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Miguel Sanches Neto
 

Cidades mortas - Um Cânone Tropical 10


14.06.2001

 

O elemento distintivo da poesia de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) é a solidão, um conceito que ultrapassa as questões geográficas, devendo ser entendido na sua acepção metafísica: o homem é por essência um ser solitário devido à distância intransponível entre seu corpo e sua alma, cabendo-lhe viver em forma de lenda os seus desígnios mais íntimos.

Não é acidental o fato de o poeta ter nascido em Ouro Preto e vivido em Mariana e outras cidades do interior mineiro, afastando-se do país que se modernizava. Com este isolamento ele conseguiu dar status medieval às velhas cidades barrocas, uma espécie de correspondência urbana para as tendências noturnas de sua lírica mística: “Noites de luar nas cidades mortas, / casas que lembram Jerusalém” (p.102). Esta Minas habitada extemporaneamente é uma pátria destacada do Brasil que se entregava ao materialismo de seu destino social. Neste universo, a igreja é o elemento geográfico central e a vida da alma se sobrepõe à do corpo, vivendo a população à sombra dos tempos idos, das grandezas perdidas e das pessoas desaparecidas, num profundo estado de prostração religiosa.

Há um clima sufocante nesta paisagem cheia de montanhas, em que o homem, sentindo-se desconectado de paisagens extensas, barradas pelas cadeias rochosas, vive uma ligação mais intensa com o infinito. De uma certa forma, esta geografia reproduz o traçado arquitetônico das igrejas góticas, projetando os olhares humanos no abismo celeste, numa comunicação mais radical com os mistérios do universo. Esta tendência para o imaterial é aguçada pela própria gramática do barroco que, em cada casa, em cada igreja, expõe a morte como símbolo diário e doméstico. A visão das cidades mortas, maiores do que as que estão vivas, leva a um diálogo místico que é quase inevitável para quem se identifica com aqueles lugares de nosso país e de nossa história.

O misticismo, portanto, não é apenas um dado pessoal do poeta, mas uma construção coletiva. O poeta se confunde com as igrejas do lugar, vivendo uma disposição para o elevado, confessada em poema de Pastoral aos crentes do amor e da morte: “Minh’alma é a torre de uma igreja / que tem um sino sempre a dobrar”. O sino e seus badalos, presenças tão fortes nestas cidades mineiras, levam a alma a um transe religioso, abolindo com seus sons a vida imediata.

Sendo um mecanismo cronológico, ele marca um tempo místico, cíclico, que se repete infinitamente. Alphonsus de Guimaraens explora este tema em “A catedral”, um de seus mais belos poemas, onde a mudança da paisagem vai sendo acompanhada pelas ressonâncias do sino, que se intensificam com o passar das horas, embora o refrão continue o mesmo. O poema é composto em quatro tempos: manhã, meio-dia, tarde e noite. Primeiro o sino canta, depois clama, chora e por fim geme a sua mensagem monótona, mas esta mudança se dá no receptor, comovido com a chegada da noite:E o sino geme em lúgubres responsos:

“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” Há aqui um estribilho tão significativo quanto o do famoso poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, em que este animal responde às inquietações do poeta com a invariável frase “Nunca mais”, liquidando as ilusões humanas. Ao repetir o seu “Pobre Alphonsus!”, o sino está dizendo a mesma coisa, dirigindo-se a um interlocutor definido. É o declínio da condição humana visto na unidade de um dia. Alphonsus de Guimaraens se incorpora à paisagem destas cidades barrocas, desatualizadas em relação ao resto do Brasil, e vive nelas como exilado em sertões metafísicos, descuidoso da história contemporânea. O poeta vislumbra assim uma correspondência para a sua opção, pois urbe e eu vêem-se em profundo estado de solidão. Sentindo-se velho (“Nunca tive mocidade. / Nasci mais velho do que a lua”, p.98), ele se concebe habitado por uma população morta, tal como a cidade se lhe afigura um campo santo: “toda a triste cidade / é um cemitério” (p.92). Biograficamente, o outro episódio importante para entender sua poesia é a perda da amada Constança, filha de Bernardo Guimarães. Alphonsus nunca se conforma com a morte da jovem, que o separa, a ele que tinha a propensão para a mitificação, definitivamente do tempo atual. A partir deste episódio, tão traumático, o poeta se volta para o passado, que é o tempo de uma felicidade agora impossível. Sua vida transcorrerá sob o signo da morte e seus poemas serão um “evangelho do aqui-jaz”. A amada está na própria santa do altar, tão pálidas as faces das duas.

E é no centro do altar poético erguido por Alphonsus que esta mulher se encontra. A sua cor branca tem conexão com a lua – outra imagem recorrente em seus poemas. A luz lunar é fria, distante, solitária na noite. O poeta descobre nela a imagem da amada ausente e presente, bem de acordo com esta concepção fantasmagórica da existência. A lua também está relacionada à memória. Ela funciona como ponto de contato entre o ontem e o hoje, e mitiga a solidão e a saudade daqueles que se sentem presos a uma outra era. Um sentimento forte que percorre a poesia de Alphonsus de Guimaraens é o da necessidade de cultuar os mortos, de tirar-lhes do esquecimento. Assim, a lua é mais do que uma imagem que comparece em seus textos noturnos, é a própria essência do ato poético, por ser um símbolo da memória reunificadora.

Sim, reunificadora. Pois há uma linha divisória entre o tempo histórico do poeta e o tempo mítico, transformando-o num ser cindido:
 

Viver com os olhos fitos no passado
tem sido para mim a vida agora.

 

A existência destes dois tempos implica em dois seres e em dois espaços. Contra a cidade dos homens, o espaço real de todos os dias, o poeta cria a sua cidade medieval, uma lenda que ocorre no céu: “A abóbada celeste / que se reveste / de astros tão belos, / era um país repleto de castelos”. A sua verdadeira cidade não está na terra, mas na geografia mítica dos símbolos siderais, continente das coisas eternas. É lá que o poeta quer residir e, nesse sentido, ele se considera um lunático. Toda a sua poesia está construída sobre esta consciência dolorosa da cisão, que só é anulada tragicamente. Este o drama de Ismália, que queria duas luas, sem saber que uma era apenas miragem:
 

Quando Ismália enlouqueceu,
pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
banhou-se toda de luar...
Queria subir ao céu,
queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
as asas para voar...
Queria a lua do céu,
queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
seu corpo desceu ao mar...

 

Fica aí representado o drama íntimo do próprio poeta, que se sente duplamente atraído por dois elementos distintos, numa equação que só pode ser resolvida com a morte, quando a parte terrena do ser libera a alma para seguir ao encontro desta cidade celeste.

Alphonsus de Guimaraens, em “Brasão”, revela sua dupla origem: de um lado pertence a nobres e de outro a pobres, vendo-se a um só tempo como rei e mendigo. Em sua história armorial há um brasão com a imagem de um campo de neve onde agoniza um coração. O brasão já traz a idéia de antagonismo: morte e vida, frio e quentura. Com esta dupla ascendência, o poeta não se encontra em nenhum dos dois grupos, tendo que viver na solidão dos seres dilemáticos que adiam para o além sua felicidade: “mas a dúvida põe-me alucinado... / Se encontro o céu deserto como a terra!”

 


Alphonsus de Guimaraens
Leia a obra de Alphonsus de Guimaraens

 

 

 

Inocência, foto de Marcus Prado

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Roberto Gobatto