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Weydson Barros Leal


 


Caminho


Ontem passei pela tua calçada
como quem passa pela vida.
O tempo seguia o seu antigo
cortejo – os seus números – e eu
seguia o caminho que a vida oferece
aos que não encontram a alegria.

Todos os anos passamos pelo dia
de nossa morte, como passa,
desavisada e cega, toda a gente
sobre toda calçada.

O futuro se dissolverá ante o mistério
como um calendário perdido não deixará nunca de passar.

Alcancem o céu os transeuntes daquela rua comum,
por neste dia, como em segredo,
pisarem o tempo, ainda, ainda, ainda.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São Jerônimo, de Caravagio

 

 

 

 

 

Weydson Barros Leal


 

O pássaro


O pássaro está solto.
Livremente habitado
Pelos olhos do mundo,
Passeia o pássaro
Por entre a gente
A derramar alegria.

Outra vez é o pássaro,
Azul ou vermelho,
Verde ou lilás,
Que exercita a liberdade
Das paredes,
Das bocas,
Dos olhos
Que o pássaro não vê.

É o pássaro por todos os cantos
Da sala, da casa, da casca,
É o pássaro mito
Transformado em canção,
É o pássaro
Mito
Mas o pássaro
Voa – que é a felicidade dos
Pássaros –
De todos os caminhos
A que nenhum levaria
O caminho do nome que leva este pássaro,
Quando não há manhã para o pássaro,
E não há noite,
E não há tempo pois todo tempo é preciso,
E tudo preciso teme a imprecisão,
Quando a imprecisão não teme
O que o pássaro é diante dos olhos,
Os duros lençóis da cidade,
Os telhados –
Os telhados –
Os telhados –
E os pássaros não plantam cidades,
E seus caminhos são
Necessidade.

O pássaro acorda porque não dorme jamais.
Lembro que não há noite para os pássaros,
E no dia,
Não há senão o sol
Que os pássaros criaram.

O pássaro traz todos os homens em si
Mas eles o negam,
E esta livreza afogada no vento,
Transforma-se em lapidação,
E o canto pende,
Porque balança nas fogueiras da palavra
Dos vôos de um pássaro
Só e desabitado,
E nascem a esperança e os dias,
E revestem-se da beleza dos vôos
O alcançar e o alcançar as calçadas,
E o pássaro voa
Porque há o ar e a esperança:
O pássaro é a esperança eterna.

O pássaro chora quando chove pela manhã,
E à noite, é o choro do pássaro
O orvalho pela manhã.
O pássaro sorri quando há gente nas praças,
O pássaro é puramente riso
Quando há flores nos jardins,
O pássaro é vida,
O pássaro pousa,
O pássaro pára para buscar
Quando encontra uma flor
Num jardim do mundo,
A flor é inalterável,
E ele a quer
Como é,
A flor é animação,
A flor é o pássaro
Quando não podem voar,
A flor destituída de seu rosto
Por não avistar o pássaro
De longo tempo acumulado,
A flor vivificada
Quando lhe avista o pássaro ,
A flor e o pássaro são estranhos,
Mas ambos conhecem
E se confundem,
O pássaro parado e parado voa
Sua alma de pássaro lembrando a flor,
O pássaro pára,
Um dia,
A flor buscada,
E o pássaro canta.

A flor é você.
O pássaro fui eu.

 

 

 

Ticiano, Salomé

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Eleuda Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Weydson Barros Leal


 

A Urna


Eu te amo como se ama
Uma urna sagrada. Quando
O seu segredo se declara
Maior que tudo, e ainda amor
É mais que o seu segredo cala.

Amo-te além de quando a dor
E a alegria se misturam
Sob o silêncio que restaura,
Ou quando diante de uma urna
Sagrada, a dor é tudo e nada.

Amo-te ainda como se ama
O bem possível, este bem
Que na vigília de existir
A humanidade toda espera:
Eu te amo ao me definir.

Assim, ao te amar e ser livre,
Renovo em meu amor as minhas
Cinzas, que guardo na sagrada
Urna – a que se ama – e amor
É mais que a luz da própria chama.


 

 

 

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Ieda Estergilda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Weydson Barros Leal


 

Poema para uma mulher azul


Ela é a música e a alegria de um lugar que não se esquece.
Seu corpo nasce na noite que a minha fogueira alimenta.

No berço de sua palavra uma partitura é lembrada como um pássaro que se vê.
É sua semente a explosão em branco que toca a onda.

Clara como uma jazida de fogo, o seu minério se expande, concentra, cria e recupera
em suas mãos as fontes do tempo: em sua ciência todo sonho é matéria para um novo espírito.

Ela é a chuva, a casa, a mulher e a criança. Veste-se em tudo sua alegria que vibra,
e em cada corda de sua beleza um mesmo instrumento canta seu júbilo.

Peixes e estrelas desceram da noite para iluminar sua passagem. Para o dia que nasce
ela é o peito e a voz que declara a vida.

O seu corpo é amor, e assim é toda verdade.


 

 

 

Ticiano, Salomé

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Adrianne D. Meyer-Gruhl Fontoura

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Weydson Barros Leal


 

Paradiso


Lembra-me seu sorriso
Quando parecia ser feliz,

Ou sua mão – sua outra
Eternidade, pequena como

A distância eu dissolve
O comboio do tempo,

Quando sobre o meu silêncio
Derramava o seu silêncio,

Como em um jarro,
Que precisa da cor para

Parecer com a vida,
Pois sua eternidade

É o seu sentido –
Paradiso.


 

 

 

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Cecília Quadros

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

Weydson Barros Leal


 

Setembro
do livro O Silêncio e o Labirinto (1991)


Fiz poemas com palavras. Criei jogos de invenção. Escrevi sobre um tempo em que suposições não cabiam em meu sistema. Aprendi a ver sensações.

Tenho hoje residência em um mundo em que nas costas de tudo há lanternas acesas. Bebo por meus dedos este éter que é vivo em todos os poros; não lembro de um tempo que tenha sido somente despedida, mas há lugares que eu esqueço porque não me deixaram partir.

Ouço histórias que não sei porque vivi outros silêncios. Há um anjo em cada silêncio. O passado é uma pirâmide que sonha sobre os calcanhares, e todas as pedras são luzes que sonham um outro tempo.

Sei o que esqueci porque a vida é uma lembrança que cresce: os pássaros morrem quando esquecem as cores... – O tempo é esta praia a ser pisada; o mar que sobe é o barco que leva; e o esquecimento é a mesma praia sem marcas.

Tudo é um silêncio que corre sobre outro silêncio; e a necessidade de tudo é uma confirmação que se completa em outra necessidade.

É preciso ser feliz como um peixe que se salva. Eu alimento os pássaros que carregam a lua: Medusa era o segredo que o viajante deixou sobre este espaço. O poema é a ponte sobre o mar parado.

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

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01/08/2006