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Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

 

 

 

 

 

Rachel Dias de Moraes

Email da poeta Rachel

 

Um pequeno bloco de poemas

 

 

Redemoinho flamejante

Vinde a mim, oh amado do deserto!

Todos te esperam para imortalizá-lo,

Depois que ressuscitastes do silêncio do Egito.

Tuas canções foram escritas em hieróglifos

Para serem cantadas nas oferendas a Osíris.

 

Teus olhos de ônix foram banhados em sândalo,

E descansam na constelação de escorpião.

Teu palácio foi preparado com puro linho,

E os tapetes bordados com mil fios de lã.

 

Terrinas de manjares te esperam, servidas

Por virgens renascidas das águas do Nilo.

Em teu lugar de repouso, ao meu lado,

Florescem lírios do Vale,

E malvas foram regadas com o orvalho

Dos meus olhos.

 

Acerca-te de mim, oh rei dos Faraós!

Meus joelhos se dobram a tua passagem,

E minhas minúsculas sandálias tangem o teu chão.

 

É na esperança de tua origem que me valo.

Voltaremos ao tempo dos meus sonhos,

Onde tu eras o meu provedor

E eu te abria as minhas pétalas perfumadas.

 

Vem para estarmos num redemoinho flamejante,

Que desdobrará nossas almas num esplendor,

Que tombará aos nossos pés, assim que formos um.

 

 

 

Força cósmica

 

Nossa iniciação começou

Na clausura dos alvéolos,

E por qualquer força cósmica

De dança das constelações,

Estrelas não nos reconheceram,

E fomos remetidos a um ritmo

Frenético à solidão da noite.

 

Éramos estrangeiros,

Dávamos passos em volta

Sem nos reconhecermos.

 

Foi o vento gelado de ar arredondado

Que fechou a caixa de carinhos.

Deixou-nos como duas crianças

A se debater numa infância mágica,

Ainda no encontro de nós mesmos.

 

Da noite ao dia, do nascimento à morte,

Estávamos olhando-nos de longe.

Apesar do nosso eterno retorno,

O futuro prometido

Estava sempre no passado.

 

Nossas mãos agora se acendem

Chamando-nos desde a distância de tudo,

Iluminando o permanente movimento

Das nossas estações.

 

Aguardamos a melhor conjunção planetária

Para entrarmos nas esferas celestiais do encontro.

Uma rede espessa de cristais nos prenderá

No princípio de suas contas brilhantes,

E será a ressurreição de todos

Os nossos instantes vividos

Antes de nossa morte.

 

Uma energia de radiações nos envolverá,

Crivando-nos de sol, e sairemos

Da sombra dos poemas

Para bebermos da seiva do alvorecer.

 

 

Caverna do Homem

 

Oh homem das cavernas,

Desbravador de sonhos

Paleontológicos irracionais, ilógicos.

Coração de pedra, esculpido

Na ponta de sua lança

Que avança, cega,

Tenebrosamente dentro da noite

Entre minhas coxas,

Que tremem em delírios.

 

Minha carne primitiva se ativa,

Nesta Era sem eira, ressuscitada,

Sagrada e idolatrada.

Entre as profundezas

Do meu elo perdido.

 

Homem primitivo,

Afoito na moita dos pêlos pubianos.

Enrolado em sua vara escaldante, pulsante.

Gritos corridos dos meus ossos sagrados,

Espasmos da garganta seca.

 

Ruge um mamífero

Ao sinal visceral

Do esperma jorrando

Na caverna abissal

Do homem neanderthal.

 

Cromossomos como somos

Carregados de fúria

E desejos inumanos

Arrastados do começo de tudo

Até o fim do que somos,

Eterno homem das cavernas,

Senhor arquétipo dos meus sonhos.

 

 

 

Tecendo calafrios

 

Tudo se desfez no poente.

O que havia ali era ilusão.

Folhas soltas, boca seca, e ausência.

 

Meu rosto, emaranhado de doçura,

Foi rasgado na intempérie do desprezo.

Águas glaciais me conheceram

Pelas lágrimas que derramo

Em tuas mãos.

 

Tenho a terra fria me esperando,

Um sulfúrico aroma sem desejo.

Lágrimas que tecem calafrios,

No vazio interstício dos teus beijos.

 

Meu olhar de luz virou treva,

Apunhalado por sangue e aço.

Minha voz é um grito peregrino,

Buscando-te rouca pelo espaço.

 

 

 

Cantarei em sua boca

 

Manso e invisível, dorme

O meu corpo, lembrando a morte.

Estou dentro das lágrimas,

E as trevas me acariciam,

Adensam-se me afogando,

Destruindo todas as cores.

 

Imperfeita, percebo a noite

Brotar em corredeiras de vigília.

Reencontro de imagens que se formam,

Por eu ter bebido sua boca.

A terra exulta meu corpo.

Canta através de substâncias

De meu sangue.

 

O silêncio transporta a morte

Que navega embriagada

Sob meu espírito.

Agora estou entre os seus dedos

E sinto seu instinto despudorado

Invadir-me com melodias

E uma alegria faminta.

 

Depois que eu renascer,

Encantarei a noite.

Trarei uma harpa e tangerei

Cordas em ondas.

A imagem de um dorso

Florindo lírios,

Impregnado e tenso,

Tocando a loucura do tempo

Nas cordas dessa pele alba,

Será eterna.

 

Incendiarei todos no caminho,

Para não me fazerem sombra.

As mãos estarão luminosas,

Inteiras para a beleza

Que descerá e principiará

No centro de meu corpo.

 

Um vinho colhido nas colinas

Será bebido na entrega dos sonhos.

Todas as coisas esperadas

Surgirão de minha fecundidade,

Mostrando o espanto da oferenda.

 

Os instantes de brandura e inocência

Acolherão a intimidade

Que estará pedindo arrebatamento.

Toda minha carne tremerá

De violento desejo.

O ritual confundirá o vento

Que fará transporte de meu perfume,

Juntando o seu tremor ao meu.

 

Minha voz cantará em sua boca,

E sua intimidade será minha.

Seremos consagrados pela

Escuridão da noite

Resvalando até a insuportável loucura.

 

Nenhuma gota será perdida.

Rasgarei meu vestido,

E meus seios estarão nus,

Como montes de nuvens.

O verão entrará em nossos corpos,

Aspirando o consolo do sono

Depois do amor murmurado

Em êxtase.

 

E quando eu colar minha face a sua,

Teremos o mesmo ar

Dentro da mesma ternura.

 

 

 

 

 

Fiz-te invisível

 

Neste dia eu destino a mim o repouso.

Vou deixar o teu olhar longe e sair.

Colunas serão erguidas,

Pois eu escolhi voltar à calma

De minha alameda antiga.

 

Tua árvore secou e os frutos caíram.

Vi teus braços submersos no vazio

E tua energia, outrora esfuziante,

Resvalar no nada.

 

Estou regressando ao meu lugar de paz.

Aquele mel que fazia a doçura

Dos meus dias se tornou amargo,

Por isso estou trocando as abelhas.

 

Deixo-te na curva do silêncio.

Parto para navegar em outro rio,

De águas mais consoladoras.

Fujo da maldição que há em ti,

Da agonia que levas contigo,

Das suas origens banhadas no medo.

 

Voltarei a ser pétala de luz

Estendida num campo de latitude certa.

Meu sangue estava negro,

Pois me igualara aos lobos de tua estepe.

 

Saio desses recifes de contornos duplos,

Fugindo de tua voz cheia de versos.

Fui hipnotizada e submersa

Numa água de sonho,

Mas voltei à tona e respiro novamente.

 

Algumas pedras ainda suspiram,

E reclamam os dias de loucura,

Mas perdoa-me, fiz-te invisível!

 

 

 

Fortaleza

 

O lugar que ele me deixou

Era feito de granizo petrificado.

Fortaleza que me escondia das feras.

Cauteloso, ele foi todos os dias

Que me guardou.

 

O bosque em volta era apressado

E adensava toda à volta dos muros.

Como um mercador de pedras preciosas,

Tinha em mim sua pérola rara.

 

Todas as noites, pendurava a lua

No firmamento e eu a sonhava.

Os muros eram manchados de sangue,

Para enganar salteadores,

Que imaginavam ser ali

O templo da sorte.

 

Fora das paredes ouvia-se sempre

Uma arenga guerreira,

Que desfolhavam árvores de cristais.

 

Dentro, uma lunação poética,

Que se espalhava pelos ladrilhos,

Enquanto eu andava

Tamborilando meus pés

Nas lajotas desenhadas

Pelos sacerdotes.

 

Ele recebia de meus lábios,

Em rituais de pompa,

Promessas seladas com

A água maleável de minha boca.

 

Um brilho refulgente

Nascia de seus olhos,

Quando era envolvido

Por meus braços de cristal de rocha.

 

Era a eleita de seus sonhos

E me coroava todas às noites

Com seu canto acasalador.

 

Fazia em mim furacões e recebia

Um retumbar ondulante de gemidos.

Eram noites adamantinas, atormentadas,

Como num chamado de guerra.

 

Estar ali era como viver num

Planeta jovem.

Sentia esse flecheiro de dardos fulminantes

Perfurar-me constantemente,

Até deixar o Monte de Vênus

Em tremor galáctico.

 

A colina de frutos sagrados,

De polpa adocicada,

Era açoitada pela língua sanguínea

De escorpião rei, dia e noite.

 

Noites divinas, onde a chuva se empoçava

Naquele lago profundo.

Dali nasciam os nomes sagrados,

Recitados pelos deuses enlouquecidos.

 

Fazia brotar de mim o fogo consumidor

De madeira nobre.

Enquanto dele saia o canto de guerra,

Que interpretava a dança das chamas,

Apagando-a com sua resina branca.

 

 

 

 

Flecha da Noite

 

Fui retirada de meus aposentos

Quando a lua estava em esplendor de fogo.

Lua imensa, pronta para os rituais sagrados.

 

Banharam-me com leite

E escreveram rezas sobre minha pele.

Solenes poemas de signos encantados

Para transformar as marés.

 

Queimaram minerais e incensos

Para os deuses adormecidos,

E eles acordaram.

 

Vestiram-me de folhas

E amordaçaram minha boca.

Vi olhos de tenazes, fosforescentes,

Envoltos em trovões.

 

Uma visão atormentada de braços abertos,

Para receber um corpo incandescente.

 

Fechei os olhos para ouvir

O canto ondulante e embriagador da cerimônia.

Cada nota saltava contagiosa

Sob o pentagrama dos meus dedos.

 

Todas as coisas foram se distanciando,

Os clamores, o medo,

Até que me aquietei para receber

A flecha da noite.

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920