Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

Ódio
 

“Às vezes há que se suprimir a realidade a fim
de que a ficção se torne mais verossímil”

 

“Infelizmente, o infarto foi muito extenso e se formou um aneurisma no ventrículo esquerdo. Aneurisma é uma espécie de dilatação grave; faltou quase nada para romper o músculo do coração. Ele escapou por muito pouco, mas não está fora de perigo. A qualquer momento pode haver uma ruptura e então será fatal. A única saída é o transplante”. Zacarias era um homem ainda jovem – mal havia completado trinta e oito anos -, era também magro, tinha pressão baixa, nunca fumou, não bebia, suas taxas de colesterol eram baixíssimas e não havia casos na família de doença coronária. Os médicos estavam atônitos; a maioria dos cardiologistas não conhecia nenhum caso parecido com aquele. Aparentemente não havia um único fator de risco para um ataque cardíaco tão violento. Depois de uma investigação minuciosa a equipe interdisciplinar que o atendera convocou os psicólogos para uma avaliação do fator emocional, o único que ainda não havia sido afastado.

Primeiro conversaram com a esposa e com os irmãos; só então se descobriu que Zacarias nutria um ódio mortal contra um ex-cunhado que o havia ludibriado numa sociedade comercial e o deixara praticamente sem nada, exceto com muitas dívidas, tendo ele próprio se safado com todo o ativo da empresa. Segundo a esposa, o rancor era tão intenso que ele passava noites sem dormir, não se alimentava, não conversava com ninguém, mas confidenciava a ela que só teria sossego quando matasse ou mandasse matar o ex-sócio. O desejo de vingança virou idéia fixa e depois obsessão compulsiva. Durante os poucos minutos em que cochilava tinha pesadelos, rangia os dentes, crispava as mãos franzia todos os músculos da face e logo a seguir despertava muito angustiado. Levantava-se sempre de mau humor, não tomava o café da manhã, comia um sanduíche pelo almoço e não jantava. Nutria-se daquele ódio. Emagrecera onze quilos em pouco mais de dois meses, vivia com olheiras e não tinha um segundo de sossego.

Desde o dia do infarto foi incluído na lista de espera de transplantes e se submetia a exames de toda natureza, enquanto os psicólogos trabalhavam tentando remover aquela ira infinita através de psicoterapia. Dentro de oito semanas Zacarias parecia muito aliviado dos sintomas psíquicos graças ao tratamento intensivo. O ex-cunhado fora consultado e se prontificou a participar do tratamento desde, obviamente, que ele concordasse. Quando o responsável pela equipe o abordou sobre esta possibilidade, teve outro infarto que desta vez só não foi fatal devido à presteza do socorro médico. Mal ouviu o nome de Ezequiel, o ex-cunhado e ex-sócio, passou a suar frio, sentir dores no peito, falta de ar e a ficar arroxeado. Depois teve uma parada cardíaca e foi ressuscitado através de aparelhos chamados desfibriladores os quais descarregam eletricidade e estimulam o retorno dos batimentos do coração. Ao se recuperar chamou a família e recomendou insistentemente: “Prefiro morrer a ouvir falar mais uma vez o nome daquele filho de puta”.

Continuou na fila de espera para o transplante e sob assistência psicológica contínua. As sessões que antes aconteciam três vezes por semana, tornaram-se diárias, todavia o nome do ex-cunhado não fora citado uma única vez. Dentro daquele peito não batia mais um coração, mas uma bolsa velha, dilatada, seca e sacolejante; parecia até que os batimentos eram movidos à custa da energia acumulada pelo tremendo rancor. Houve uma noite em que teve outra crise, agora com parada cardiorrespiratória e desta vez os médicos trabalharam exaustivamente durante dez minutos a fim de recuperá-lo; desde então foi levado mais uma vez para a Unidade de Terapia Intensiva e não saiu mais de lá. O cirurgião chefe – Dr. Irineu - falou para a família que se o transplante não fosse realizado dentro de vinte e quatro horas ele não resistiria mais.

Por uma dessas incríveis ironias do destino, que só acontecem na vida real, mas nunca nas obras de ficção, naquela mesma noite Ezequiel veio a falecer de um acidente automobilístico. Em sua licença de motorista constava que ele era doador voluntário de órgãos. A família do morto se prontificou a ceder o coração desde que a do doente concordasse. Todos os testes requeridos para avaliar a compatibilidade entre o possível doador e o transplantado em potencial foram favoráveis. A equipe cirúrgica convocou os familiares de Zacarias e explicou a situação. A esposa e os irmãos indagaram se seria legalmente possível realizar a operação sem que o paciente precisasse tomar conhecimento prévio da identidade do doador e foram esclarecidos que nada obstava; que mesmo depois da cirurgia e pela expressa solicitação do paciente este jamais tomaria conhecimento do doador a menos que algum informante o fizesse, assim como às vezes poderia também suceder com pessoas que denunciam a uma criança a sua condição de filho adotivo. Enfim, Zacarias só tomaria conhecimento da identidade do seu doador de coração se alguém quisesse avisá-lo.

Diante da urgência que o caso requeria, os familiares de Zacarias e de Ezequiel assinaram os documentos exigidos pela lei de transplante de órgãos e este foi realizado com absoluto êxito. Ao despertar da anestesia foi levado a uma sala de recuperação e continuou a receber cuidados intensivos. Ao cabo de três semanas teve alta hospitalar quase completamente recuperado; foi então instruído a tomar os remédios anti-rejeição e a voltar à clínica a cada sexta-feira. Surpreendentemente, Zacarias nunca manifestou qualquer interesse acerca da identidade do doador. Parecia um outro homem. Além da saúde física tinha aparentemente recuperado também a emocional. Jamais alguém se referiu ao doador do órgão. Quando lhe contaram o acidente trágico que vitimou o ex-sócio e cunhado, Zacarias ficou tão feliz que ofereceu um jantar aos amigos mais chegados, simulando regozijo pelo êxito do seu transplante, mas, na verdade, para comemorar a morte do desafeto.

O jantar se prolongou noite adentro. Ele não bebia, mas não se cansava de reabastecer os copos dos amigos com legítimo “scotch”. “Como é que é? Coração novo hem? Ainda bem que o Ezequiel também não fumava nem bebia” - falou subitamente um dos convivas que já estava pra lá de Bagdá e não sabia da guerra particular entre os dois. Zacarias, inicialmente, teve um sobressalto tão intenso que sentiu o mundo girar e pensou que ia cair, mas conseguiu se controlar. No dia seguinte pela manhã foi procurar o Dr. Irineu na própria clínica. Quando este estendeu o braço para cumprimentá-lo, Zacarias sacou um revólver do bolso do paletó e descarregou na cabeça do doutor, guardando a última bala para si mesmo. Atirou à altura do peito onde ele imaginava se situar o coração do ex-cunhado. O projétil não atingiu o alvo, mas apenas um dos pulmões e ele sobreviveu. Foi julgado e condenado a vinte anos de prisão. Ao sair do tribunal deu uma entrevista para a televisão. Sua declaração que mais chocou o país: “Minha felicidade só não está completa porque a vingança foi parcial. Infelizmente não consegui acertar o verdadeiro inimigo”.