Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Napoleão Valadares


 

Nhemboçaetá
 

 

Num passo apressado a moça atravessava a praça. Professor Silveira, da janela, a observava vindo, rumo reto. Blusa branca, saia azul, o uniforme do colégio. Cabelos ao vento, Zinha não era tão bonita, mas dona de simpatia. Voz suave, meiga, educada. A beleza da simplicidade. Um sorriso natural freqüentava aquela boca de dentes alvos. Mas vinha séria, fisionomia carregada.

O professor a conhecia desde pequena. Crescera brincando ali pela praça. Agora devia ter seus dezesseis e estava de namoro com o índio Moacir, que chegara há pouco para a cidade.

E vinha. O professor tirava uma linha no seu andar, no balanço dos peitos. Sempre apreciou seios durinhos assim como os de Zinha. Nas aulas, muitas vezes, esquecia o que estava falando, perdia o fio da meada, por se distrair contemplando os peitos de alguma aluna.

Chegava. Meio afobada, apreensiva. Um quê de angústia por ali. Doença em casa? Não, porque aí tinha que procurar era o Diomedes da farmácia. Esse era quem, em casos de doença, saía correndo para socorrer, levar remédios, aplicar injeções.

Cumprimentou numa boa-tarde acanhada, olhos para o chão. Assunto sério rondando, de se notar. O professor, voz acolhedora, pôs-lhe um sorriso de bondade. Fizesse a fineza de entrar.

Mas não, agradecida. Vinha era pedir um favor, se o mestre pudesse, de lhe dar o significado duma palavra.

Tanto desespero para saber o significado duma palavra... Não tinha dicionário? – pensou Silveira. – Mas então dissesse.

– Mestre, é um nome que Moacir... ele me chamou desse nome, disse que eu sou... que eu sou uma grande... ou que eu tenho uma grande...

Professor Silveira lembrou-se de Guimarães Rosa, riu por trás do bigode branco, perguntou:

– Por acaso foi de famigerada que ele te chamou?

– Foi não. Outro nome. Vim aqui pra saber, mas não tenho coragem. Medo de ser o que estou pensando...

Aí o professor aveludou a voz, olhou-a com ternura e pediu:

– Diga, Zinha. A mim você pode dizer com toda confiança. Fica tudo aqui entre nós dois.

– Bem, então vou dizer. Mas se for o que estou pensando, o senhor me desculpe. Ai, eu morro de vergonha. Se for o que estou pensando, eu juro que vou dar um fora naquele bugre. Se for, não quero mais saber de namoro com um trem desses, vou dar o maior chute nele.

– Então diga, Zinha. Pode dizer sem cerimônia. De que foi que ele te chamou?

– Ele disse que eu sou uma grande... ou que eu tenho uma grande... Não sei se sou ou se tenho, porque ele fala enrolado, engrola, mistura língua de índio com a da gente.

– Sim, mas fale a palavra. Uma grande o quê?

– Nhemboçaetá.

– Que você tem uma grande nhemboçaetá, não, isso não – o professor imaginava que Zinha não devia ter nada grande –, que você é uma grande nhemboçaetá, isso sim, pode ser, pois nhemboçaetá é uma palavra tupi-guarani que significa vigilante. Nhembó quer dizer fazer-se; eçá, olhos; etá, muito. Nhemboçaetá é tornar-se vigilante, ficar alerta, vigiar com muitos olhos.
– Ah! Então é isso?
– É. Mas me diga uma coisa. Por que foi que o Moacir te chamou desse nome?
– Ele veio com pegação, esfrega, bolinagem, e eu tirei a mão dele pro lugar dela. Aí foi que ele falou isso...
– Pois então fique tranqüila e continue nhemboçaetá. Você deve ser sempre uma nhemboçaetá, uma vigilante. Toda moça deve ser, pra se preservar, preservar o nome, a honra.
Zinha reteve o corado. Ar de paz e aquele sorriso natural. Agradeceu, despediu-se. Não era nada demais. Fazer-se muito vigilante, vigilante com muitos olhos. Nada do que estava pensando... Moacir era um inocente, mas mesmo assim ia dar um fora nele. Fosse chamar de nhemboçaetá as índias de sua tribo.


 

 

 

 

 

08.07.2005