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            Aníbal Beça 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
             
            
            Fortuna crítica: Paulo Figueiredo  
             
            O Nosso Anibal  
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Na ponta dos 
            tempos, os poetas chegaram antes e batizaram as divindades. Foram 
            padrinhos dos deuses, do caos, da noite e da terra. E, no Olimpo, de 
            Júpiter a Vênus. Portanto, como eles, ninguém possui o sentido da 
            vida e da morte.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            E, como eles, 
            ninguém conhece melhor a alma e as origens do mundo. Fernando 
            Pessoa, da dimensão de Camões, inspirado nos Navegadores Antigos, 
            dizia que mais do que navegar e viver é preciso criar. E, ninguém, 
            dentre os modernos da língua portuguesa, foi mais fundo na criação 
            do que Pessoa, em seu encontro com a poesia. Ultrapassou todos os 
            limites do ego, do princípio do ser, para chegar aos deuses e 
            tornar-se um deles.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Deu-nos, 
            também, as lições da interpretação poética, dos símbolos e dos 
            rituais, com as ferramentas da simpatia, da intuição, da 
            inteligência, da compreensão e da graça, indispensáveis para o 
            correto entendimento da obra literária.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            É envolvido 
            nesse sentimento que vejo a obra do nosso Aníbal, um poeta da 
            Amazônia e da noite. Da Noite, deusa das trevas e filha do Caos, do 
            Céu e da Terra, um doce liame entre o poeta na dobra do terceiro 
            milênio com seus primeiros, ainda dos tempos trágicos da mitologia 
            greco-romana.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Aqui, nesta 
            outra variável geográfica e espiritual, engolidos e dominados pela 
            selva, fomos e somos todos de uma geração da noite, da noite 
            amazônica, da noite da adolescência prenhe de esperança, nos 
            lavrados das madrugadas manauaras, ruas e praças, bares e lares. 
            Mas, a interpretação poética desse período, espaço-tempo da nossa 
            vida, ficou destinada e reservada ao poeta Aníbal Beça, domínio da 
            sua mais inteira exclusividade, do talento de quem no passado ungia 
            e foi ungido.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Assim, com o 
            Gordo, os da nossa geração, jamais morreremos órfãos da poesia. Ela 
            existe e está impressa, traduz a nossa passagem e reflete o todo das 
            nossas angústias, como outros tiveram poucos outros, inexcedíveis, 
            com o exemplo de Thiago de Melo e de Luiz Franco de Sá Bacelar. 
            Aníbal é o nosso representante, grande Aníbal, não como seu homônimo 
            gênio e guerreiro cartaginês, um Barca e outro Beça, mas como Senhor 
            do combate iluminado e libertário, pura explosão de sensibilidade, 
            dos mais sagrados valores do povo amazônico. Nós todos que, ainda 
            mal vividos, ruas e praças de Manaus, aurora do mercado Grande, 
            homenageamos todos os anjos na palavra de Augusto dos Anjos, pesada 
            e cáustica, mas cheia de compaixão com o destino da humanidade. Ou 
            de outros poetas, próximos ou mais distantes, que declamávamos noite 
            adentro, olhos e corações atentos no futuro.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Aníbal, na 
            solidão interior, dispôs-se ao desafio e o venceu ou o vem vencendo, 
            com os anos. No conjunto da obra, vassalo do passado, faz da Noite o 
            pátio da sua inspiração poética, chão de Manaus. Aí, a gênese - o 
            pano escuro do céu, o homem, ruas e praças, o mercado, bares de 
            muitos encontros, palavras soltas - da "Trilogia da Noite", com a 
            "Noite Desmedida", "Suíte para os habitantes da Noite" e "A Palavra 
            Noturna". E, ainda nem bem concluído o último projeto, já anuncia o 
            "Romanceiro da Cabanagem", como o poeta dos vencidos, para contar em 
            verso a história dos derrotados, que nunca figuram com um mínimo de 
            decência na historiografia oficial. A versão é sempre a dos 
            vitoriosos, dos poderosos, de quem massacrou e jamais de quem foi 
            massacrado. É essa postura diante da história e dos fatos da 
            história, que espelha o passado e a geração do poeta, como 
            determinação permanente de aliar-se ao bom combate, na defesa de 
            quem nunca teve palavra ou sequer o gesto para dizer da vida.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O Gordo, além 
            de poeta, como é natural da sua alma irrequieta, também é músico. E 
            coloca a palavra e a poesia na luta pela valorização do que há de 
            mais puro na cultura amazônica e cabocla. Suas inclinações nascem 
            com a terra e a selva, característica que o tem identificado com as 
            manifestações mais originais da criação popular, longe, bem longe, 
            de qualquer preconceito elitista. Chega ao limite extremo de 
            defender um carnaval diferente na Amazônia, com a toada substituindo 
            o samba, sem as macaquices repetitivas e sem originalidade dos 
            carnavais das escolas do Rio de Janeiro.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Com críticas 
            sempre inteligentes, não tem poupado o oficialismo, dia-a-dia mais 
            distante das verdadeiras raízes culturais do povo amazonense. Na 
            verdade, não temos sequer uma política cultural no Estado. Projetos, 
            muito menos. E tudo é feito de improviso, sem nenhum planejamento, 
            nem a médio prazo, como observou-se recentemente com o parto do 
            camundongo pela montanha, no ano do centenário do Teatro Amazonas.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Aníbal, como 
            poeta, é um resistente, numa terra de reduzidos padrões culturais. 
            Um dia, não se sabe quando, a cultura com seus valores ainda 
            vencerão o marasmo e a irresponsabilidade. Até lá, é arar em terreno 
            árido sem nenhum apoio, a não ser inspirados na resistência dos 
            poetas e cantores amazônicos e caboclos.  
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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