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Miguel Sanches Neto




Festejos do poético
 


 

Dedicar-se à poesia e não a um estilo poético é a missão assumida por Antonio Carlos Secchin, cujos poemas reunidos aparecem somente agora, depois de 30 anos de produção – Todos os ventos, Nova Fronteira: 2002. Sua atuação como professor de literatura e crítico de poesia lhe deu uma abertura para todas as formas poéticas, que ele pratica como caminhos possíveis para a literatura, que pode estar tanto na prosa mais pedestre quanto na lírica com aspirações de sublimação metafórica. O poeta é, para ele, um conciliador permanente de contrários: de um lado, poemas satíricos, de outro, solenes sonetos; o verso tendendo para experiências concretas ou carregado de ressonâncias românticas; a poesia ligeira convivendo com experiências mais complexas e extensas; o biografismo lírico e a discussão aforística do fazer poético. São estas janelas opostas, dando para paisagens diferentes, que encontraremos em um livro marcado por uma profunda aceitação do outro, um outro visto como possibilidade de ser um eu/linguagem.

Se, como crítico, a poesia existe para Antonio Carlos Secchin, como poeta, a crítica também conta para ele. Distante da intransigência estética dos poetas-críticos, que circulam dentro de um conceito artístico tribal, Secchin tem um interesse visceral por todas as possibilidades de abordar a poesia, esta arisca amante, sempre provisoriamente travestida.

Sua condição de crítico está presente em cada poema, pois, a todo momento, ele revela seus recursos de referenciação. O volume tem como portal uma série que vai do romantismo alterado pela própria condição sexual do poeta – agora um dândi erotizado que visita seu amante ("É ele!") – à defesa de uma expressão mais coloquial no muito bem realizado "Colóquio".

Este primeiro conjunto chama-se justamente "Artes", no plural, para marcar a tendência múltipla da figura do poeta, que canta a mulher amada e também o homem amado, dando assim a tônica totalizadora de uma concepção que não quer renunciar a nenhuma forma expressiva.

Mesmo rendendo homenagem a um místico como Cruz e Sousa ("Cisne"), Secchin não deixa que o poema siga o caminho de ascese metafísica ou algo mais recorrente ainda na poesia contemporânea: a ascese artística, promessa de afastamento da vida pela prática da arte pela arte. Estamos diante de um poeta carnal – mesmo quando ele incorpora tópicos estéticos, pois a sua é uma relação física, corporal, com a tradição poética.

Com sua verve irônica, ele cria a Academia dos Poetas Infelizes, uma agremiação de azedos juizes cuja existência se justifica pela negação do outro. As sentenças depreciativas desses censores aparecem em dísticos memoráveis que desvelam preconceitos correntes no centro do campo poético:

Este não vale. A obra não fica.
Faz soneto, e metrifica.

E este aqui o que pretende?
Faz poesia, e o leitor entende!

Aquele jamais atingirá o paraíso.
Seu verso contém a blasfêmia e o riso.

Mais de três linhas é grave heresia,
Pois há de ser breve a tal poesia.

[...]

Poesia é coisa pura.

Com prosa ela emperra e não dura. (p.26)

 

A recorrência de tais chavões tem transformado a produção brasileira em um repetitivo discurso de negatividade, pois a estética do não se sobrepõe à do sim. Ao retratar estes censores da modernidade como falidos e infelizes monarcas ("E em meio a gritos de gênio e de bis / cai no sono e do trono o Poeta Infeliz"), Secchin rompe com todo um aparato crítico construído sobre o signo da incompreensão, concebendo a poesia como uma festa onde cabem todas as formas de ser.

Um dado externo ao poema, mas extremamente relevante para a leitura que estamos fazendo aqui, é que o autor dedica dezenas de seus textos a poetas e amigos, pertencentes a correntes as mais diversas – da solenidade elegíaca de um Ivan Junqueira ao poema enodoado de elementos prosaicos de um Ferreira Gullar, para ficar apenas em dois grandes nomes. Ao reunir em seu livro, por via da homenagem, atores de sua vida pessoal, ligados ou não à literatura, e estilos e poetas antagônicos, de um Álvares de Azevedo, recuperado em um momento de boemia marcado pela presença sombria da aids, a um legado concretista (presente em "Itinerário de Maria"), o poeta pensa a crítica, nos domínios da poesia, como uma possibilidade de agregar vozes e não como um exercício da negação de identidades. Secchin muda completamente a imagem do poeta-crítico, que abandona sua casmurrice de teorizador em causa própria para transformar-se no anfitrião da boca livre que é o festejo do poético.

Poesia como alegria de ser – esta a verdade implícita nestes conjuntos de poemas que passam de uma estação a outra, abortando qualquer idéia cronológica ou evolutiva. O poeta não deixou de ser cultor de tal ideário para passar a outro. Ele se vale de todos os disfarces neste animado baile de máscara que é a palavra em estado de poesia. É um eu que se dispersa, se dissemina, recusando concentrar-se em uma identidade com contornos definidos.

Em um de seus aforismos desentranhados de seus livros de crítica, ele revela o ideal que deve nortear todo criador autêntico:


O grande artista relativiza as leis do estilo em que se inscreve; cabe aos menores acreditar demais em tudo aquilo. (p.78)
 

A poesia é mais profícua quando relativizada, manifestando-se na forma plebéia, mas nem por isso menos digna, da prosa mais próxima do ferro – a crítica, alçada à categoria de metal reluzente.

Naquilo que, para os outros, há apenas prosa, o poeta lê poesia, seguindo Manuel Bandeira, que nos ensinou a técnica de desentranhar poemas de notícias de jornal, lição retrabalhada por Secchin em "Aviso", poema extraído de um inexpressivo anúncio do Jornal do Brasil de 1969:

Desfiz noivado
vendo sem uso
almofadas soltas
jogo
mesinha mármore rosa
cama sofá arquinha

 

A pungência poética do anúncio vem da vida conjugal que poderia ter sido e não foi. O verso dramático é o segundo – "vendo sem uso" – que nos aponta para o vazio e para a inutilidade de um amor que não chegou a deixar marcas nos objetos nos quais ele devia ter sido conjugado.

O enlace se dá, em outro poema ("Com todo amor..."), no livro usado que o poeta compra num sebo com uma velha dedicatória de 1939, em que uma declaração amorosa, mesmo quando se perdeu seu destinatário, continua pulsando no livro resgatado pelo colecionador: "Não se percebe o nome, está extinta / a pólvora escondida da palavra, // na escrita escura do que já fugiu. / Perdido entre papéis de minha casa, / Amaro ama alguém no mês de abril"(p. 41). Um dos mais belos sonetos da língua, este texto serve de contraponto, apesar das diferenças de estilo, para os objetos intocados dos noivos que se separam.

Eis um autor que nos comove, sem deixar de ser analítico. É que a poesia de Secchin tem um poder crítico não pelas referências eruditas que incorpora, mas pela lição de abertura que o poeta exercita, libertando-nos de preceitos intransigentes. Se esta é um opção pós-moderna, como quer Alfredo Bosi nos comentários que acompanham o livro, ela vai além de um espírito de época, é antes uma ética literária.

Para o leitor, um ou outro conjunto de poemas terá mais a dizer, mas para a poesia brasileira o que realmente conta, antes de mais nada, é esta alegre e humana lição de alteridade.
 



Secchin
Leia a obra de Antônio Carlos Secchin