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Ronaldo Cagiano


 

Metáfora do interior

 

 

Depois de Meia-vida, romance com que inaugura sua trajetória literária, muito bem recebido pela crítica, Oton Lustosa, que divide a Magistratura com as Letras - indicando a necessidade que tem o homem de explorar literariamente sua relação profunda com o mundo e as pessoas - brinda-nos agora com os contos de O Pescador de Personagens, traçando um perfil distinto sobre a vida de um pequeno burgo, na linha de uma marcante e profunda meditação sobre o homem, suas virtudes e seus deslizes.

Do romance ao conto, Oton Lustosa transita com inegável domínio da técnica narrativa. Seguro de seu ofício, registra o quotidiano do interior, onde - mercê de uma candente experiência de julgador detido em diversas questões, às vezes tão banais, outras tantas tão bizarras - vai coligindo todo um cabedal de situações com que arremata sua tessitura literária. Estes textos caminham no território da verossimilhança, pois o autor os constrói dentro de uma perspectiva estética em que, muitas vezes, percebe-se a tênue fronteira entre realidade e ficção, fazendo uma releitura de fatos, acontecimentos, conflitos jurídicos e outras histórias que têm lugar numa comarca.

Nestas narrativas a figura central do Juiz de Direito Dionísio Trajano de Mendonça Abreu é singular e mítica. Em torno dele gravitam as histórias de O Pescador de Personagens. Protagonista emblemático e referencial das gentes de uma fictícia cidade piauiense chamada Pereira da Rocha, na verdade vislumbra-se neste cidadão uma espécie de alter ego literário do autor, que ao longo de sua espinhosa judicatura, certamente anotou fatos e situações que, ao seu crivo e seu olhar percucientes, mereceram uma formatação sugestiva. Como nos disse Drummond, “o tempo é minha matéria/ o tempo presente/ os homens presentes/ a vida presente/.”  E com esse mesmo espírito auscultador e cirúrgico da realidade, o contista fez essa interpretação de seu espaço geográfico e temporal, num mergulho tanto histórico quanto sociológico da vida de um lugar. E o fez dentro do melhor estilo. Oton Lustosa panoramiza esta pequena comuna, exteriorizando seus tipos, sem folclorizá-los, mas dando-lhe a verdadeira dimensão humana. A hipotética Pereira da Rocha - tal como a Macondo de Gabriel García Márquez - é um mosaico espiritual e psicológico.  Lá, Oton Lustosa encontra seu leitmotiv, na recriação da realidade, dando voz e sentidos novos a um mundo tão surrealista quanto verdadeiro, sem perder essencialmente o senso de fidelidade a um universo tão remansoso, com identidade e características próprias. E como autêntico pescador de personagens, nesta obra o autor, verdadeiramente, vai romanceando a vida de Pereira da Rocha, com todas conotações e idiossincrasias.

O Pescador de Personagens corporifica, em pequenos relatos, o sentimento de uma cidade. E, como filtros de uma realidade, permite ao autor escrever uma espécie de metáfora do interior, com suas alegorias, suas meias-vidas, seus confinamentos, suas idéias, seus costumes, suas execrações, suas lendas e seus totens. No comum dessas vidas é que reside a universalidade, o que prova que não precisa o autor laborar no pantanoso terreno de uma pretensa fantasia cosmopolita para fazer literatura de bom nível. É preciso seguir o comum, pois nele está o universal, como nos dizem Heráclito de Éfeso, Pessoa e Tolstói. Em Pereira da Rocha estão todos os ingredientes que compõem esta prosa digestiva e sensível, graças ao poder descritivo de um cenário que oferece matéria a um grande narrador. E é sem rodeios que ele transliterou esse mundo à queima-roupa, que o autor conhece bem e que projeta-se nas vozes de Dr. Dionísio Trajano, de Pelópidas Pedreira, de Cabo Penaforte, de Carlindo Nogueira, das beatas, das moralistas, dos pinguços, do padre Albino, enfim, de tanta gente que compõe esse espectro interessante e estranho, tão atemporal e enigmático, porque projeção da solidão mesma dos homens e seus lugares perdidos, que não guardam outra angústia senão a falta de perspectiva de suas vidas. Os contos de O Pescador de Personagens são a fiel leitura desse chão perdido, mas profundamente humano em que mergulhou o autor para recriá-lo com sobriedade e talento.

 

 

Oton Lustosa

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24.04.2006