Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Hermetismo Vocabular
 



 

Os perturbadores estudos que Charles Chassé realizou sobre a poesia de Mallarmé constituem, antes de mais nada, uma grave advertência para a crítica, sempre disposta a superestimar o valor daquilo que não compreende. Temendo a acusação, repetida com freqüência, de aplicar à leitura da poesia inteligência demais e sensibilidade de menos, os críticos se têm esforçado por demonstrar a mais larga compreensão dos poemas em que precisamente nada entendem, e inventam interpretações variadíssimas e contraditórias, que só têm um defeito: o de serem justamente as interpretações "lógicas" que pretendiam evitar. Quanto às contradições, não têm a menor importância: todo o mundo sabe que a riqueza das obras-primas, em particular as da poesia moderna, revela-se antes de mais nada por aí, nessa possibilidade ampla que oferecem às significações mais variadas. (Significações, porque afirmar, como se faz freqüentemente, que a poesia não necessita ter nenhum sentido é recurso gratuito e insustentável, que vai contra a natureza mesma da literatura: nesse particular, é o processo inteiro de grandes panos da chamada "arte moderna" que necessitamos fazer.) É claro que, no impulso desses processos interpretativos, a crítica em geral diz mais do que o próprio autor pretendia, e, não raro, fora do que ele expressamente desejava: é conhecida a réplica de Mallarmé a um admirador que o felicitava por ter condensado o cosmo em algumas palavras de um poema: "Pas du tout! Ce que j'ai décrit là, c'est mon buffet."

Thibaudet foi o primeiro a afirmar que, longe de serem "vagos" e de admitirem praticamente todas as interpretações, os poemas herméticos de Mallarmé tinham um sentido preciso, o que, de resto, confirma-se plenamente pelas confissões do próprio poeta a respeito dos seus métodos de trabalho. (É sabido que ele "obscurecia" voluntariamente os seus poemas, o que implica uma primeira forma em que não eram obscuros, em que tinham um sentido claro — sentido que Thibaudet indicava para alguns deles.) Essa primeira forma, com o correr do tempo, pode ter deixado de ser escrita, pode ter sido simplesmente mental, o que em nada invalida o fato em si mesmo: é uma necessidade do espírito humano normal a de pensar logicamente. É verdade que Mallarmé passava por crises profundas de anormalidade, de que seria infantil negar a natureza, mas essa anormalidade não chegava a perturbar-lhe o funcionamento das faculdades lógicas, que eram, ao contrário, para um poeta, vigilantes demais — como os estudos de Chassé revelaram.

As descobertas sensacionais de Charles Chassé, que os "donos" de Mallarmé por tanto tempo pretenderam sufocar ou ridicularizar, trazem uma confirmação definitiva a conjecturas que não se afirmavam senão a medo, porque ele documenta, demonstra de forma irrefutável o que Thibaudet avançava por simples acuidade mental. Os primeiros resultados de conjunto — e a primeira tribuna por assim dizer oficial encontrada por Charles Chassé — foram publicados pela Revue dhistoire Littéraire de la France (julho-setembro 1952). Para Chassé, a chave dos poemas herméticos de Mallarmé esconde-se, simplesmente, nos dicionários. É forçoso convir que, pelo menos no que se refere aos exemplos por ele mencionados, a demonstração é convincente: Mallarmé, ao contrário do que tantos ilustres comentadores vêm afirmando, não apresenta nenhum hermetismo de pensamento (que seria o único a dar à sua poesia a eminente dignidade que lhe foi atribuída). O seu hermetismo é puramente vocabular, e se funda num processo elementar de que Chassé teve a genial intuição: o de empregar as palavras não em seu sentido corrente, mas no sentido etimológico. E, de preferência, não no sentido etimológico próprio, mas no sentido etimológico aproximativo Assim, por exemplo, quando se trata das palavras oublié ou oubli e oublier. O dicionário de Littré indica-lhe a origem ob, mais um radical liv, que se ligaria a livor, livere, lividus; oblivisci significaria, então, empalidecer, obscurecer-se. Mallarmé, em conseqüência, toma oublié no sentido de: "tornado lívido", e oubli no sentido de "lividez". Assim, o "dur lac oublié" do poema famoso é o lago que o gelo tomou lívido. No soneto que começa com as palavras Sur les bois oubliés quand passe l'hiver sombre. Os "bois oubliés" são bosques cobertos de geada. Em numerosos casos, a "chimère" é a cabra, porque em grego é esse o sentido primitivo da palavra.

A análise etimológica de Charles Chassé se prolonga, assim, em inúmeros outros exemplos que não posso, evidentemente, repetir. Mas, um dos mais curiosos (e que mostra outro aspecto do hermetismo mallarmeano) é o do famoso ptyx, cujo sentido fez correr oceanos de tinta, e sobre o qual Guy Michaud, em livro aliás excelente (Message poétique du Symbolisme), achava "ridículo" continuar discutindo, "en sachant qu'il n'a aucun sens". Ora, Chassé descobriu que o Larousse grande é uma das fontes dos conhecimentos mitológicos de Mallarmé e encontrou no verbete Styx uma passagem de Pausânias que explica os versos misteriosos do soneto em yx. O próprio Mallarmé tentou apagar a pista, afirmando na correspondência (carta a Lefebvre, 3/5/1869) que ptyx era palavra inventada a fim de arranjar uma rima para Styx. E Noulet, entretanto, especialista em estudos mallarmeanos, descobriu no Thesaurus Linguae Graecae que ptyx é a prega de um órgão qualquer, sendo também o nome da casca de ostra (cit. por Chassé). De casca de ostra a corno, a extensão, indicada no texto, era fácil para Mallarmé. Pausânias nos ensina (e aqui me limito a citar Charles Chassé) que na Arcádia, perto da cidade de Monacris, existia uma montanha de cujo topo "gotejava sem cessar" uma água que os gregos denominam "água do Styx". Isso esclarece desde logo os versos que nos mostram o poeta indo "puiser des pleurs au Styx". Essa água do Styx, além disso, tinha a propriedade de destruir a matéria de quase todos os recipientes e não podia ser recolhida senão em vasos de chifre. O "ptyx" de Mallarmé não seria, pois, outra coisa que uma velha guampa, existente como enfeite em sua sala, que servira outrora de trompa a algum pastor, fechada pelo orifício menor, incapaz, em conseqüência, de produzir qualquer som:

Aboli bibelot d'inanité sonore

e transformada em vaso, em receptáculo de água:

Le seul objet dont le néant s'honore
 

Um resultado inesperado das pesquisas de Charles Chassé é a revelação do sentido... obsceno de grande número dos poemas de Mallarmé. No Figaro Littéraire de 12/9/1953, André Billy comentava esse aspecto de uma nova interpretação mallarmeana, a propósito de um dos poemas intitulados "Petit air":

Indomptablement a dú
Comme mon espoir s’y lance
Eclater là-haut perdu
Avec furie et silence,
Voix étrangère au bosquet
Ou par nul écho suivie,
L'oiseau qu'on n'ouit jamais
Une autre fois en la vie.
Le hagard musicien
Cela dans le doute expire
Si de mon sein pas du sien
A jailli le sanglot pire.
Déchire va-t-il entier
Rester sur quelque sentier!
 

Jean Royère tinha visto nesses versos "a ascensão de um suspiro". De um suspiro, sem nenhuma dúvida, confirma Charles Chassé, mas antes uma descida que uma ascensão... É que, abrindo o seu Littré, o implacável analista descobriu que sanglot, segundo Ambroise Paré, "é a expulsão de ar por uma contração do diafragma". Sanglot pire queria, por conseqüência, dizer: expulsão de ar num sentido contrário ao habitual e normal... Não é difícil adivinhar a que expulsão de ar se entregara Mallarmé na floresta de Fontainebleau...

Chassé afirma que o hermetismo aparente de Mallarmé serviu-lhe com freqüência para dissimular suas preocupações eróticas. Pode-se, mesmo, ir um pouco além dos sentimentos delicados, visto que é esse poeta o autor de uma quadrinha "para os freqüentadores dos w.c. de campo, assim redigida:

Toi qui soulages ta tripe,
Tu peux dans cet acte obscur
Chanter ou fumer la pipe
Sans mettre des doigts au mur

 

Simples brincadeira? Certamente, nesse caso, embora Chassé cite versos mais... comprometedores, em estudos que, por sua própria natureza, andam por assim dizer obrigatoriamente secretos. É possível que as suas pesquisas não expliquem todo Mallarmé, como é quase certo que ele se deixa levar, muitas vezes, a conclusões precipitadas, ou, pelo menos, um pouco artificiosas, na ânsia de tornar um grande poeta imediatamente "traduzível" ao senso comum, Mas, é inegável que, desde já, os estudos mallarmeanos se encontram completamente revolucionados, que a poesia de Mallarmé deve ser encarada em perspectivas inteiramente novas e que, por conseqüência, toneladas de papel escrito arriscam-se a tornar-se para sempre inúteis.

Depois do seu artigo na Revue de l'Histoire Littéraire de la France, Charles Chassé publicou em livro um balanço mais ou menos completo das suas pesquisas (. Paris: Montaigne, 1954), ao mesmo tempo em que um escritor americano, Gardner Davies, entregava à crítica um "ensaio de explicação racional" do Coup de dês, o mais famoso de todos os poemas herméticos (Vers une explication rationnelle du "Coup de dês". Paris: José Corti, 1953).

Mallarmé está, pois, no primeiro plano das preocupações e nem todos se mostram satisfeitos com essas investidas mais ou menos irreverentes contra o mistério do ídolo (mesmo o respeitoso Gardner Davies, ungido com a apresentação ortodoxa do professor Henri Mondor, não deixa de ser, no fundo, um condenável "racionalista"). O livro de Charles Chassé despertou diversas reações incompreensíveis, como as dos que, de toda evidência, já o tinham condenado antes de lê-lo: muitos escritores "sensíveis" mostram-se pessoalmente ofendidos com o fato de que se diga terem os poemas herméticos de Mallarmé um sentido preciso. Eles preferem continuar vogando na sugestiva atmosfera do incompreensível e do nebuloso. A verdade é que, como já há alguns anos dizia E. Noulet, "perante Mallarmé somos sempre ímpios. Tratemo-lo como o quisermos. Supondo que a categoria dos caçoístas esteja desaparecendo, podemos perguntar se os leitores mais desrespeitosos não são os que afirmam admirá-lo sem compreendê-lo e admirá-lo tanto mais quanto menos procuram compreender. Para eles, a poesia se lê como quem se embriaga, o espírito ausente (...)". E ela própria, seguindo, de resto, o exemplo corajoso de Thibaudet, atira-se valentemente ao que se poderia chamar, com o título de Gardner Davies, uma "interpretação racional" da poesia mallarmeana.

Acredito que a explicação do maior desagrado causado pelo livro de Charles Chassé esteja no seu tom de deselegante suficiência, na auto-satisfação com que encara os próprios trabalhos e na pesada ironia que reserva para os adversários. Um pouco mais de circunspecção não lhe faria mal e maior severidade exegética poderia, talvez, aumentar-lhe a força demonstrativa. Colocando a interpretação de Mallarmé no terreno polêmico, ele tem provocado reações polêmicas; melhor seria que, como Noulet, se conservasse estritamente nos domínios da interpretação literária, capaz de obter precisamente dos que deseja persuadir uma aceitação de princípio mais larga. Diga-se, de passagem, que nem sempre as suas afirmações são convincentes, no sentido de que provam demais: algumas delas exigem tal movimentação de fontes eruditas, de leituras variadas e de conhecimentos enciclopédicos que o leitor não se furta a uma ponta de ceticismo: o espírito criador do poeta não percorreria esses imensos caminhos antes de originar as suas linhas mais despretensiosas...

Mas, resta, pelo menos como extraordinária hipótese de trabalho, o "método" mesmo de Charles Chassé, as suas descobertas que, em muitos casos, são irrefutáveis. O mais curioso é que ele tenha comentado de forma inteiramente inaceitável um soneto de Mallarmé que confirmaria por completo todas as suas idéias. É o próprio Mallarmé que aí se "denuncia" como leitor de dicionários, "expondo" de maneira impressionante as associações de idéias que culminaram, afinal, na criação do poema. Absorvido pelas grandes "máquinas" herméticas, Charles Chassé como que passou distraído ao lado de uma peça que poderia constituir uma demonstração decisiva. Atrevo-me, por minha vez, a afrontar os raios vingadores dos fanáticos "mallarmistas", ao tentar uma nova interpretação do soneto, cujo texto é o seguinte:

Mes bouquins refermés sur le nom de Paphos,
Il m'amuse d'élire avec le seul génie
Une ruine, par mille écumes bénie
Sous l'hyacinthe, au loin, de ses jours triomphaux.
Coure le froid avec ses silences de faulx,
Je ny bululeraipas de vide nénie
Si ce três blanc ébat au ras du sol dénie
A tout site l'honneur du paysage faux.
Ma faim qui d'aucunsfruits ici ne se régale
Trouve en leur docte manque une saveur égale
Qu'un éclat de chair humain et parfumant!
Le pied sur quelque guivre où notre amour tisonne,
Je pense plus longtemps peut-étre éperdûment
A l'autre, au sein brúlé d'une antique amazone.

 

E. Noulet, oferecendo desse poema a melhor interpretação que se poderia desejar (e, aliás, não se trata dos mais herméticos), nada nos diz sobre a significação de bouquins, no primeiro verso. Ora, essa palavra é uma chave de primeira importância e, se ela corresponder, como penso, a dicionários enciclopédicos, confirmaria desde logo um ponto fundamental das teses de Chassé. Com efeito, que "livros" seriam esses que o poeta fecha ao encontrar a palavra Paphos? Evidentemente, diversos deles poderiam, por coincidência, apresentar um vocábulo que provoca no poeta uma longa associação de idéias e um soneto; mas é natural pensar, também, que, se não se tratasse de uma enciclopédia, por ele folheada com curiosidade, qualquer menção de um outro volume o teria obrigado a procurar numa obra dessa natureza a significação exata, as precisões indispensáveis para compreender a alusão a Paphos. E, se o tivesse feito, que encontraria Mallarmé? Que Paphos, e mais particularmente Palé-Paphos, situada a oeste (e não a leste, como escreve Noulet) da ilha de Chipre, era uma das cidades cuja fundação se atribuía às amazonas. São os esclarecimentos oferecidos por E. Noulet, que não deixou igualmente de observar o que, antes de mais nada, chama a atenção, quando se conhece o sentido de Paphos: é que o poema termina com a idéia evocada pelo primeiro verso. Como o nome da cidade estivesse inseparavelmente ligado à evocação da lenda de suas fundadoras, Mallarmé "parafraseou" simplesmente, no soneto, o artigo da enciclopédia (provavelmente o Grande Larousse) com todas as imagens de natureza histórica por ele sugeridas.

A suposição é tanto mais aceitável quanto se sabe que a lenda das amazonas e os nomes das cidades por elas fundadas não constituem matéria comum dos livros e, a menos que Mallarmé estivesse preparando um estudo especial sobre o assunto, o que não é o caso, não poderia encontrar com facilidade a mesma palavra, a mesma evocação. Assim, pois, o mais plausível é que, tendo encontrado, ao acaso de uma leitura, o nome de Paphos, tivesse procurado na enciclopédia as informações puramente teóricas de que necessitava. Esses dois "livros" justificariam o plural de bouquins, a menos que ele se deva a simples caprichos de harmonia. Mas, encontrando na enciclopédia a história maravilhosa das amazonas, Mallarmé se deixou naturalmente levar pela imaginação poética e criou o seu soneto que é, como já disse, uma nítida paráfrase dos verbetes comuns dos grandes dicionários.

A construção do soneto e as suas sucessivas evocações confirmariam esses pontos de vista. Seguirei, no essencial, as explicações de E. Noulet. Antes de mais nada, observe-se que existe entre os vocábulos do soneto o que ela chama o "apelo mútuo das palavras", do qual o exemplo mais significativo seria o que acima indiquei entre Paphos e amazone, através de divagações à primeira vista caprichosas. Mas, é o próprio poeta quem afirma que o nome Paphos o impele a um jogo de espírito, a um exercício poético: "", jogo que consiste em recriar na imaginação "uma paisagem de calor e luz, a de Paphos no tempo do seu esplendor (Sous l'hyacinthe... de ses jours triomphaux)". A palavra génie é constantemente empregada por Mallarmé no seu sentido latino de espírito", ingenium.

Nessa paisagem mental, o poeta vê imediatamente outro episódio legendário provavelmente mencionado pela enciclopédia: o nascimento de Astarté, ocorrido em Paphos. A ruína da cidade seria "bénie par mille écumes", isto é, consagrada pela aparição de uma deusa que, segundo a lenda, surgia das águas agitadas pelo vento nesse trecho das costas mediterrâneas. O "jacinto dos dias triunfais" é uma metáfora designando as vestes cor de jacinto, usadas na antigüidade para as grandes cerimônias. Mesmo que uma paisagem real de inverno ("coure le froid...") venha apagar a paisagem fictícia criada pelo poeta, ele não o lamentará: "je n'y hululerai pas de vide nénie", a nénia sendo um canto fúnebre entre os gregos e romanos, uma canção de melancolia. A "paisagem falsa" é a paisagem puramente imaginária; a paisagem real do inverno, com o solo coberto de neve movediça ("très blanc ébat au ras du sol") poderá ser a que o próprio poeta tinha diante dos olhos ao escrever o soneto em Paris. Para comprovar a exatidão dessa hipótese, seria preciso saber a data da composição, sempre difícil de fixar; mas é possível que não seja muito anterior à da publicação, janeiro de 1887. Nesse caso, o soneto teria sido escrito realmente em pleno inverno, e a neve da cidade contrastaria com o sol esplêndido do Mediterrâneo. O conflito entre a paisagem real e a imaginária não perturbaria o espírito do poeta: ele continuaria a viver no seu mundo espiritual. É o que dizem os tercetos.

Essa abstração da realidade é possível porque a "fome" do poeta satisfaz-se com certos frutos (aucun é empregado por Mallarmé em lugar do adjetivo indefinido certain) destinados ao gozo espiritual (docte), ainda que inexistentes ou destruídos (manque). O último verso do primeiro terceto oferece grandes dificuldades enquanto não percebermos que nele existe a elipse da palavra fruit. Com efeito, Mallarmé compara o seio da mulher a um fruto, mas essa comparação, assim expressa, é brutal e banal, duas coisas que o fariam rejeitá-la desde logo. A elipse resolve o problema e o poeta deseja que "um fruto rebente em carne, humano e perfumoso". Com o pé sobre o cão da chaminé, que teria a forma comum de uma guivre, isto é, de uma serpente fantástica, o poeta evoca perdidamente, ao lado de qualquer amor real apenas lembrado (tisonne), o outro, ou seja, o outro seio (e aqui se completa a comparação apenas esboçada anteriormente na elipse que assinalei), o seio queimado de uma amazona, o que constitui, para terminar, outra noção de ordem histórica ou legendária.

Este soneto é, como se vê, a transcrição mallarmeana de um artigo de enciclopédia, de tal forma evidente que a tese de Chassé sobre o "Mallarmé leitor de dicionários" nele encontra uma confirmação quase irrefutável. Ele pertence ao "período hermético", datado por Chassé de 1876 em diante e por E. Noulet da publicação do "Toast funèbre", em outubro de 1874. As datas coincidem satisfatoriamente, e seria de esperar que o revolucionário exegeta não perdesse a oportunidade que lhe oferecia o soneto dos "Bouquins refermés". Entretanto, vendo nessa peça a sua possível significação erótica (capítulo em que, segundo parece, Charles Chassé, como tantos velhos professores, parece se deleitar um pouco demasiado), ignorou a construção em "verbete de dicionário" que acima procurei ressaltar. O leitor, porém, julgará melhor se, ao lado da interpretação proposta, resumir a do descobridor dessas novas "chaves" de Mallarmé (não tão novas assim, de resto, porque, embora sem caráter sistemático, já as empregaram Thibaudet e E. Noulet, entre outros). Chassé acompanha, em suas grandes linhas, a interpretação de E. Noulet, como eu próprio o fiz, e como me parece impossível deixar de faze-lo, e, quando dela se afasta, é sempre para pior. Assim, por exemplo, em lugar de supor o blanc ébat como se referindo ao inverno da realidade, que o poeta estaria vivendo em Paris — e que contrastava com a paisagem luminosa e quente de Paphos — pensa que se trata de um inverno que viria substituir a primavera no próprio quadro imaginado por Mallarmé. Assim, sem atender a que, provavelmente, a "cruel estação" não teria em Paphos os rigores do norte, encara os "jacintos" como flores que adornassem o adro do templo de Paphos e que seriam substituídos pela neve, o que o poeta não lamenta "porque o inverno era a sua estação preferida". Julgo tudo isso forçado demais e nada ajustável ao sentido evidente que o soneto parece ter nessa parte e a que acima aludi.

Da mesma forma, para o resto do soneto, creio inaceitável a exegese por ele proposta: "O que os gulosos (gourmands) mais apreciam no verão é o gosto dos frutos por ele trazidos, mas o que o poeta prefere, no refinamento da sua cultura, é o sabor dos encantos femininos: ‘qu'un éclat de chair humain et parfumant’. Esse fruto de carne é o seio da mulher, "o fruto que não se consome", como ele disse em outros "Versos de circunstância", e eis porque o vemos, no último terceto, sentado junto à lareira conjugal, com os pés sobre cães de chaminé em forma de "guivre" e entregando-se perdidamente ao sonho, 'a l'autre, au sem brûlé d'une antique amazone'. Porque Paphos, tendo sido fundada pelas amazonas, faz-lhe surgir a idéia dessas guerreiras que se queimavam o seio para melhor poder servir-se do arco (...)."

A idéia erótica, se realmente existe na composição, é tão débil e longínqua que não permitiria a sua inclusão nessa categoria, a não ser à custa de uma imaginação e de um ardor bem maiores que os do poeta. Entrando por esse caminho errado, que lhe escondia as evidências, Charles Chassé oferece do soneto uma interpretação inaceitável e infantil, que não chega nem mesmo a provar o que desejava, isto é, que se trata de um poema erótico. Mas prova, ao contrário, ou pode provar (visto que não há certezas certas nas "traduções" da poesia mallarmeana), a inspiração que Mallarmé teria encontrado na leitura dos dicionários, e pela qual o professor francês tanto se bate.

O pequeno exemplo proposto por esse soneto faz-me pensar que, se as idéias de Charles Chassé não podem ser altaneiramente desprezadas sem maior estudo, não devem, igualmente, ser aceitas em bloco, sobretudo em vários pormenores essenciais. Se a sua "hipótese de trabalho" me parece das mais ricas em possibilidades, as suas interpretações concretas são, em grande número de casos, das mais discutíveis e revelam, antes de mais nada, uma ausência incomum de sensibilidade poética. Em face de Mallarmé, ele me parece um visitante do Louvre que, diante da Vênus de Milo, se contentasse em medi-la antropometricamente, cego à sua beleza luminosa e imortal. Ora, ainda que as medidas exatas nos conduzam a um conhecimento mais completo da estátua, elas pouco significam em comparação com a emoção estética que a obra de arte provoca em nossa sensibilidade. Da mesma forma, saber que todas as palavras de Mallarmé estão nos dicionários, e que mesmo os seus poemas mais herméticos têm um sentido preciso (constatações que, no fundo, são mais que naturais) pode servir como elemento subsidiário de interpretação, à condição de não cometer contra-sensos e de não supor que o "sentido" gramatical dos poemas possa substituir-se ao seu "sentido" poético. Em resumo, as pesquisas de Charles Chassé me parecem apresentar todos os defeitos e todas as qualidades dos chamados "trabalhos universitários", isto é, uma riqueza muitas vezes incômoda de dados precisos, um conhecimento seguro da história literária, um fundo imenso de leituras, mas uma certa incapacidade de emoção que torna estéril o contato com a poesia. Falta-lhe, porém, uma qualidade do bom trabalho universitário, que é o equilíbrio e a dúvida com relação à própria obra. Diante da sua enorme descoberta, que aconselharia qualquer outro à prudência, ele como que perdeu a gravidade e o senso de medida, encarando-se a si mesmo como o grande profeta e vendo em todos os antecessores, ou em quase todos, pobres analfabetos que nada compreenderam de uma poesia que, na maior parte dos casos, freqüentaram a vida inteira. Entre os ingênuos que fazem repousar o seu amor por Mallarmé justamente na incompreensão, os esnobes que a admiram em confiança ou por ostentação e os gramáticas que não chegam a perceber a essência da poesia que, apesar de tudo, a constitui, creio ser aconselhável a atitude discernente, capaz de chegar, tanto quanto possível, a uma satisfatória aquilatação dos valores.

Infelizmente, nem os trabalhos de Chassé, nem o livro bem intencionado mas decepcionante de Gardner Davies nos conduzem à intimidade da poesia mallarmeana. É que ambos se aprisionam voluntariamente nos limites da "explicação racional" e, se pode haver "explicação racional" do poema, materialmente considerado, isto é, em sua redação, em seu vocabulário, em sua sintaxe, não há "explicação racional" da poesia. Ora, é esta última o que acima de tudo nos interessa, mas os caminhos da interpretação são completamente diferentes.
 

 

 

 

 

24/08/2005