Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Sérgio Milliet


 

Bailado sueco

 

Para Blaise Cendrars



Floresta a três andares
As horas da noite pouco a pouco se vão indo
e as horas brancas se aproximam
Chovem desejos retorcidos
tentações em verde escuro
Zé Pereira
... bum... bum... bum...
bum... bum... bum... bum...
Brasil carnavalesco e feiticeiro
cheio de bruxas e de negros
dançando o samba
dos sensualismos nacionais

 

"O meu boi morreu
que será de mim!!!"

 

A lua muito grande
muito vermelha
viajando incógnita pela Europa
Sangue!
Todo esse sangue de mil raças
corre em minhas veias
Sou brasileiro
Mas do Brasil sem colarinho
do Brasil negro
do Brasil índio

 

Cendrars é um poeta brasileiro!


Publicado no livro Poemas Análogos (1927). Poema integrante da série Poemas Análogos.
In: MILLIET, Sérgio. Poesias. Porto Alegre: Livr. do Globo, 1946. p.50. (Autores brasileiros, 19)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sérgio Milliet


 

Boxe

 

Para Oswaldo de Andrade



Glórias do ring
Descarga elétrica
diz o vizinho que o swimg fulminou
Carpentier! Carpentier! Carpentier!
E o campeão sorri ao lado do Ursus estendido
Eis Siki desafiante no tablado
e o hino nacional das ovações.
Músculos aços braços sem cansaços
O século vibra todo
na elegância desse xeque-mate
Fora o xadrez e os bilhares de ventres prudentes
as folhas mortas e os decadentes
Renascimento das Espartas sadias
para brilhos nunca dantes inventados
E temos o direito de parodiar Camões
porque somos os clássicos do futuro
ou no mínimo o futuro dos clássicos
(Boa piada!)


Publicado no livro Poemas Análogos (1927). Poema integrante da série Poemas Análogos.
In: MILLIET, Sérgio. Poesias. Porto Alegre: Livr. do Globo, 1946. p.44. (Autores brasileiros, 19)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Sérgio Milliet


 

Carta à dançarina


porque não tens olhos amantes
para te contemplarem esguia
dançando ao luar de maio,
um desafio brilha em teu olhar.
pés descalços na relva orvalhada,
queres ser livre e dançar,

 

não te iludas,
loucuras não libertam ninguém.
na comissura dos lábios
deixam um vinco de remorso e nojo;
de tristeza turvam-se os olhos
que desafiantes brilhavam.
antes apóia a tua mão na minha mão,
deixa que de ternura ela se aqueça
e a calma descerá no coração.

 

beiço de choro, insistes em dançar ao luar;
mas não entendem essa tua ânsia feminina
de transbordar da carne morena.
desafias inutilmente um mundo cego,
gente que não vê teu ventro magro.
desafias inutilmente um mundo distraído,
gente que não sente a doçura de tuas mãos,
a riqueza quente de teus lábios.
e um desafio brilha em teus olhos.

 

não te iludas,
não basta quebrar as cadeias
para alcançar a liberdade.
a uma prisão sucedem mil prisões:
a do vício, a do tédio, a do cinismo.
antes chega tua pele à minha pele,
e teus lábios entreabertos a meus lábios.
é pelo amor que te hás-de libertar,
é para o amor que poderás dançar
ao luar.

 

quando tudo morrer dentro de ti
quando tudo se fizer adubo
para a semente que em dia raro de inocência
o destino semear em tua alma,
a planta do amor vingará

 

dançarás em êxtase ao luar,
para olhos porém de saber ver,
para boca de saber gostar,
para coração de comungar.

 

sem loucuras nem remorsos,
olhos límpidos e pés ligeiros,
serás livre enfim
na prisão que então escolherás.


In: MILLIET, Sérgio. ... Cartas à dançarina. Il. Fernando Odriozola. São Paulo: Massao Ohno, 1959.
 

 

 

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Sérgio Milliet


 

Expressionismo


Ônibus bêbedos tropeçam nas calçadas
Clichy-Odéon
O Sena sujo acaricia as pontes cansadas
Oito horas e ainda não é noite
Os barcos enfileirados
escorregam lesmamente
Atravancamentos
Assovios do pliceman a cavalo
Posso atravessar
A Torre Eiffel tem tanta pena do obelisco!
O boi e o sapo fábula moderna
Sexo conquistador
O mundo abre os joelhos
Meu Pantheon tão negro no meio
das casas debruçadas e curiosas
As janelas são olhos que se acendem um depois do outro
e daqui há duas horas
verei a Cidade-Luz!

 

Blaise Cendrars - Jean Cocteau - Vildrac - Appollinaire

 

Quartier Latin tão querido dos vagabundos
Lentamente subo para Montmartre
como alguém que volta para casa
com muito spleen

 

Pigalle cabarés
Morand não escreveu a noite de Montmartre
Lapin Agile
Casas baixas
Nostalgia do meu sol
Bonés
O coração da manhã falava em crimes bizarros
Mas eu não temo roubos
Debruçado sobre um balcão duvidoso
bebes conhaque
Meus amigos querem crônicas!
Hotel Meublé
Maryland
E um pouco do meu país
alastra-se pela prisão pequena...


Publicado no livro Poemas Análogos (1927). Poema integrante da série Poemas Análogos.
In: MILLIET, Sérgio. Poesias. Porto Alegre: Livr. do Globo, 1946. p.51-52. (Autores brasileiros, 19)
 

 

 

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Sérgio Milliet


 

O poeta e a guerra


As noites de amor são minutos
Mas só em você me refugio de você.
Azul cobalto, azul cerúleo, azul turquesa
Ultramarino
E verde e verde e verde e amarelo
As noites de amor são minutos
Chegam inchadas de esperança
Vão-se dobradas de saudades
Roxos da madrugada
Vagidos da primeira vida
Quando eu me canso de você
É em você que eu descanso
Onde estou? Quem sou eu?
No estupor do remorso
na exaustão da tarefa
no entusiasmo viril
na depressão e na lama
ora esponja sensível
ora pedra bonita,
diamante ou argila,
Ariel, Cáliban,
Onde estou? Quem sou eu?
Oh por mais que saia de mim,
é em mim que torno a cair,
o mundo gira, rodopia,
num expressionismo de fogo.
Quem pensa em amor, meu bem,
sem coberta e sem comida
quem pensa em amor, perdido
pelas estradas sem fim?
O quarto ruiu sob as bombas
o bosque do idílio queimou
todos os beijos se crestaram.
Encolho-me todo no canto
mais profundo de mim mesmo.
Aí é que encontro você
de novo e sempre você;
aí é que longe dos outros
posso gozar esse amor
sonegado ao ódio de todos,
posso ter essa riqueza
roubada à miséria de todos.
Oh bem da gente, arisco bem da gente,
agora que tenho você
bem presa dentro de mim,
irei deixar o mal alheio
libertá-la de mim e prender-me?
Fecho os olhos raivosos para o mundo
tampo os ouvidos ao fragor da guerra.
As noites de amor são minutos
vão-se dobradas de saudades...
Ah, plantaremos outros bosques
Ah, construiremos outro quarto
para os beijos que não crestaram...
E talvez então escapemos
à maldição da desgraça
contra os felizes do amor!
Azul cobalto, azul cerúleo, azul turquesa
Ultramarino...


Publicado no livro Oh! Valsa Latejante...1922/1943: poemas (1943).
In: MILLIET, Sérgio. Poesias. Porto Alegre: Livr. do Globo, 1946. p.142-143. (Autores brasileiros, 19)
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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