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Albano Martins


 

Como um archote


Vem tudo à superfície.
Como se
dentro da casa
um maremoto levantasse
as pedras todas, uma a uma; como se
no centro, iluminadas,
as esferas rodassem
no seu eixo — tudo
de repente se inclina, tudo arde
nesta fogueira acesa
como um archote de sangue, uma lua
de enxofre.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Antônio Massa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Albano Martins


 

Trapézio
 

 

Volúvel foi o nome escolhido para a entronização da festa. Para seu ornamento, a máscara.
 

 

Uma orquestra de violinos, disposta em ogiva, convocada para a lânguida coreografia dos sentidos, ensaiava, em todos os timbres, a prometida melodia dos gestos e das palavras sem fronteiras.
 

 

Quem olhasse atentamente em redor, na sala deserta, acharia por fim descomposta a mesa, esgarçada a toalha de linho do banquete, rotas as cordas dos violinos.
 

 

Só o trapezista, lá no alto, aguardava ainda o sinal anunciado para o início do seu número, inscrito no programa. O trapézio fora, porém, retirado a ocultas, e, sem rede, apenas lhe restava o salto no vazio. O salto mortal.

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Virgílio Maria

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Albano Martins


 

Relógio sem ponteiros
 

 

Quando agora te debruças sobre a água do tanque, vês projetado, lá no fundo, um relógio sem ponteiros. Percebes, então, que a ferrugem é também uma qualidade e um atributo da água, e não apenas de alguns metais a que chamamos vis. E percebes ainda que já não são necessários os relógios. Tu já não tens idade, nem o tempo, que partilha do halo e da fluidez da água e é, às vezes, como ela, tão inodoro e insípido, se deixa prender, mesmo num vaso de cristal. E não podes, assim, medir-lhe a respiração. A sua duração, se preferes. Se alguma ainda subsiste, é a que é regulada pelos ponteiros do seu próprio corpo.

 

 

 

Ticiano, Flora

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Yêda Schmaltz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

Albano Martins


 

Ofício e Morada


De barro somos, dizem os oráculos,
solícitas vozes do crepúsculo
ou das manhãs solenes, rotuais.


De heróis e deuses falam
mitos e salmos, dou
tos compêndios de
subtil doutrina. Assim
de urtigas e de musgo
se alimentam as parábolas,
escreve a ciência
os seus epitáfios.


De comércio sabemos.
Com âncoras e astro
lábios medimos
nossa rota inscrita
na retina. Exaustos,
entre aquáticas
florestas, perseguimos
os veados do sol
e da vertigem. Por
obscuras silícias
e cretas navegamos.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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César Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Albano Martins


 

Crepúsculo de Agosto

 

Para a minha filha

 


Dos amigos que perdi
não falo. Sei
que estamos em agosto, mês
dos remos escaldantes, sei
que há lodo sob as algas,
sob a pele. Oblíqua,
sei também, a sombra
cai sobre as oliveiras. É
tempo de içares
tuas velas, teus ergueres
teus guindastes
junto ao rio. Dis
poníveis estão
as luzes; preparadas,
ermas estão as águas.


Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tato.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Ronaldo Bressane