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Jornal do Conto

 

 

Rodrigo Petronio


 


Ceia


 

Há alguns anos pude realizar um desejo que por muito tempo me perseguiu: conhecer o Norte da França. Lá visitei um castelo medieval conservado intacto perante os desmandos do tempo. Curioso, adentrei seus compartimentos, suas salas, a nave central, a capela, o pátio interno, o calabouço, a torre. E foi justamente nesta que encontrei, entre outros pergaminhos amarelecidos, um livro grande, relativamente novo comparado aos demais, semelhante aos utilizados em cartórios pelos tabeliães, onde se faz constar as várias etapas do julgamento e ao qual se confia o vaticínio, o juízo final e a comprovação da culpabilidade ou não do réu. Abri-o e, esquivando-me dos guardas num canto de sombra, com muito custo comecei a decifrar sua caligrafia tortuosa, em tipos extremamente reclinados e em um estilo anacrônico. Dou agora ao leitor um resumo objetivo e fictício, embora veraz, dos fatos ocorridos em um dos dias ali registrados, posto serem muitos e muito extensos para que eu pudesse abrangê-los a todos.

Um grupo de senhores distintos chega ao castelo no dia e hora marcados. O inverno a pino impõe o uso de sobretudos, luvas, chapéus e pulôveres. Cumprimentam-se e, com a delicadeza comum aos nobres e a polidez própria a cada gesto e a cada situação, entram no edifício. São em número de oito, aproximadamente. Arranjam as roupas nos cabides dispostos à porta do saguão; a conversa flui ao ritmo de velhos amigos que se reúnem após um longo intervalo de tempo, guiados por um interesse comum, peculiar e precioso. Alguns mordomos acorrem na recepção, ordenam a grande mesa, central e circular; distribuem os castiçais, acendem velas, fazem rolar o tapete vermelho sobre toda a extensão do aposento. É tarde; o frio e a geada se anunciam pelos vitrais. O assunto vai e volta sobre temas fixos: famílias, negócios, viagens, mulheres, dinheiro, política. Julien – esse é o nome de um deles – alardeia de canto sobre os impostos exorbitantes que alguns países vizinhos vêm cobrando, o que dificulta os investimentos externos e a captação de recursos para iniciativas internas. Enquanto depõe as luvas de couro e fita displicentemente o enorme lustre que paira como uma nuvem de cristal sobre si, Albert responde-lhe, com um olhar distraído de quem não sabe o que diz mas o faz apenas para dar seqüência a um assunto, que esse fato também tem seu lado positivo, a saber, o de fomentar a vinda de capitais desses mesmos países para o nosso. Paolo, um italiano enorme de barba carregada e rosto oval risonho, resmunga alguma coisa sem nexo enquanto ajeita os pratos e talheres. Na extremidade do salão, Piotr, de pernas cruzadas, dá com a bengala sustida na planta do pé enquanto torce o bigode que lhe sai do rosto sulcado como um ramo, e abre um longo sorriso que lhe demarca os caninos.

O clima é solene e de confraternização. Sem esbanjar sentimentos, os senhores passam em revista suas vidas, os fatos mais marcantes, alguns curiosos, outros notórios ou apenas engraçados. Dada a hora, todos tomam a mesa; oram; em seguida, Piotr faz um sinal ao mordomo que o compreende de imediato. Retira-se e logo volta com um pequeno tonel de metal. Piotr o toma, sobe cuidadosamente na mesa e, sem desfazer a ordem dos talheres, afrouxa o cinto, arreia as calças e, em posição de cócoras, as pernas trêmulas devido à pouca flexibilidade que advém com o tempo, defeca no recipiente. Veste-se e retoma seu posto sob o olhar de admiração dos amigos. Paolo, que se encontra do seu lado direito, conhecedor das regras, ergue-se com um sorriso bonachão e, dando as costas a Piotr, abaixa as calças. Este tira o pênis para fora da braguilha e excita-se; quando consegue a ereção, vai cuidadoso à cumbuca metálica, mergulha dois dedos na matéria semilíquida e unta seu próprio órgão, bem como o ânus de Paolo. Penetra-o e, depois de alguns minutos, toma em mãos uma colher de madeira e esbofeteia-lhe a nádega direita; em seguida a esquerda, um mesmo número de vezes. Assim que ejacula, Piotr direciona o pênis para Albert que, cioso das normas, vem do canto da mesa engatinhando, envolve-o com a boca, suga a pasta remanescente e volta a seu lugar. Julien, ao seu lado, surpreende-o de cara amarrada, cuspindo às escondidas sob a toalha enquanto fingia pegar algo no chão. Toma um martelo de ferro sobre a mesa e desfere-lhe um golpe na fronte com tal força que arremessa seu corpo para fora do círculo, e a cabeça tinge de vermelho o piso de mármore, os olhos parados e abertos na órbita. Albert havia infringido o estatuto da cerimônia, havia transgredido os códigos do ritual e deveria pagar por aquilo com a sua vida. O mordomo pega o cadáver pelas ancas e o arrasta em direção a uma porta lateral. Os convidados expressam uma súbita tristeza, seguida de resignação. Estava cumprida a etapa preliminar da cerimônia. Levantam-se entre sorrisos tímidos. Piotr recompõe a roupa, ajeita o penteado. Munford tenta dispersar o constrangimento chamando a todos para a sala contígua, onde os aguardava a continuação da festa. Concordam. Abrem o grande portal e lá se dá à vista uma imensa maquinaria, com o tamanho aproximado de três andares de um sobrado. Mas esta obra merece uma explicação à parte.

Ela consiste em uma mesa enorme de onde sai um complicado sistema de cordas que se ligam, por sua vez, a roldanas de metal fixadas no teto. A mesa é abaulada nas extremidades que paulatinamente se inclinam até formar um ângulo de noventa graus com o chão; essas margens contêm uma seqüência de espinhos que se avolumam em quantidade e tamanho quanto mais distantes se encontram de se epicentro. As cordas elevam-se e se prendem a uma engrenagem situada em uma das paredes, uma alavanca giratória. No seu centro, a vítima, um rapaz tailandês, moreno, cerca de trinta anos, olhos e cabelos negros, trabalhador das minas de carvão em seu país, tem os pés e mãos atados; na medida em que a alavanca é girada, as cordas distendem seus membros em direções diametralmente opostas, trazendo-os cada vez mais para perto da coroa de espinhos, inclinando cada vez mais os extremos de seu corpo em direção ao chão. Complementar é o mecanismo que fica sob a mesa. Pois quanto mais as cordas são contraídas, mais a ponta de metal sobe em rotação, se encaixando perfeitamente num pequeno orifício situado exatamente sob a coluna vertebral da vítima. Em compensação, e proporção rigidamente progressiva, um pequeno candelabro pendurado no teto se inclina, e faz pingar um líquido incandescente e comestível sobre o abdômen do imolado. Por fim, tênues linhas com lâminas correm tangentes à sua pele, ora lesando-a, ora apenas sugerindo um risco cor de vinho de profundidade conforme a força geral centrífuga do sistema. Mas a importância do ritual não se reduz a isso. Sendo uma mesa, deve ser ocupada. Sendo um momento de fraternidade, onde a amizade daquelas pessoas está sendo posta a prova, todas as leis devem ser seguidas à risca. Dentre elas há a obrigação de se comer o que do interior da vítima provier de forma equânime; se a distribuição não for perfeita, o infrator tomará o centro da roda.

Sentam-se. Munford arruma o guardanapo na gola enquanto Julien termina seu charuto. Murder assume o comando da alavanca; gira-a. O mecanismo é ativado, o corpo do jovem vagarosamente se estica, o pino rotatório sobe em direção à sua coluna. Está nu, os músculos começam a se romper sob a pele. Parece anestesiado, pois não grita, apenas emite um gemido contínuo e prolongado. As linhas correm, deslizam suavemente sobre a coxa, vão em direção ao peito, cindem-lhe a face com riscos superficiais, imprimindo-lhe a aparência de um guerreiro conscientemente tingido para a batalha. Piotr indaga se, por gentileza, Julien não poderia lhe passar o talher. Este lhe dá, e Piotr toma em mãos o garfo prateado de pontas reluzentes; aproxima-a do globo ocular esquerdo do rapaz, fura-lhe na vertical e, girando o cabo do instrumento solenemente, o retira da órbita, emitindo em seguida um risinho de vitória, o troféu tremendo no ar e a boca aberta deixando entrever os molares. O pino começa a penetrar as costas, e o líquido, ao cair em sua barriga, corrói devagar a pele e expõe seu interior. À medida que as vísceras começam a sair os convivas fisgam-nas alegres, admirados com a qualidade do material. Brindam, e tornam a encher os copos com o sangue que escorre das pernas e braços tencionados sobre os espinhos. Quando Murder não tem mais forças para girar a alavanca, trava-a, indo sentar-se em seguida com os amigos. E assim decorreu aquela reunião noite a dentro, entre conversas sobre política e filosofia.

O jantar durou cerca de três horas, sem grandes transtornos. Terminado, foram todos se lavar, pôr a roupa de gala e se aquecer diante da lareira, pois o frio estava forte, insuportável.