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Orlando Neves

orlandoneves@vizzavi.pt

Orlando Neves, 2002

Alguma notícia da poeta:

Poesia:

Mensagem de Orlando Neves ao Editor do JP:

 

To: Feitosa
Sent: Monday, July 15, 2002 2:07 PM
Subject: Poemas

Soares Feitosa:
 

Obrigado pelo seu acolhimento..

Enviei-lhe, há dias, alguns dados mais sobre mim. São excessivos, mas era-me muito difícil cortar os textos e até escolhê-los. Seguem hoje os poemas - são mais de dez, pela razão de também não ser capaz de escolher. Faça você as escolhas, como muito bem entender. E deite fora o que não interessar.

Li os seus poemas, numa linha poética que não é a minha (a minha está neste momento a sofrer grandes mudanças) o que não me impede de ter gostado bastante deles e de ficar com curiosidade em conhecer mais.

Fiquei também impressionado com o seu texto em prosa, uma notável crónica que tem dois pólos de encantamento ímpar: a realidade que nela narra, bem longe da portuguesa, embora idêntica nos sentimentos e a sua escrita de grande qualidade estilística (acho que vocês, os brasileiros, estão a criar um novo Português que me assombra, deleita e entusiasma! Para além de me orgulhar.

Fico a  aguardar mais notícias suas, se achar por bem mandar-mas.

 
                         Orlando Neves.

Orlando, aquele abraço!

Bom, como gostei de todo o lote, publiquei-o inteiro

Bem-haja, meu caro poeta!

                        Soares Feitosa


 

Só a DIDÁTICA em prol do Homem legitima o conhecimento

A outra face do editor Soares Feitosa, o tributarista

 

 

 

 

 

 

 

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Orlando Neves

De “NOCTURNIDADE

 

 

Outra madrugada, outra palavra, outras águas

que, ora violentas, ora serenas, ora

sedentas, como inconstantes graves amantes

descem aos olhos de Laura a violá-los, outros

 

silêncios, outros lumes, outros medos que ora

glaciais, ora cálidos, ora instáveis,

entre ruínas, delírios e desafios

lançam sobre os olhos a ténue gaze

 

que os vai delindo e a escurecê-los ousam,

sufocando-lhes, impiedosa, a amplidão

do verde no plaino áspero do tempo, somente os

 

mudarão em vasos de ouro eterno, acendendo

em Francesco outra maresia, nova seiva,

nova lira, outra ceifa, outra rosa do dia.

 

·

 

Leva-lhe as palavras o pensamento, posto

nos vitrais sangrentos da catedral, quando

os lábios de Laura rezam. Na solene

fixidez do silêncio, entre as pedras erectas,

 

vindas do sol, as orações de Laura ateiam

o incêndio, devoram o coração

de Francesco. Dentro, em algum canto do coro,

cantam as musas. Sob o ruído atroante

 

 

das naves ao céu, na solene fixidez

do silêncio, vão as palavras fugindo,

linhas de luz e noite no novo vitral

 

de cores lunares, desenhado nas mãos

rígidas do poeta. O canto poderoso

repete a eterna impiedade do amor.

 

·

 

Muitas cidades viu pela última vez, mares

que sulcou, sentimentos que sentiu,

jardins onde esteve, bosques onde sonhou,

amores que recorda, ruas que pisou,

 

poemas que o possuíram, neves onde

se corroeu, corpos de que foi parte, céus

que desabaram, dores que sofreu, palavras

jamais lembradas, alegrias que perdeu

 

– fragmentos de vidas irrepetíveis, como

esses segundos que fogem quando fulgem

os olhos de Laura. Só o trabalho do corpo

 

rompe o hímen do inconsolável tempo perdido.

Reaprende Francesco a sede do instante, a vida

rápida na memória dos olhos de Laura.

 

·

 

Em honor de Laura calaram-se os tambores,

ecos da alegria juvenil nas colinas

plácidas da tarde. Só o silêncio surge,

emboscado na última floração das noites.

Lamenta a praça, branca de nada, onde Laura,

a fascinante, se dispersou como as pombas,

as palavras, as sombras. Fértil silêncio

que traz o condão de pressentir, derradeira,

 

a visão que lhe corrige a desesperança.

Na sua mão e no papel tem o poder

de ressuscitar o ido esplendor do tempo,

 

a aura imóvel do sol, onde a palavra pára

e reconstrói a fala dos olhos de Laura,

prodígio da dor na funda eternidade.

 

·

 

Estão cerrados todos os jardins

onde asas voaram e se romperam

as pedras. Como esquecer as estrelas

tranquilas no verão e a ciência

 

exacta das flores pintadas de ar?

Estão cerrados todos os jardins,

máscaras de fome, escarlates de treva.

Que tempo esvoaça em Francesco, morto

 

pelo lento longo suor das noites?

Estão cerrados todos os jardins

em que Laura foi timbre e flor sem pálpebras.

 

Mudada em terra, a água morrerá,

como o amor cumprido se muda em luto.

Estão cerrados todos os jardins.

 

De “DECOMPOSIÇÃO – O CORPO

 

 

AS LÁGRIMAS

 

Exaltemos as lágrimas. Na pele das veias,

bom dia, águas. Gratidão ao rosto, às cores,

ao sulco nos olhos. Porquê este ardor, este

temor da erva pisada? Adormecem comigo,

 

meigas fábricas de quietude e solidão

no calmo azul branco da sua breve cor.

Que longe se vão no ar amargo, sob o ímpeto

delirante de as transformar em leis extintas,

 

ironias ou júbilos. Rolem ou finjam

incansáveis trabalhos ou dores, assim

conspiram em outras portas, outros mistérios.

 

Perco-as entre conversas, o sono, o amor.

Aos olhos desertos sua ausência os desgasta.

Louvemos nas lágrimas o seu fulgor vão.

 

·

 

AS LÁGRIMAS – II

 

O que serão depois? Uma linha suspensa

na dobra das cortinas? Uma faca acesa

sobre a pele da cal? Ou uma deslocação

do ar nas telhas abertas? E verão nascer

 

 

 

o sol nas fontes secas das colinas? Não

já nos meus olhos estremecerão ao vento,

nem ao ritmo do corpo. Voltam à medula

dos deuses, à amável alegria da água

 

fresca, doce e pura, à imperecível água

inicial, a que nunca se muda em terra?

Como sobreviverão depois? No ruído

 

das cores? Em reflexos brancos nos retratos

dos mortos? Em espantos tecidos de fumos?

Ah, minhas lágrimas, ficais. Vivas de luz.

 

De “MAR DE QUE FUTURO

 

 

Só de restos se consagra o tempo, força

cerrada na inutilidade destas

cores campestres, quando o sol em Novembro

escurece os sobreiros. Só de restos me

espera a cerimónia de viver,

trânsito e transigência do silêncio,

ocultado no meu corpo. Só de restos

o trespassa o tempo, máscara e manto. Morro

muito antes da morte, sem saber se os anjos

foram gaivotas hirtas no piedoso

musgos dos rios ou se hão-de ser maçãs

ou ciência, loendros ou lembrança,

inocentes, lúcidos sonos ou oblata

de seda, a deus cedida, em pagamento

da paz. Só do que chega ao fim, se corrompe

e apodrece, se imagina o princípio,

a majestade das coisas, o silêncio

irrevelado que o corpo desconhece.

·

 

Em nenhuma noite os mortos se demoram,

mas apropriam-se da sede do estio

nas tardes calmas e traçam a geometria

subtil dos ossos sobre a extática terra,

na velocidade com que a luz se extingue,

nos ramos apodrecidos das figueiras,

insuflados nas lavras, sorvendo o mel,

entontecidos, sonâmbulos, assimétricos.

Têm as suas eiras negras, os seus

cavalos enigmáticos, as suas

danças brancas da morte e um espanto atento

pela lepra que tolhe a voz dos vivos. Nem

sempre ressurgem, mas pelas manhãs mais quentes

do verão, no chio das roldanas dos poços,

o grito prolonga-se até ao limite

da respiração do ar. Sabemos, porém,

que voltarão para ocuparem, por breves

segundos, o lento declínio do sol

nas planícies ceifadas. E são, então,

transparentes, como o estrondo do silêncio.

 

·

 

Como será estar vivo, se imagino

o que foi este céu, estes ventos, estas

montanhas e a luz que nos olhos tive?

Se imagino o amanhã, a mesma ferida

de ser, a mesma cura inútil passando,

permanecendo, ora de riso, ora de ira,

a mesma explosão, o mesmo desespero.

Se tudo jamais será adquirido,

como me imagino vivo, confiante

e atónito, fermentado pelos séculos,

espécie de caça que o tempo sempre abate,

hostil, angustiado ou indiferente,

pátria do presente que o coração

fóssil não pode reter? Como estarei

vivo se, desde o princípio, não vive

o que jamais vi, vejo ou nunca verei?

 

·

 

Como realiza o corpo este exercício

da queda no súbito conhecimento

do espanto, quando os olhos estão vencidos,

cerrados pela transparência e pela luz

ofuscante da alva? À medida que o corpo

seca e se aplacam os seus, outrora, amáveis

dons, se ensombram os ossos, míseras as mãos

emagrecidas e se desnuda a carne

no fundo fôlego das águas, aumenta

o assombro da claridade. Só a vida

gerou o tempo, eis que ausente, ao resplendor

inesperado da luz descida. Onde vai

o humilde corpo, se corpo resta ou se outro,

receber a miraculosa mudança

de nada existir a não ser o profundo

bando do grito terrível de todos

os mortos? Ah, que estupor sela os músculos,

enrijece as unhas e aspira a voz,

resfria o suor e nos conduz, inertes

e cegos, ao núcleo da luz deslumbrante?

Ó mar de que futuro, rumor volúvel,

sopro claro, envolve-nos de compaixão!

 

 

De “DECOMPOSIÇÃO – A CASA

 

 

A IDADE

 

Ao princípio, era a doença de ser, pura e simples

exaltação das trevas de que a casa era a luz do mundo.

Ao princípio, estava o amor oculto no secreto fio

da memória do mundo. Ao princípio, era o insondável

 

desconhecido, aberto nas mãos maternais, sortilégio

do mundo. Ao princípio, vinha o silêncio como ponto

de encontro do nada do mundo. Ao princípio, chegava

a dor da pedra opressa nos corações, sublime prodígio

 

do mundo. Ao princípio, revelava-se o inominável,

o imóvel, o informe, a intimidade temida do mundo.

Ao princípio, clamava-se a concórdia e a piedade,

 

afirmação absoluta da constância do mundo.

Ao princípio, era o calor e a paz. Depois, a casa

abriu-se à terra fértil, a madre terra, a medonha terra.

 

·

 

OS OBJECTOS NA MESA – III

 

Por aqui, alguém passou. O som da rádio

ou um peixe roxo que lustrou de sangue

os resíduos de tudo. Alguém que não era

nem palavra, nem cor, nem irreal, informe

 

 

 

coisa. Talvez um vento ou um corpo doente,

sabe-se lá se um visionário orador, um deus

do amor ou, porque não? um crime, uma garganta,

uma lava de treva, uma lua violácea, um baixo-

 

-ventre morto, enfim, uma praga ou um beijo.

Por aqui alguém (alguma coisa) passou de noite

ou verde, noção física ou matemática, abcesso

 

líquido, eventualmente, um antepassado vivo

há centenas de anos. O certo é que passou.

E deu às coisas a sua metade que queima.

 

De “REGRESSO DE ORFEU

 

 

Contemplai o homem chamado orfeu

que no escuro campo queimou a luz

e amanhece de novo repetido

na lavra da cor, à mesa rasa.

Aturdido na morte, chorou a perda

do frágil coração dos homens,

no halo das águas. E, esgotado,

ao frio relâmpago dos espelhos,

pelo sulco do risco das aves nos céus

reconhece o estranho trânsito da luz.

Contemplai o homem que o nome perdeu

e a si se devora, fragmento de papel,

na chama inquieta de uma lua negra,

perfeito arco de pó em cada momento

eco do inútil, boca do efémero.

 

·

 

Ó se o meu clamor às altas serras,

às verdes estrelas tanto subisse,

ó se o meu clamor nos baixos vales,

à raiz das pedras aí se fundasse,

ó se o meu clamor, aqui agreste,

além temente, singelo fosse,

ó se o meu clamor, jamais débil,

sempre o vento o acolhesse,

ó se o meu clamor de rude grito,

por todas as partes se repartisse,

ó se o meu clamor de fogo errante,

neste ser terra a alma acendesse,

 

mas tudo o que repousa em si se move

e nada permanece como parece.

 

·

 

Exclamam contra mim todas as fulgurações

dos peixes, o brilho fugaz dos répteis, as hastes

brancas dos animais da terra e os fortes aromas

dos frutos e os ninhos das águias nas altas

montanhas. Exclamam contra mim a agonia

da voz por romper nos olhos das mulheres em

fúria e a massa sufocante dos claros dias

e o silvo estrangulado no oco das pedras.

Exclamam contra mim aquilo que em mim está

doente, o último sopro de antes de deixar

de ser, todas as metamorfoses dos meus ossos

e a insone obsessão de ser a minha vontade.

Exclama contra mim a seca e redonda paz

de me ter contido na palavra homem e na busca

da verdade perpetuamente moribunda.

Exclamam contra mim os lugares do mundo onde

me guardei dos juízos dos deuses e de todos

os senhores da cólera e dos justos juízes.

Exclamam contra mim as ruínas que ainda

não existem, a combustão das aves no fogo

das águas transformadas por todas as astúcias.

Exclamam contra mim o rio onde flutuo

e a intensa névoa que transfigura as árvores.

Exclamam contra mim as minhas mãos mutiladas

e os convulsos tremores da minha língua nos dentes.

Exclamam contra mim as vozes cruas dos anjos

que apartam os mortos e as suas nocturnas máscaras.

 

Que venha sobre mim esse unânime grito

agora que a vida se detem no que imagino

e que ele me possua e me corrompa.

 

·

 

De “ODES DE MITILENE

 

 

Em toda a parte a vejo, quando o dia

esmorece ou se levanta a luz, meus olhos

a seguem, fontes que secam, no seu regresso.

Não me pergunta Safo se nas fragas da ilha

estão calmas as aves, se nas escarpas

agonizam os cães da praia, se o beijo

das abelhas amadurece os figos ou

se cresce em mim a dolor da ausência.

Vem longe o meio-dia. Ela me oferece

o abismo e destece a sombra

das horas sedosas, das águas vazias

de quem acha outro o mundo, fechado

o desejo. Fica o tempo solene, crivo

do verão, na mais longínqua altura

se fia a casa que urdi, são de luz

e trevas as bodas crispadas, são de flechas

de sol, degraus de ondas, ciências de sal,

sangue e mercê, substância e peso,

prazer de todos os caminhos pelo mar

e da morte. Tudo em mim cai e, ante

meus olhos, Safo me inventa a vida.

 

·

 

Vai-se a velida pelo triunfal vento,

às irrepetíveis águas das nocturnas marés,

vai-se, assim, experiente lua de ébrios

dias, o liso ventre respirando o sopro

tépido das folhas, tal um líquen de sentidos

deixado a arder, ruído lento, nos meus olhos

doentes. Mas, com ela, na veia das mãos,

vai, fluxo de silêncio, a minha voz

que nas suas pernas se perde e pelos braços

às mais altas nuvens vermelhas ascende,

onde choram os pássaros. Safo assim vai,

impetuosa corrente de carmim, por entre

os freixos suspirando, pomba escrava

dos aromas, rescendendo, suas coxas

de areia na riba das águas banhando,

as unhas de sal a coroa das dunas

dispondo, evadida de si e da sua origem,

tardada ao encontro do espanto

que lhe dáa ver a saudade fria

no meu corpo demorada. Nesta solidão

que me gasta, assim vai a velida,

deusa azul, trágico marfim, oscilando

ao ritmo de um eco de treva, subitamente

abrasado. É Safo a luz que se inventa

e ilumina a sua fonte, irradiante

relâmpago sobre as húmidas poeiras,

fulgor que me cria, quente vento,

raiz solana.

 

·

 

Procura, alma, a água que te transporte

ao revolto ar de que nasceste. No sereno

pouco ou na mansa luz, não correm os dias

iguais, a teu mando, nem das mudas coisas

emana o sopro divino que, número perfeito,

a nós nos tome.

É Safo a vida, este efémero instante

em que a agonia eterna, eterna se deslumbra.

É Safo o desejo, esta firme vontade

que nos muda o corpo, ora tomado, ora

liberto, jamais dissonante ou cativo.

Por estes campos amarelos, estas praias vazas,

este sol nenhum que nos cinzela as ancas,

a harmonia da pele e o rumor mudo da palavra,

arde, alma, ar, procura a tua medida.

 

·

 

O grande bico do deus, a sua escura pálpebra

nos contemplam, Safo, na insone madrugada.

Trememos à sua chegada. Mas, sob os sombrios

loureiros, com ternos olhos vemos os nossos

corpos despedirem-se da noite sagrada

em que tiveram a sua parte nas águas frescas

dos rios e nas vesperinas rosas do poente.

E aos deuses que mentem, à última cinza

das suas asas, opomos o rigor e o lume,

o vivo desejo com que, ilimitados, geramos

a vida e nela exercemos o ansiado poder

destruidor. Está já pronto outro vinho,

outra maçã rubra. Sobre a mesa de pedra

fria, fulguram os fulvos pães e as brônzeas

taças. Deslumbrante é o vento que recebemos

no rosto, pura transparência que nos oferece

o seio e em nós procura o harmonioso cansaço,

o coração final.

 

De “LAMENTAÇÃO EM CÁUCASO

 

 

Vem e diz. Que enorme casa resplandece

de bronze, que vento destrói as belas

lavouras, quem entende a fala das perdizes,

ungidas da luz matinal.

 

Vem e diz. Por um tempo de nada, a juventude

banha a nudez do rosto e nos deleita

dos amáveis dons da idade. Em minha casa amada,

sou uma tâmara redonda e madura.

 

Vem e diz. Quem nos ensina o caminho

da cidade, que pão amassado é arma excelente,

pendular e lenta, da agonia, que distância

nos isola dos homens de fala dotados.

 

Vem e diz. Não invejo os deuses nem as suas

acções, não mudo o pranto em louvor, nem

das brisas oceânicas provém o passo

da fortuna, areia fugida à contagem.

 

Vem e diz. Que sombra de sonho é o

homem, o que de muitos veio para ser único,

o que, ornado de ouro e alado, em dez

medidas de água sucumbe, em bolor se devora.

 

·

 

Viveste. São as rosas que acabam e as fontes

que secam. Viveste. Saem os vermes das árvores.

A urze embranquece. Só a névoa se debruça

nas casas cerradas. Viveste. Deixou de

ouvir-se o bolor das águas a tomar a pele das

rãs. Não crepita nos lábios da amada o vinho

amável. Viveste. Por toda a parte as coisas

são menos exactas. Oculta-se no relâmpago

a face fortuita das aves. Arqueia-se o sol

nas rudes ravinas. Viveste. Aonde se não pode

voltar te chamam. A voz dócil é agora

desolada, ácida luz póstuma. Viveste. Entre

cada fractura das imagens percebidas, a respiração,

única raiz do sono. Viveste. Da terra e do ar,

da medula das palavras, da potência da memória,

do efémero amor do efémero, da imprevista cinza

em que mudou o brando lume. Viveste. O tempo

doeu. Fonte primitiva que se abandona, a vida

é perda. Só a presença existe, finita e una,

imóvel. Viveste. O ócio dos deuses, reprodução

da infância, visão lógica do horizonte oculto.

Longa espera. Profundo, negro arbusto de formigas.

Superficial música obscura na asa das abelhas.

Viveste. Exílio frágil na idade, trágico

êxtase. No cúmplice desconhecido poder

da terra. Guardião solitário do puro e do inútil.

Viveste. Como um fruto que não chega. Ou um

vento fresco. Saudação das águas ausentes

do peso. Viveste. São os deuses negros e sem

esforço. Viveste. Para além do que se perde.

Das amoras, substância final do sangue, único

cheiro. Para além da verdade, último sinal

do que se desconhece. Viveste. Sempre o mel

foi mais doce do que os serenos figos. Sempre

às coisas outras se sucederam, sombras do

outono, consumo da energia. Viveste. Como se no

átrio das casas os convidados ausentes

te esperassem, imagem evocada. Ou no fim da

memória sempre a manhã fosse o futuro

e o princípio. Viveste. Da tragédia dos deuses.

No canto imutável das sempre mesmas vozes.

No esperar vir-a-ser. Na paciência dos olhos.

Na herança do destino. No movimento ritmado

das cores do fogo. Viveste. Todas as perguntas

se reacendem agora na última forma do amor,

a dor, a boca branca, a palma vazia da mão.

 

De “ULISSES E NAUSICA

 

 

Quando Nausica se move, um barco de luminosa

madeira se edifica no tempo. Como um odor da

terra nocturna, ardor ou enigma, toda a ausência

é um corpo nascente. Quando Nausica se move,

um frágil búzio cicia nos colares dos seus

braços, entoa o mar vozes profundas da sombra,

é o fogo negro. Em Nausica vive o excesso,

o vinho cintilante, a plenitude da pele na

velhice do tempo. Ó erro de ver, permanece nos

meus olhos, imagem do sonho, única árvore do vazio.

·

Pelos campos de cevada,

sob o claro cendal

que o corpo de Nausica

cobre, abre-se a sombra

da terra, ao acaso da alba.

Precária, virá a tarde

nas coxas dos cavalos,

quando o vento for

presságio do olho dos

deuses, sobre Nausica,

a da amável fala.

Paciente, a noite cala

o rumor dos pomares.

Sob o claro cendal,

o ágil corpo de Nausica

é ouro de asa, casa

descerrada, mito de

morte que passa e arde

ao acaso da alma.

 

·

 

Prolonga-se a cor. Que sempre ela vibra na

extensão do corpo ou na liberdade da voz,

por sobre os numerosos frutos das ceifas

começadas. De bronze ou marinha púrpura se

mudam, nos teus ombros, os doces cabelos.

Deixa ruínas o mar nas tuas longas pernas,

anteriores ao sol. Tudo começa em ti, augúrio

do nada centro do mundo, nudíssimo olhar,

maior do que o tempo no acre sopro desta

solidão a que me arrojam. Tudo, pelos meus

sentidos, se mede. Só essa medida é a verdade,

como exílio, peso ou lua, sede de orvalho,

oculta na luz ou divina úlcera do desejo.

És o que em mim se transforma, consciência

do sonho, erro, secura, lamento ou palavra,

fogo carente na desarmonia das águas, cor

que nos teus seios deiscentes se não esgota.

Possuo o futuro – só a imagem não mente.

 

Ah, Nausica, meu tacto errante, desenhador

dos deuses, de que astúcias se faz o pensamento?

 

De “ESTÁTUA DE SAL

 

 

Tens fome, meu louco.

Orgulha-te da alma

que ninguém te oferendou.

 

Tens frio, meu louco.

Brame na ponta do braço

o pássaro imaginado

que em ti emigrou.

 

Tens sonho, meu louco.

Escreve sentenças. Ri

das moscas. Fala do silêncio

que em ti se inundou.

 

Tens ódio, meu louco.

Ambigua o olhar

que ninguém te embruxou.

 

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