Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paulo de Tarso Pardal

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

2.10.2011

 


Horácio Dídimo: releitura do poema, leitura bíblica

 

Horácio Dídimo é desses poetas que instigam o leitor. Dotado de muita sensibilidade, tanto para os fatos contemporâneos, como para a espiritualidade e o misticismo, ele compõe poemas curtíssimos, às vezes, somente de dois versos, que aguça a curiosidade e coloca esse leitor em contato com o mundo abstrato e simbólico do poema, que, no mais das vezes, vem impregnado de humor e ironia, uma de suas maiores características.

Roberto Pontes, em ensaio dedicado à sua obra, defende a tese de que Horácio Dídimo retoma uma tradição: a do epigrama (epigrama era, na antiguidade clássica, "toda sorte de inscrição em túmulos, monumentos, estátuas, medalhas, moedas..."). Acertadamente, Roberto Pontes propõe um estudo epigramático, não como modelo clássico, mas para "apenas identificar e exemplificar seu estilo breve, conciso, curto (...) adaptado ao contexto contemporâneo."

Pe. F. Sadoc de Araújo, na apresentação do livro A palavra e a Palavra, argumenta que a "Palavra, em maiúscula, é o Verbo de Deus que se fez carne e habitou entre nós. A palavra, em minúscula, é a linguagem humana..."

Pedro Lyra, em estudo sobre o autor, diz que "Valorizada pela variedade formal e pela clara visão da realidade contemporânea, a poética de Horácio Dídimo, particularmente pelas inovações que introduziu na poesia cearense, apesar de tributária do estilo-22, afirma-se com um duplo mérito: mérito pela presença histórica, mérito pela presença estética."
 


Das vozes

Se Roberto Pontes enfatiza o aspecto formal, e Pedro Lyra lembra as inovações (estes dois colocando o poeta no ponto histórico contemporâneo), Pe. F. Sadoc de Araújo compara as palavras divina e humana para lembrar o misticismo de Horário Dídimo.

Todos tiveram uma lúcida visão crítica. Horácio Dídimo compõe também com misticismo e atualiza o epigrama, com linguagem e motivos contemporâneos, assim como foi (e é) um poeta importante no quadro atual da Literatura Cearense. - além de aguçado ensaísta.



O título da obra

Para iniciarmos, vamos entender o título do livro. A palavra, em minúscula, e a Palavra, em maiúscula, podem ter muitas significações.

A ligação com a palavra de Deus parece estar muito clara, até porque todas as epígrafes dos poemas foram tiradas dos livros que compõem a Bíblia, Coríntios, Eclesiástico, Efésios, Salmos etc., já dando um direcionamento para a releitura do poema através de uma leitura bíblica.

Quando se lê, porém, um poema como "o afinador de palavras" (p.139), pode-se construir outra linha de raciocínio. Aqui está o poema: (Texto I)
 


Leitura do poema

Polir palavras é uma típica metaforização da atitude do poeta. Poesia é recriação da linguagem, transformação da sintaxe e visão para os motivos de um mundo histórico. Dessa forma, podemos avaliar que polir "velhas palavras" pode significar, dentre outras leituras, um trabalho para a atualização da poesia e uma busca incansável pela palavra exata, precisa.

Na poética de Horácio Dídimo, a busca de tal palavra é essencial, porque tudo é síntese, brevidade e concisão, portanto, a palavra certa no lugar certo é primordial, para o poeta obter o efeito desejado e, com isso, levar o leitor a participar ativamente na construção do significado do texto, já que, em alguns casos, como este, o que não está escrito é, talvez, mais significativo. O brilhar "como o sol" só reafirma a tese da atualização e a crença na palavra poética como iluminadora das outras palavras.

Este poema, como todos os demais, não está dissociado da palavra bíblica, que lhe serve de epígrafe. O texto bíblico é o seguinte: (Texto II)
 


A palavra e a Palavra

Para entender a relação entre o poema e a palavra de Deus, é preciso ir à fonte que serviu de epígrafe. Neste caso, a citação foi tirada d´Os Salmos (ou Saltério), uma coleção de 150 cânticos, que celebra o mistério da salvação. Tais cantos eram acompanhados de um saltério, "instrumento musical da família da cítara". O Salmo 68 é a "Oração do Justo Aflito". (OBS: para ler as citações bíblicas, deve-se observar o seguinte: as letras iniciais são a abreviatura do livro da Bíblia. "Sl" quer dizer Salmos. A vírgula separa o capítulo do versículo. Assim, nesta citação, lê-se: Salmos, capítulo 68, versículo 31.)

Podemos imaginar, por conta disso, que um canto, para ser glorificador, necessita ter a palavra iluminadora (e, por isso mesmo, exata), que liga o profano ao sagrado, daí tal palavra precisar ser tão brilhante como o próprio sol, afinal, ela, sendo ponte, também, assim, se sacraliza. Apesar das teias de relações que se pode fazer com todos os poemas do livro (afinal todos vêm epigrafados), o que é importante é ter consciência de que qualquer poema é aberto, por sua própria natureza estética.

O poema não precisa do apoio de qualquer outro texto, para que possa significar-se. Ele tem peso semântico por si mesmo. Se o poeta quis dar certa direção à palavra poética rumo à palavra divina, por certo, devemos levar isto em consideração, mas os poemas são livres e, mesmo sendo expostos com vínculos para o leitor, nada impede que este leitor possa fazer outras injunções acerca de seu sentido.

Evidentemente, estou falando de um leitor-modelo, aquele que não utiliza o texto, para enxergar seus próprios sentimentos, mas aquele que tem visão crítica para relacionar, coerentemente, as relações de significação que o texto sugere.
 


Da polissemia

Assim, a Palavra, em maiúscula, também poderia ser a palavra transfiguradora, a recriadora da realidade: é a Palavra Poética, aquela que vê o mundo, os objetos, as pessoas de maneira diferenciada, simbólica. Neste sentido, a palavra é mais importante do que as coisas, porque tira delas aquilo que nelas é mais difícil perceber: a essencialidade, daí a síntese dos poemas e a necessidade da palavra exata.

O título do livro, portanto, possui uma variedade imensa de significações, e é dentro da plurissignificação das palavras que o poeta vai encontrar o ambiente ideal para desenvolver o aspecto lúdico e bíblico da sua poesia.



A concisão

Horácio Dídimo diz muito com poucas palavras. No poema "o presente desatado na ponta do fio do passado" (p.146), há esta confirmação: (Texto III)

A brincadeira com os conceitos está em muitos poemas. Neste, especificamente, Horácio Dídimo é conceptista em essência, e nisto ele é barroco, fusionista, porém, sem ostentação, suntuosidade ou exuberância. Há uma proposital intertextualidade com uma parte do "Sermão da Sexagésima", pregado na Capela Real, no ano de 1655, de Padre Antônio Vieira. O procedimento lúdico só confirma o que disse Pedro Lyra: Horácio Dídimo é tributário do estilo de 22, (primeira fase moderna) com o humor característico daquele primeiro momento modernista.
 

Os múltiplos caminhos da criação

Se o pouco pode ser o muito disfarçado, é lógico que é na essência que se deve procurar o mistério e o sentido das coisas.

Isto se confirma quando lemos a palavra bíblica, epigrafando o poema: (Texto IV)

O capítulo 4 do Evangelho Segundo São Marcos, de onde foi tirada a epígrafe, trata da parábola do semeador, e o versículo 31, do grão da mostarda. É uma bela parábola, que conta como Jesus saiu para semear a palavra de Deus, comparando-a com um grão de mostarda (a menor das sementes) que, "depois de semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças". Neste sentido, entende-se o porquê de o pouco ser muito, porque ele se multiplica, como o grão.

Quando se faz a releitura do poema através da leitura bíblica, pode-se entender, talvez, a relação que Horácio Dídimo sugere que se faça, mas esta é apenas uma leitura inter-relacional. O poema, torno a dizer, tem vida própria, e outras interpretações podem vir à tona, como, por exemplo, pensar que este poema é apenas um jogo de pensamento contraditório e que tem no aspecto lúdico (outra grande marca de Horácio Dídimo) sua principal característica. Digo isto para que o leitor entenda que a teia de relações com a leitura bíblica é uma das possibilidades de interpretação desses poemas.

Pensar o código

Os poemas metalinguísticos, como, por exemplo, "o papagaio" (p.145) e "os insetos bibliófagos assimilam a seu modo a cultura humana" (p.156) são esclarecedores; vejam-se, a seguir, respectivamente, os versos de "o papagaio": (Texto V)

Quando se faz a leitura casada com a leitura bíblica, pode-se inferir que todas as técnicas utilizadas no poema, para torná-lo um bom poema, não bastam, porque falta algo que o coloque a serviço de Deus - a criatividade dos homens não pode prescindir da sabedoria de Deus.

Uma leitura do poema desvinculada da leitura bíblica poderia ser a de que o poema precisa ser inovador, com novos elementos de composição, com novas imagens, com originalidade. É por isso que o título deste poema é "o papagaio", porque poema sem inventividade imita o que já está aí posto, não há recriação da linguagem, já foi escrito e reescrito por outros poetas. Para se fazer um poema de excelência, não basta usar a palavra concreta, nem falar de um passado, nem este poema possuir a estrutura de um soneto. Pode até ter tudo isso, mas, sim, de maneira reinventada, recriada. Este é o sentido "solteiro" do poema, que fala por si mesmo, afinal, é ele um metapoema.

Da estilística

Perceba, caro leitor, que os sinais de pontuação são raramente utilizados, e as iniciais maiúsculas não aparecem na marcação do início de frase, nem nos títulos dos poemas, nem em outros locais em que ela, normalmente, é colocada.

Este procedimento tem duas implicações. Primeiro, Horácio Dídimo é consciente das inovações porque passou o discurso do poema. Segundo, a sua preocupação com o estilo é evidente, o que prova que o poeta tem também um olho na técnica de construção do poema, afinal, ele exerce primordialmente sua função de poeta, antes de estar a serviço da palavra de Deus. É isto o que demonstra a sua poesia. A marca de excelência de todo poema está, antes de qualquer vínculo, no próprio poema, apesar de se poder fazer leituras casadas, como é caso deste livro.

A abertura

É bom esclarecer que nenhuma das possibilidades de interpretação é melhor ou pior do que outras. Tais possibilidades são, apenas, maneiras diferentes de ler um texto que, por sua natureza, é aberto. Neste outro metapoema "os insetos bibliófagos assimilam a seu modo a cultura humana" (p.156), Horácio Dídimo mostra a luta com a palavra: (Texto VI)

Da mesma maneira, as duas interpretações (solteira e casada) podem ser feitas. Catar "o vidro colorido das palavras" tem o mesmo sentido de "polir palavras" (buscar a palavra certa), imagem utilizada no primeiro poema que analisamos neste ensaio.

A qualificação de "poeta distraído" é a marca lúdica, brincalhona, com que Horácio Dídimo trata os motivos. Pesar as palavras em uma balança construída com materiais preciosos diz da extrema responsabilidade que se deve ter com tais palavras, principalmente, se se está diante da palavra de Deus.

É interessante observar o livro da Bíblia, de onde foi tirada a epígrafe. Eclesiástico é uma obra que reúne sentenças, máximas e provérbios. É também chamado de Siracida, por causa do nome do autor, "Jesus filho de Sirac, filho de Eleazar de Jerusalém", que parece ter sido um nobre de Jerusalém, preocupado com o estudo da sabedoria e da Lei. O livro foi escrito em hebraico, entre os anos 200 e 175 aC. A Igreja Católica incluiu este livro no cânon somente no Concílio de Trento, em 1546.

O prólogo do Eclesiástico foi escrito pelo neto do autor, é o que se pode deduzir pelo que lá está dito. O importante, para o nosso estudo, é observar os ensinamentos que há no versículo 29 - que trata do "peso das palavras" -, do capítulo 28, intitulado "O perdão". No versículo 26, da versão da Bíblia que estamos consultando, diz o autor: "Cuida de não deslizares pela língua, a fim de não caíres diante de quem te espreita." (Eclo 28,26.)

Qualquer que seja o vínculo que se queira fazer com a palavra bíblica, o poema de Horácio Dídimo trata da importância que a palavra deve ter para o poeta, porque é dela que dependem a excelência e a originalidade da poesia.

É assim que Horácio Dídimo vai construindo seu mundo poético, sugerindo, com as epígrafes, os caminhos que o leitor poderá seguir.
 


Claros enigmas
 

Não somente para as palavras, porém, o autor focaliza seus temas. Eles são muitos, e muitos são os poemas que instigam a curiosidade do leitor, como "durante" (p.67): (Texto VII)

Na sequência da leitura da página onde se encontra este poema, parece até que a epígrafe responde as inquietações que o leitor, com certeza, terá, porque nada há de concreto (nenhuma imagem, sequer) que lhe possa servir de guia para a interpretação.

Desvendar o segredo da abstração que o poema encerra parece ser a primeira necessidade. Para darmos certa direção para o entendimento do poema, poderemos refazê-lo da seguinte maneira: desde quando? / até quando? / e durante? Recolocando as interrogações desta maneira, fica mais fácil pensarmos em algo que possa esclarecer um dos significados do texto.

Na verdade, o poema é tão aberto que é difícil encontrarmos algo de concreto para sabermos de que ele está falando.

A reflexão filosófica acerca das origens e dos caminhos do ser (um dos objetos da Filosofia) parece ser um bom início para o entendimento. O tempo é o único elemento (e principal) do poema.

Se o leitor se perguntar "durante o quê?", "desde quando o quê?", "até quando o quê?", ele poderá encontrar qualquer elemento que lhe sirva de apoio. Esse "que", assim, pode ser a vida, o homem, a arte, a existência etc.

Esta proposta de entendimento do poema é apenas uma estratégia. Outras, com certeza, existirão. Mesmo assim, nada podemos afirmar de concreto, dada a completa abstração linguística. Se a intenção do poeta foi inquietar o leitor, ele consegue desinquietá-lo com a interpretação casada, bíblica.

A fonte

O livro de onde foi pinçada a epígrafe é a Epístola aos Filipenses. Este nome provém de Filipos (Filipe II, pai de Alexandre Magno), rei da Macedônia, cidade predileta do apóstolo Paulo, que ali fundou a primeira comunidade cristã da Europa. A Epístola aos Filipenses é uma carta que Paulo escreveu a seus amigos e seguidores filipenses. É um texto de tom familiar, como é próprio de uma carta desta natureza, em que há, dentre outros temas, a esperança, que dá sentido à vida cristã. O capítulo 4 trata das "Últimas exortações": Paulo dá conselhos a seus amigos, e, no versículo 6, pede para eles não se inquietarem com nada, porque Deus atenderá às suas necessidades. Neste sentido, podemos fazer uma hipótese: o narrador do poema parece estar dialogando com o próprio apóstolo Paulo, inquirindo-lhe sobre suas dúvidas existenciais e, evidentemente, religiosas.

Não se esqueça, caro leitor, de que esta é apenas uma proposta para preenchermos as lacunas do poema. Mesmo assim, tudo, ainda, é muito vago, porque o poema é vago e completamente abstrato.

Recursos expressivos

Estruturalmente, o poema segue a linha de composição concretista, em que se deve levar em conta o projeto gráfico das palavras no espaço da página. Das "palavras", aliás, é um modo de dizer, porque, nesta composição, há um sinal de interrogação, que é um verso e, por isso mesmo, deve ter um valor semântico: ele deixa de ser apenas uma marcação, para se transformar numa marca significativa. Assumindo o status de um verso, ele passa a ter um valor absoluto, desligado dos termos com os quais, normalmente, ele forma um "sistema de reforço da escrita".

Ele assume a significação da própria dúvida primordial, seja ela qual for, e, se é assim, não precisa estar em todos os locais em que, numa situação normal, sua marcação seria exigida. Ele está sozinho, formando um verso, porque incorpora este valor absoluto.

A interrogação é a marca de um primordial inquiridor, o que não é próprio da sua natureza, já que depende de palavras para ter um sentido. Colocando-o dessa maneira no poema, o poeta dá-lhe um peso semântico absoluto.

Este procedimento, aliás, é muito próprio, e comum, naqueles que compõem versos com os procedimentos inerentes aos concretistas.

Vê-se, por esta análise, que a poesia de Horácio Dídimo desenvolve-se dentro de um verdadeiro universo de significações, tanto por causa da sugestividade do próprio texto poético, como por estar relacionada com uma leitura bíblica. Tudo implica inesgotável riqueza.

Fique por dentro

O processo da escrita

Os títulos dos poemas de "a palavra e A Palavra", de Horácio Dídimo, se transformam e transfiguram-se nos próprios poemas. Em muitos casos, tais títulos são maiores do que o próprio corpo do poema: (p.156): "os insetos bibliófagos assimilam a seu modo a cultura humana" (p. 156). Os títulos têm significação sozinhos e seguem o mesmo estilo breve e conciso do poema que lhe serve de corpo. Eles formam outros poemas. Isto também mostra que o autor tem um olho no estilo, compondo com recursos que há nas técnicas contemporâneas. Grande parte dos poemas utiliza uma linguagem publicitária, rápida, incisiva, que procura mostrar para o leitor o ponto central de cada tema. Não há análise. Há síntese dos motivos. Com essa estratégia de composição, vai falando dos mais variados temas, refazendo relações entre os sentimentos humanos, denunciando, descrevendo, falando sobre a própria poesia, brincando e ligando tudo isso à palavra divina.

 

A presença do cotidiano e do social

Outra característica que se observa é o tom ameno e leve dos poemas. Não há denúncia panfletária, mesmo quando o motivo é político. Não há tensão, mesmo que o tema seja a morte. Não há desespero, mesmo que se trate de desilusão. Não há angústia, mesmo que a solidão seja o motivo. Não há insegurança, mesmo que se fale da implacabilidade do tempo. Há um eu-lírico maduro, sóbrio, que fala, sem ressentimentos e sem mágoas, dos temas mais dramáticos. Este é o caso, por exemplo, do belo poema "o banco do jardim" (p.31): (Texto VIII)

A tessitura do poema

O Cântico dos Cânticos, de onde veio a epígrafe, talvez seja o livro que mais desafia a argúcia dos intérpretes da Bíblia. O livro forma um grande poema lírico, cujo tema central é o amor, que pode ser interpretado de várias maneiras: naturalista, alegórica, simbólica etc. Não há, no livro, a intenção de "celebrar o exercício da sexualidade, mas o prazer sensível que nasce do amor, pela experiência da mais profunda atração mútua e da exclusiva, total e definitiva doação recíproca entre duas pessoas." Qualquer que seja a linha de interpretação, o Cântico dos Cânticos trata do encontro amoroso de um casal, e qualquer leitura que se faça do poema de Horácio Dídimo, solteira ou casada, nota-se o enaltecimento de uma mulher que partiu, e que foi objeto de interesse do narrador. Aqui, a função da palavra é definidora, porque foi através dela que a memória foi, intensamente, preservada.

O importante é observar que, qualquer que tenha sido o motivo da partida, o sentimento dolorido da perda, que normalmente vem acompanhado de muita dramaticidade e sofrimento, desaparece, para ceder lugar somente ao que de bom aconteceu entre os dois. Neste sentido, a palavra, vale dizer, o diálogo, foi fundamental. É esta desdramatização que dá o tom ameno, leve, de que falamos no início desta argumentação acerca dessa poética.

Da retórica

Outro aspecto interessante a se observar, na leitura casada desse poema, diz respeito ao procedimento retórico. Na verdade, há uma inversão nos procedimentos: os textos falam do amor, mas o da epígrafe focaliza um encontro: o capítulo 6, que faz parte do "Quarto Canto", trata do "Encontro com o amado", e o versículo 11, que faz parte do "Quinto Canto", fala de "A Predileta". O poema focaliza um desencontro, isto se levarmos em consideração apenas o lado material e presencial da mulher de que fala o narrador. Além disso, temos que enxergar que o "desencontro" do poema é apenas um argumento retórico, que serve, principalmente, para afirmar o amor. O desencontro é apenas presencial. São, portanto, duas maneiras, dois procedimentos - completamente inversos - de se falar sobre um mesmo tema.

A figuração

Por mais cruel e naturalista que seja um motivo, há sempre esse sóbrio narrador, pronto para amenizar o sofrimento. Esta é uma das maiores marcas do livro A palavra e a Palavra: Horácio Dídimo é, desse modo, um poeta eufemístico.

Do eufemismo para a ironia e o humor é um pulo. Basta relermos alguns poemas, para notarmos o grau de descontração que há neles, como neste: "um cego conduzindo outro cego conduzindo outro cego conduzindo outro cego conduzindo outro cego conduzindo outro cego" (p.170) (Texto IX)

Na leitura solteira deste poema, temos um texto que brinca com a condição do deficiente visual. O leitor é levado a imaginar, pela sugestão, um plano real, humorístico, quase o roteiro de um clip de televisão, que bem poderia ser também um texto publicitário. A sugestão do buraco com o deslocamento da letra "o" é um achado concretista dos mais felizes.

Na leitura bíblica, o cego é uma metáfora, é aquele que não enxerga a palavra de Deus. É por isso que todos caem no buraco: os que não creem não enxergam o verdadeiro caminho. No livro de Isaías, há três partes. A terceira delas, de onde foi tirada a epígrafe do poema, trata do "Retorno dos primeiros cativos", que também é chamado de Terceiro Isaías. Esta última coleção de oráculos é atribuída a Trito-Isaías, um profeta anônimo, cuja atividade em Jerusalém está, provavelmente, entre os anos 537 e 515 a.C. Nesta época, havia uma profunda desilusão, e o povo começava a descrer em Deus. Neste contexto, surge a voz de um discípulo de Isaías, condenando os descrentes e levando a confiança em Deus. Esta leitura, portanto, também atende à sugestão da palavra poética associada à palavra bíblica.

A outra face

Na página 149, do livro "a palavra e a Palavra", do escritor Horácio Dídimo, há um intrigante poema composto sob a forma de diálogo, cujo título é "o rei verde e o passarinho azul": (Texto X)

Se no anterior o poeta faz humor com o deficiente visual (levando a cegueira para o plano da metáfora), neste, o humor se dá pela banalização da palavra do sábio, que, aqui, é o homem sem a sabedoria de Deus, o que quer dizer que este homem, na verdade, nada sabe. Mais uma vez, a Palavra (com P maiúsculo) adquire significação para o contexto geral do livro.

As duas epístolas aos coríntios foram feitas por Paulo. A primeira, de onde foi tirada a epígrafe do poema, foi feita em resposta a uma carta que ele recebeu dos coríntios, que lhe pediam esclarecimento sobre várias questões, como o incesto, a prostituição, a virgindade, o matrimônio etc. Havia uma preocupante situação moral e disciplinar na comunidade de Corinto, que foi destruída em 146 a.C. e que foi reconstruída em 44 a.C., por César. Corinto tornou-se uma importante metrópole cultural e comercial, que atraiu uma grande quantidade de pessoas, e, por isso, religiões de todo o Mediterrâneo estavam ali representadas. Inferimos, pois, que o sincretismo religioso deve ter levado Paulo a pregar, muitas vezes, naquela cidade.

O eu e o mundo

Nos poemas de denúncia, políticos, Horácio Dídimo tem uma clara e crítica visão do mundo contemporâneo, que coisifica o homem, tornando-o máquina. O poema "os robôs" (p.42) tem esta temática: (Texto XI)

O poema faz um balanço de todas as imposições a que ficamos sujeitos no mundo moderno. Nas grandes cidades há, em algum canto, alguma marca de imperativo, "padronizando a liberdade individual": o homem contemporâneo precisa de avisos para não ultrapassar o limite do outro.

Há uma denúncia neste poema, porque mostra o homem sem consciência das atitudes que ele, normal e espontaneamente, deveria ter. Há apenas dois versos imaginários, que não se vê em placas: "alugue-se/ venda-se". Tais versos mostram a própria banalização humana, a coisificação do homem. Na leitura vinculada, podemos deduzir que, mesmo diante de tais imposições, o homem não vai se separar da palavra de Deus. De maneira bem sintética, esta mensagem é o teor da Epístola aos Romanos e a mensagem fundamental do Evangelho de Paulo, de onde veio a epígrafe.



TRECHOS
 

TEXTO I
quero passar um dia bem azul
polindo velhas palavras
até que elas brilhem como o sol

TEXTO II
LOUVOR AO NOME DO
SENHOR, / E O GLORIFICAREI
COM UM
HINO DE GRATIDÃO.
(Sl 68,31)

TEXTO III
o pouco pode ser o muito
disfarçado

 
TEXTO IV
É COMO O GRÃO DE MOSTARDA / QUE, QUANDO É SEMEADO, / É A MENOR DE TODAS AS SEMENTES (Mc 4,31)

TEXTO V
não basta o poema cacto
nem o soneto azul
nem a palavra concreta
nem tampouco o pensamento
de um passado
onomatopaico

PARA QUE VOSSA FÉ / NÃO SE BASEASSE NA SABEDORIA DOS HOMENS, / MAS NO PODER DE DEUS! (Rm 11,33)

TEXTO VI
o poeta distraído
catava o vidro colorido
das palavras

DERRETE TEU OURO E TUA PRATA; / FAZE UMA BALANÇA PARA PESAR AS TUAS PALAVRAS. (Eclo 28,29)

TEXTO VII
desde
quando
?
quando
até
NÃO VOS INQUIETEIS COM NADA.(Fl 4,6)
 

TEXTO VIII
ela foi embora
mas as palavras que ela disse
[ficaram
e conversaram muito tempo ainda

EU DESCI AO JARDIM DAS
NOGUEIRAS / PARA VER A NOVA VEGETAÇÃO DOS VALES, /
E PARA VER SE A VINHA CRESCIA / E SE AS ROMÃZEIRAS ESTAVAM
EM FLOR.
(Ct 6,11)

TEXTO IX
cai
todo
mundo
no
burac
o

NÓS NOS TEMOS REVOLTADO
CONTRA O SENHOR /
E O TEMOS RENEGADO
(Is 59,13)

TEXTO X
- mestre, já é tempo de dizer alguma coisa.
- salve-se quem puder - vociferou o mestre.

O SENHOR CONHECE OS
PENSAMENTOS DOS SÁBIOS /
E ELE SABE QUE SÃO VÃOS.
(1 Cor 3,20)

TEXTO XI
pare siga faça fila
não pise na grama
não coloque cartazes
não converse com o motorista
alugue-se
venda-se
a lotação está esgotada
coloque o cinto de segurança
e ponha a ficha na caixa
não aceitamos reclamações
[ posteriores.

QUEM NOS SEPARARÁ DO AMOR DE CRISTO? / A TRIBULAÇÃO?
A ANGÚSTIA? / A PERSEGUIÇÃO?
A FOME? / A NUDEZ?
O PERIGO?
A ESPADA?
(Rm 8,35)
 


Saiba mais

AZEVEDO, Sânzio de. Antologia da Academia Cearense de Letras: Edição do Centenário/Organização de Sânzio de Azevedo. Desenhos de Rubens de Azevedo. Fortaleza : Academia Cearense de Letras, 1994

BÍBLIA. III. Índice Bíblico-Pastoral. Português. Bíblia Sagrada. Coordenação Geral: L. Garmus; Petrópolis: Vozes, 1982

DÍDIMO, Horácio. A palavra e a Palavra. 3ª ed. ampliada. Fortaleza : Editora UFC, 2002

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo : Companhia das Letras, 1994

MASSUAD MOISÉS. Dicionário de termos literários. Cultrix : São Paulo, 14ª. Ed. 1999

PONTES, Roberto. "Horácio Dídimo e o epigrama recriado". In Revista da Academia Cearense de Letras. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, V.101/102, nº 56/57, 2001 / 2002
 

 

PAULO DE TARSO PARDAL
COLABORADOR*

Ficcionista e ensaísta

Direto para a página de Horácio Dídimo

Direto para a página de Paulo de Tarso Pardal

   
 
 

 

 

 

 

2.10.2011