Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Tal como nele mesmo

Jornal do Brasil
17.12.2005


Em Oxford, como confessou, “teve seu primeiro relacionamento amoroso com um jovem do mesmo sexo”
 

Tal como a Eternidade enfim o transformou, sub-rogando-se em Maria Lúcia Pallares-Burke, eis Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos (São Paulo: Unesp, 2005). Trata-se de obra monumental nos dois sentidos da palavra, tanto pela abrangência e volume da pesquisa quanto pelo que representa na edição brasileira. Podemos encará-la como um “túmulo” mallarmeano, isto é, pedra ao mesmo tempo funerária e consagradora, marco miliário digno do espírito que o inspirou. Lendo não só os livros que Gilberto Freyre escreveu e publicou, ela inovou lendo os que ele mesmo lera ao longo da vida, em particular nos anos de formação, do que deixou na respectiva marginália a mensagem secreta de sua história intelectual e a chave privilegiada para decifrá-la.

Sabe-se que costumava reconstruir a própria biografia intelectual à medida em que ocasionalmente a retomava nas edições de inéditos e reedições de obras conhecidas, “atualizando-lhes” as referências, não raro com traiçoeiros anacronismos. Sob esse aspecto, os sucessivos prefácios acrescentados às reedições de Casa grande & senzala significam muito mais do que podem parecer, se os lermos por microscópios semelhantes ao de Pallares-Burke. Observe-se, quanto a isso, que, eliminando grande parte dos mais recentes, os editores privaram os estudiosos de um precioso elemento de informação.

Ele o fazia não apenas nas obras ensaísticas, mencionando bibliografia posterior ao texto original, mas até em notações dos diários, que, por sua natureza, são datados e invioláveis, sob pena de perder autenticidade. Assim, por exemplo, conforme referi alhures, ele inclui em data de 1923 uma alusão ao Noturno de Belo Horizonte, poema, entretanto, só publicado no ano seguinte. Muitos dos reconhecimentos de suas dívidas intelectuais, escreve Pallares-Burke, “foram feitos por um Freyre já maduro e famoso, e como toda declaração a posteriori que busca justificar e ratificar uma trajetória de vida devem ser vistos com cautela. (...) Lembremos que o diário de adolescência e primeira mocidade (...) publicado em 1975 com o título de Tempo morto e outros tempos como se tivesse sido escrito nos anos de 1920 – e onde se é tentado a buscar seus dados biográficos e a linha de sua trajetória intelectual até 1930 – foi sendo elaborado pouco a pouco”. No caso, o intervalo foi de meio século – período, justamente, em que o jovem estudante da Columbia se tornou o autor de Casa Grande & senzala. Da mesma forma, quando, décadas mais tarde, decidiu publicar a tradução em português de sua tese de 1922, cortou várias referências racistas e outras do trabalho original. Àquela altura, ele ainda não considerava o mestiçamento “como característica da qual os brasileiros pudessem, sem nenhuma dúvida, orgulhar-se”.

Há, também, pequenas (?) modificações de estilo: onde se referia aos “castigos às vezes necessários”, corrigiu para “castigos às vezes julgados necessários”, e assim por diante. Os espíritos complexos não têm trajetórias simples e lineares, antes sinuosas, acidentadas e autocorretivas. Momentos houve em que o jovem Gilberto identificou a sua “missão regionalista” como o ideário de Maurice Barrés, nomeadamente a doutrina do enraizamento, mostrando também simpatia pelas “idéias descentralizadoras e antidemocráticas de Charles Maurras e Georges Sorel” como caução do seu peculiar “regionalismo”, tudo, observa Pallares-Burke, pelo que tinham de nostálgico. Eram representantes do pensamento direitista e até reacionário, dos quais, aliás, não tardou em se afastar.

Nessa linha, o “nostálgico” Thomas Hardy levou-o a uma posição constrangedora. Em artigo jornalístico de 1942 (posteriormente recolhido no volume de Ingleses) , mencionou o “crasso engano de Hardy, que teria confundido Pará com Paraná”. Mencionando o incidente, Pallares-Burke não se refere à polêmica em que se envolveu, a esse propósito, com o crítico paranaense Temístocles Linhares. Ele acreditava que Thomas Hardy, mandando para o Brasil o personagem Angel Clare, teria imaginado “um Paraná tropical que rigorosamente não existe”, o que dizia fundado no livro de Thomas P. Bigg Whiter Pioneering in south Brazil ... que certamente não conhecia na data do artigo original (cf. W. M. “Thomas Hardy & Co.”. O Globo, 28/04/2001).

Tudo isso é observado sem a menor intenção de amesquinhar-lhe os méritos e a estatura intelectual, mas, ao contrário, para torná-lo humano, mais que humano, o que certamente não desagradaria a esse leitor de Nietzsche. Há, mesmo, tópicos mais delicados: sentimentalismo correto no ambiente oxfordiano do jovem Gilberto, o homossexualismo tornou-se menos canônico no Brasil de sua maturidade. Em Oxford, como confessou, “teve seu primeiro relacionamento amoroso com um jovem do mesmo sexo”, assunto tabu quando se tornou célebre. Eram “confissões” julgadas inadmissíveis pelo editor José Olympio quando se tratou de publicar Tempo morto e outros tempos. Nas últimas décadas do século 19, escreve Palhares-Burke, o contradiscurso que invocava Platão e a filosofia grega, evidente racionalização que procurava conferir “legitimidade moral e respeitabilidade ao homossexualismo” já não valia para o Brasil do século 20. Pode-se pensar que, com o correr dos tempos, o homossexulismo ganhou em legitimidade o que perdeu em dignidade. Claro, o “núcleo duro” deste livro é a “biografia” de Casa grande & senzala, exemplo paradigmático de metabolismo intelectual: um dos principais objetivos deste livro, escreve a autora, “é enfatizar o quanto o jovem retornado estava imerso em dúvidas e incertezas quanto ao rumo de sua vida, e como, de fato, foi por meio de um processo mais longo e hesitante do que usualmente se supõe que Freyre iria encontrar o caminho que o levaria a Casa grande & senzala . Como ele mesmo muito cedo parece ter reconhecido, o futuro de um jovem está repleto de indefinições e incerteza, pois das múltiplas e contraditórias influências, leituras e experiências que lhe povoam a mente é difícil saber quais delas vão acabar prevalecendo, ‘se a vida ajudar’ ”.

Aqui está o aparente paradoxo da criação espiritual, aparente por nada ter de paradoxal, antes rotineiro. Lida nas perspectivas do trabalho intelectual, Casa grande & senzala nada deve às leituras de Gilberto Freyre e aos que lhe fertilizaram o espírito – sendo certo, entretanto, que indiscutivelmente lhes deve muito, se não tudo. Ele instituiu e implantou novos paradigmas para compreender nossa história social, segundo a célebre teoria de Thomas Kuhn para explicar a estrutura das revoluções científicas. É como novo paradigma que devemos encarar o livro de Pallares-Burke, ou seja, marco definitivo que rejeitou para a pré-história todos os estudos gilbertianos anteriores.

 
 

 

 

 

 

10/01/2006