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Rita Cruz


 




Fé...
Alguém falou pra ter,
mas perdeu a sua.

Nas ruas apertadas,
fez questão de esquecer.
E como roupa que se despe
modificou-se a si mesmo.

Nem lenço, nem documento.
A fé perdeu seus bens,
ficou na rua da amargura,
esperando por um milagre.

O sujeito, pobrezinho,
nem quis saber.
Tão logo se viu pelado,
deu um pulo de alegria
e passou a acreditar
que poderia não acreditar.

E para a comemoração
parou no Boteco do Luizinho:
um café por favor!
Deu uma bicada, aliviado,
e jogou o resto pro Santo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

Rita Cruz


 

Nada que preste


De que eu nunca escrevi nada que preste,
podem me acusar.
Mas terão de resolutos concordar
que vivi a vida pungente,
e que ela sempre me ardeu (e arde)
na medida total da minha existência.

Não há uma lacuna sequer,
onde eu possa me aliviar.
Porque a vida é pra valer,
porque a vida é pra levar.

Desde sempre, resolvi escrever.
Nada que preste, reconheço.
Mas essa vida eu vivi,
e não há que se negar.

E é por isso que ela me arde.
E é por isso que eu a conheço.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

Rita Cruz


 

Ensaio fúnebre


Tenho ensaiado a minha morte,
dia após dia.
E como nos invólucros fúnebres,
me visto de preto.

A cova profunda,
maior que meu coração,
abre sete palmos de gozo,
esperando meu cadáver histérico.

E vem uma chuva fininha
atrapalhando as falsas lágrimas
dos olhos curiosos-enfadonhos.

O cheiro de flor barata
e o cortejo despreocupado
emocionam essa que se vê
morrendo cada e todo o dia.

 

 

 

 

 

 

 

 

16.10.2006