossa fermosura;
que quem é tão dura
não pode ser bela.
Vós sereis fermosa;
mas a razão tem
que quem é irosa
não parece bem.

A mostra é de bela,
as obras são cruas;
pois qual destas duas
ficará na sela?
Se ficar irosa,
não vos está bem:
fique antes fermosa,
que mais força tem.

O Amor fermoso
se pinta e se chama:
se é amor, ama;
se ama, é piadoso.
Diz agora a grosa,
que este texto tem,
que quem é fermosa
há-de querer bem.

Havei dó, minina,
dessa fermosura;
que, se a terra é dura,
seca-se a bonina.
Sede piadosa;
não veja ninguém
que, por rigorosa,
percais tanto bem.
 



MOTE

Quem se confia em olhos,
nas mininas deles vê
que mininas não têm fé.

VOLTAS

Quem põe suas confianças
em mininas sem assento,
ofereça o sofrimento
a duzentas mil mudanças.
Mostram no ar esperanças,
mas em seus olhos se vê
como não têm n' alma fé.

Enganam ao parecer,
porque no caso de amar
são mulheres no matar,
e mininas no querer.
Quem em seus olhos se crer,
cem mil graças neles vê;
vê-las, sim, mas não ter fé.

Amostram-vos num momento
favores assi a molhos;
mas na mudança dos olhos
se lhe muda o pensamento.
Em nada têm assento,
e o que mais neles se vê
é fermosura sem fé.
 



MOTE ALHEIO

Minina dos olhos verdes,
porque me não vedes?

VOLTAS PRÓPRIAS

Eles verdes são,
e têm por usança
na cor, esperança,
e nas obras não.
Vossa condição
não é d' olhos verdes,
porque me não vedes.

Isenções a molhos
que eles dizem terdes,
não são d' olhos verdes,
nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos
e vós não me credes,
porque me não vedes.

Haviam de ser,
por que possa vê-los,
que uns olhos tão belos
não se hão-de esconder;
mas fazeis-me crer
que já não são verdes,
porque me não vedes.

Verdes não o são,
no que alcanço deles;
verdes são aqueles
que esperança dão.
Se na condição
está serem verdes,
porque me não vedes?
 



CANTIGA VELHA

Sois fermosa e tudo tendes,
senão que tendes os olhos verdes.

VOLTAS

Ninguém vos pode tirar
serdes bem assombrada;
mas heis-me de perdoar,
que as olhos não valem nada.
Fostes mal aconselhada
em querer que fossem verdes:
trabalhai de os esconderdes.

A vossa testa é jardim,
onde Amor se desenfada:
é branca e bem talhada
que parece de marfim.
Assi é, e, quanto a mim,
isso nace de a terdes
tão perto dos olhos verdes.

Os cabelos dasatados
o mesmo Sol escurecem;
senão que, por serem ondados,
algum tanto desmerecem:
mas, à fé, que se parecem
a furto dos olhos verdes,
não vos pese de os terdes.

As pestanas têm mostrado
ser raios que abrasam vidas;
se não foram tão compridas
tudo o mais era pintado:
elas me tinham levado
já sem o vós saberdes,
se não foram os olhos verdes.

O mimo desse carão
nem pôr-lhe os olhos consente:
e ser liso e transparente
rouba todo o coração.
Inda assim achareis gente
que lhe não pese de o terdes;
mas não seja cos olhos verdes.

Esse riso é composto
de quantas graças naceram;
senão que alguns me disseram
vos faz covinhas no rosto.
Na vontade tenho posto
dar-vos a alma, se quiserdes,
a troco dos olhos verdes.

Nunca se viu, nem se escreve
boca nem graça igual,
se não fora de coral
e os dentes de cor de neve.
Dou-me a Deus, que me leve!
Sofrerei quanto tiverdes;
não me tenhais os olhos verdes.

Essa garganta merece
outras palavras, não minhas,
senão que é feita em rosquinhas
de alfenim, o que parece.
Eu sei quem se ofrece
a tomar tudo o que tendes,
e também os olhos verdes.

Essas mãos são ferropoias,
só com vê-las, enfeitiça;
senão que são alvas e cheias,
e têm a feição roliça,
com que apelais por justiça,
para com elas prenderdes
os que têm vossos olhos verdes.

A vossa galantaria
matará a quem falardes;
tendes uns desdéns e tardes
que eu logo vos roubaria.
Dou-me a Santa Maria!
Sou cujo de quanto tendes,
também desses olhos verdes.


OUTRAS VOLTAS AO MESMO MOTE

Tudo tendes singular,
com que os corações rendeis,
senão que rindo fazeis
covinhas para enterrar;
e para ressucitar
tem força a graça que tendes;
senão que tendes os olhos verdes.

Tudo, Senhora, alcançais,
quanto ser fermosa alcança;
senão que dais esperança
cos olhos com que matais.
Se acaso os alevantais,
[é para as almas renderdes;
senão que tendes os olhos verdes].
 



MOTE ALHEIO

Vós, Senhora, tudo tendes,
senão que tendes os olhos verdes.

VOLTAS PRÓPRIAS

Dotou em vós Natureza
o sumo da perfeição
que, o que em vós é senão,
é em outras gentileza;
o verde não se despreza,
que, agora que vós o tendes,
são belos os olhos verdes.

Ouro e azul é a milhor
cor por que a gente se perde;
mas a graça desse verde
tira a graça a toda a cor.
Fica agora sendo a flor
a cor que nos olhos tendes,
porque são vossos... e verdes!
 



MOTE ALHEIO

Verdes são os campos
da cor do limão:
assi são os olhos
do meu coração.


VOLTAS SUAS

Campo, que te estendes
com verdura bela;
ovelhas, que nela
vosso pasto tendes:
d' ervas vos mantendes
que traz o Verão,
e eu das lembranças
do meu coração.

Gado, que paceis,
co contentamento
vosso mantimento
não o entendeis;
isso que comeis
não são ervas, não:
são graças dos olhos
do meu coração.
 



MOTE ALHEIO

De pequena tomei Amor,
porque o não entendi;
agora, que o conheci,
mata-me com desfavor.

VOLTAS PRÓPRIAS

Vi-o moço e pequenino,
e a mesma idade ensina
que se incline üa minina
às mostras de um minino.
Ouvi-lhe chamar Amor,
pelo nome me venci;
nunca tal engano vi
nem tamanho desamor.

Creceu-me de dia em dia
com a idade a afeição,
porque amor de criação
n' alma e na vida se cria.
Criou-se em mim este amor
e senhoreou-se de mim.
Agora, que o conheci,
mata-me com desfavor.

As flores me torna abrolhos,
a morte me determina
quem eu trouxe de minina
nas mininas dos meus olhos.
Desta mágoa e desta dor
tenho sabido enfim;
por amor me perco a mim,
por quem de mim perde o amor.

Parece ser caso estranho
o que Amor em mim ordena:
que em idade tão pequena
haja tormento tamanho.
Sejam milagres de Amor,
hei-os de sofrer assi,
até que haja dó de mim
quem entender esta dor.
 



CANTIGA VELHA

Falso cavaleiro ingrato,
enganais-me:
vós dizeis que eu vos mato,
e vós matais-me.

VOLTAS PRÓPRIAS

Costumadas artes são
para enganar inocências
piadosas aparências
sobre isento coração.
Eu vos amo, e vós, ingrato,
magoais-me
dizendo que eu vos mato;
e vós matais-me.

Vede agora qual de nós
anda mais perto do fim:
que a justiça faz-se em mim
e o pregão diz que sois vós.
Quando mais verdade trato,
levantais-me
que vos desamo e vos mato;
e vós matais-me.
 



A üa dama mal empregada

MOTE

Minina, não sei dizer,
vendo-vos tão acabada,
quão triste estou por vos ver
fermosa, e mal empregada.

VOLTAS

Quem tão mal vos empregou
pouco de mi se doía,
pois não viu quanto me ia
em tirar-me o que tirou.
Obriga o primor que tem
lindeza tão extremada
que digam quantos a vêem:
«Fermosa e mal empregada!»

Tomastes da fermosura
quanto dela desejastes,
e com ela me guardastes
para tão triste ventura.
Matáveis sendo solteira,
matais agora em casada;
matais de toda a maneira.
Fermosa e mal empregada!
 



CANTIGA ALHEIA

Vida da minh'alma
não vos posso ver;
isto não é vida
para se sofrer.

VOLTAS PRÓPRIAS

Quando vos eu via,
esse bem lograva,
a vida estimava;
mais então vivia,
porque vos servia
só para vos ver.
Já que vos não vejo,
para que é viver?

Vivo sem razão,
porque em minha dor
não a pôs Amor,
que inimigos são.
Mui grande treição
me obriga a fazer
que viva, Senhora,
sem vos poder ver.

Não me atrevo já,
minha tão querida,
a chamar-vos vida,
porque a tenho má.
Ninguém cuidará
que isto pode ser:
sendo-me vós vida,
não poder viver!
 



OUTRAS VOLTAS


Dous tormentos vejo
grandes por extremo:
se vos vejo, temo,
e, se não, desejo.
Quando me despejo
e venho a escolher,
se temo o desejo,
desejo o temer.
 



MOTE ALHEIO

Vejo-a n'alma pintada,
quando ma pede o desejo,
a natural que não vejo.

GLOSA PRÓPRIA

Se só no ver puramente
me transformei no que vi,
de vista tão excelente
mal poderei ser ausente
enquanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
a traz tão bem debuxada,
e a memória tanto voa
que, se a não vejo em pessoa,
vejo-a n' alma pintada.

O desejo, que se estende
ao que menos se concede,
sobre vós pede e pretende,
como o doente que pede
o que mais se lhe defende.
Eu, que em ausência não vejo,
tenho piedade e pejo
de me ver tão pobre estar,
que então não tenho que dar
quando me pede o desejo.

Como aquele que cegou,
(é cousa vista e notória
que a natureza ordenou
que se lhe dobre em memória
o que em vista lhe faltou)
assi a mim, que não rejo
os olhos ao que desejo,
na memória e na firmeza
me concede a natureza
a natural que não vejo.
 



ABC EM MOTOS

A A A A

Ana quisestes que fosse
o vosso nome da pia,
para mor minha agonia.

Apeles, se fora vivo
e a ver-vos alcançara,
por vós retratos tirara.

Aquiles morreu no templo,
contemplando de giolhos;
eu, quando vejo esses olhos.

Artemisa sepultou
a seu irmão e marido;
vós a mim e a meu sentido.

B

Bem vejo que sois, Senhora,
extremo de fermosura,
para minha sepultura.

C C

Cleópatra se matou
vendo morto a seu amante;
e eu por vós, em ser constante.

Cassandra disse de Tróia
que havia ser destruída;
e eu por vós, d'alma e da vida.

N N

Dido morreu por Eneias,
e vós matais quem vos ama;
julgai se sois cruel dama!

Dianira, inocente,
da má morte causadora;
vós da minha sabedora.

E

Eurídice foi a causa
de Orfeu ir ao inferno;
vós de ser meu mal eterno.

FF

Fedra, só de puro amor,
morreu por seu enteado;
eu mouro de desamado.

Febo vai escurecendo
ante vossa claridade;
e eu sem ter liberdade.

G G

Galateia sois, Senhora,
da fermosura extremo;
e eu perdido Polifemo.

Genebra, que foi rainha,
se perdeu por Lançarote;
e vós por me dar a morte.

H H

Hércules, uma camisa
de chamas o consumiu;
minh' alma, dês que vos viu.

Hébeis e Dido morreram
com o rigor da mudança;
eu, vendo vossa esquivança.

J J J J

Judite, que o duro Holofernes
degolou, se viva fora,
mate lhe déreis, Senhora.

Júlio César conquistou
o mundo com fortaleza;
vós a mim com gentileza.

Júlio César se livrou
dos inimigos com abrolhos;
eu não posso desses olhos.

Jazia-se o Minotauro
preso no seu labirinto;
mas eu mais preso me sinto.


L L

Leandro se afogou
e foi sua causa Hero;
e a mim, o que vos quero.

Leandro se afogou
no mar de sua bonança;
eu no de vossa esperança.

M M

Minerva dizem que foi,
e Palas, deusas da guerra:
e vós, Senhora, da terra.

Medeia foi mui cruel,
mas não chegou a metade
de vossa grão crueldade.

N N

Narciso o siso perdeu
em vendo a sua figura;
eu, por vossa fermosura.

Ninfas enganam mil Faunos
com seu ar e fermosura;
e a mim, vossa figura.

O O

Os olhos choram o dano
que em vos verem sentiram;
mas eu pago o que eles viram.

Orfeu com a doce harpa
venceu o reino de Plutão;
vós a mim, com perfeição.

P P

Páris a Helena roubou,
por quem Tróia foi perdida;
e vós a mim, alma e vida.

Pirro matou Policena,
perfeita em todos sinais;
e vós a mim me matais.

Q Q

Quanto mais desejo ver-vos,
menos vos vejo, Senhora:
não vos ver milhor me fora.

Querendo ver a Diana,
Actéon perdeu as vida,
que eu por vós trago perdida.

R R

Remédio nenhum não vejo
que remedeie meu mal;
nem crueza à vossa igual.

Roma o mundo sujeita
com armas, saber, temor;
vós a mim só por amor.

Sirena, na mor fortuna
com enganos vai cantando;
e vós, sempre a mim matando.

T T

Tisbe morreu por Piramo,
a ambos matou o Amor;
a mim vosso desfavor.

Tisbe pelo seu amante
morreu com amor sobejo;
mas eu mais morto me vejo.

V V

Vénus, que por mais fermosa
lhe deu Páris a maçã,
não foi quanto vós louçã.

Vénus levou a maçã
por vós não serdes, Senhora,
nacida naquela hora.

X X

Xpõ vos acabe em graça,
e vos faça piadosa
tanto, quanto sois fermosa.

Xantopeia tornou atrás
por Apónio a invocar;
e vós não, a meu chamar.
 



A üa dama que se chamava Ana

MOTE

A morte, pois que sou vosso,
não na quero; mas se vem,
há-de ser todo o meu bem.

GLOSA

Amor, que em meu pensamento
com tanta fé se fundou,
me tem dado um regimento
que, quando vir meu tormento,
me salve com cujo sou.
E com esta defensão,
com que tudo vencer posso,
diz a causa ao coração:
não tem em mim jurdição
a morte, pois que sou vosso.

Por experimentar um dia
Amor se m' achava forte
nesta fé, como dizia,
me convidou com a morte,
só por ver se a tomaria.
E como ele seja a cousa
onde está todo meu bem,
respondi-lhe como quem
quer dizer mais e não ousa:
não a quero, mas se vem...

Não disse mais, porque então
entendeu quanto me toca.
E se tinha dito o não...
muitas vezes diz a boca
o que nega o coração.
Toda a cousa defendida
em mais estima se tem:
por isso é cousa sabida
que perder por vós a vida
há-de ser todo meu bem.
 



CANTIGA ALHEIA

Se me desta terra for,
eu vos levarei, amor.

VOLTAS SUAS

Se me for e vos deixar
(ponho, por caso, que possa),
esta alma minha, que é vossa,
convosco me há-de ficar.
Assi que só por levar
a minh' alma, se me for,
vos levarei, meu amor.

Que mal pode maltratar-me
que convosco seja mal?
Ou que bem pode ser tal
que sem vós possa alegrar-me?
O mal não pode enojar-me;
o bem me será maior
se vos levar, meu amor.
 



MOTE ALHEIO

Se me levam águas,
nos olhos as levo.

GLOSAS PRÓPRIAS

Se de saudade
morrerei ou não,
meus olhos dirão
de mim a verdade.
Por eles me atrevo
alcançar as águas
que mostrem as mágoas
que nesta alma levo.

As águas que em vão
me fazem chorar,
se elas são do mar
estas d'amar são.
Por elas relevo
todas minhas mágoas;
que, se força d'águas
me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
todas são salgadas;
porém as choradas
doces me parecem.
Correi, doces águas,
que, se em vós m'enlevo,
não doem as mágoas
que no peito levo.
 



MOTE

Vi chorar uns claros olhos
quando deles me partia.
Oh que dor, oh que alegria!

VOLTAS

Polo meu apartamento
se arrasaram todos d' água.
quem cuidou que em tanta mágoa
achasse contentamento?
Julgue todo entendimento
qual mais sentir se devia:
se esta dor, se esta alegria.

Quando mais perdido estive,
então deu a esta alma minha,
na maior mágoa que tinha,
o maior gosto que tive.
Assi, se minh' alma vive,
foi porque me defendia
desta dor esta alegria.

O bem que Amor me não deu
no tempo que o desejei,
quando dele me apartei,
me confessou que era meu.
Agora que farei eu,
se a fortuna me desvia
de lograr esta alegria?

Não sei se fui enganado,
pois me tinha defendido
das iras de mal querido
no mal de ser apartado.
Agora peno dobrado,
achando no fim do dia
o princípio d' alegria.

 

 

 

 

 

16/03/2006