Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

Duas vozes do Recôncavo:
Damário da Cruz e Carine Araújo


 

A possibilidade
de arriscar
é que nos faz homens.

Vôo perfeito
no espaço que criamos.

Ninguém decide
sobre os passos que evitamos.

Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos.

Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.


(In Todo risco, de Damário da Cruz)

 

São muitos os “eus” que povoam o universo lírico do poeta Damário da Cruz, em seu livro Segredo das pipas, publicado sob os auspícios do Banco Capital, única instituição financeira do nosso Estado, a promover o universo das artes na Bahia.

Esse belo livro, ilustrado pelo mago Fernando Oberlaender, é pleno de beleza e candura. Nesses tempos em que falar de poesia parece uma temeridade, abraçar o ofício de poeta periga de se enquadrar no universo dos “desvairados”, após o poeta lavrar com o suor do seu rosto o fruto do seu trabalho, o qual poderá ser fatalmente excluído e execrado pela corriola que detém o poder de manipular a cultura desses tristes trópicos, abaixo da Linha do Equador. Basta que se seja poeta de verdade - e isto o poeta Cruz o é.

Sua criação inclui versos duros que atingem o alvo de toda essa desordem instaurada no país pela gangue palaciana. Para essa gente, poetas só são “os zezés de camargos e lucianos cantando dor de corno”, ou “os gilbertos gils da mediocridade”, que lambem os sujos sacos e aceitam suas malas de dinheiro como forma de patrocínio:

Quanto mais eu sonho
com Cachoeira
mais amanheço em Nove York

 

Quem o diz é Damário.

Poetas vivos brasileiros não passam de cerca de oito mil num universo em que a totalidade da população brasileira atinge a casa dos cento e oitenta milhões de habitantes. Mas aqueles que com o seu sacrifício adquirem o pão nosso de cada dia com a sua poesia não chegam a quatro ou cinco.

No entanto, contrariando esses dados de uma sociedade perversa e neoliberal, está estabelecido na estrada desse campo literário o poeta cachoeirano Damário da Cruz, que há trinta anos faz poesia de primeira plana, alheio à safadeza capitalista.

Conheci-o em décadas passadas, quando com Daniel Cruz Filho e meu amigo Márcio Salgado, poeta também lá de Monte Santo, autor de Indizível, lançaram uma coletânea na Facom, ainda no bairro do Canela, dali o poeta Dámario saiu diplomado.

Da Cruz já viu o mundo. Fotógrafo premiado, percorreu vários países captando na lente de seu olhar paisagens e gentes. No Pouso da Palavra, em sua terra natal, mantém um espaço cultural, abrigando conterrâneos e turistas, ávidos por cultura genuína, brasileira. O poeta faz parte da irmandade dos membros do grande templo da linda sacerdotisa Fon, a nossa saudosa e eterna Luiza Gaiaku. E evocar a cidade heróica sem ligá-la a Damário da Cruz, que tanto canta sua aldeia, é cair no lugar comum.

Damário é um poeta paradoxal, dentro da síntese de seus versos, indicadores de brilhos e imantação cuja poesia sintética eclode lírica em meu coração.
 

Enfeitem
todos os bregas da Montanha
todos os prostíbulos do Maciel.

Ornamentem
de camisinhas de Vênus
e ampolas de antibióticos
os pequenos salões de espera
os grandes quartos de amor.

Nas janelas
é preciso estender
as calcinhas perfumadas
de pinga e gozo,
é preciso estender
os lençóis manchados
de sangue e choro.

Nas portas
é fundamental afixar
o preço da nossa esperança
e a hora sempre retardada
da comida na mesa posta.

(Pequeno Fabrico)

 

O livro Segredo das Pipas, segundo Cristina Rodrigues, “[...] é servido em cinco momentos poéticos que representam, através de unidades temáticas, o processo de exposição da vida explicitada do homem, que empresta essa sua vida e seu corpo para deixar vir à tona a voz do eu-poético”.

Em “O homem revelado” sete poemas abrangem o universo do ser humano em que os sonhos e a realidade se confrontam em recordações, desnudamento e revelações:
 

(Se não for possível
em muitas manhãs)
rouba teu filho
nas tardes de domingo.

E na fala mais simples
conta no ouvido pequeno
o segredo das pipas,
os caminhos dos duendes,
as formas das cidades,
o mistério dos amores...

E não te preocupes.

Sobre as coisas ruins
muitos tentarão
sem êxito ensiná-las.

(Segredo das Pipas)

 

Pássaros e pipas alçam vôos, cruzam destinos, levam mensagens povoadas de esperanças:
 

Telefono para o poeta
Daniel Cruz Filho.

Sua amada fala
numa voz de sonho:
- Meu amor saiu pela janela
no sol da manhã,
e só retornará em hora duvidosa
quando a liberdade dos meninos
é lavada nos banheiros.

(Recado aos pássaros).

 

Extraído desse belo livro, Segredo das Pipas, que mais se parece com um libelo de liberdade, um canto de amor aos homens e à vida, há, na segunda parte, a seção “Do tempo reinscrito”, composta de sete poemas em que a tentativa de condensar o próprio tempo torna-se tarefa para o autor e nos quais de maneira agônica os seus versos se delineiam como mandados extraídos de uma linha invisível onde o poeta Damário da Cruz tenta condensar o mundo. Dessa parte extraímos o sintético “Cozinha Diária”:
 

Acorda
e prepara a comida
do teu sonho.

Teu desejo
não mora longe
e a vida
no teu sonho
te estabelece.


 

* * *
 

Continuar a falar de poesia nesses tempos de barbárie em nosso país, ceifando milhares de vidas inocentes, é quase uma ousadia. O fazer poético perpassa uma entrega de corpo e alma, uma espécie de renúncia, semelhante ao que Santa Teresa de Ávila (1515 – 1582) cantou: “Nada te inquiete, / nada te assuste; / pois tudo passa, / Deus nunca muda. / A paciência / alcança tudo. / Quem Deus possui / nada lhe falta. / Só Deus nos basta.”.

E quando um poeta como Carine Araújo vem a lume, mostrando o seu labor poético, no céu surge mais uma estrela a brilhar. Então, a poesia renasce, muda de tom, cria ritmos, encanta nossos ouvidos e se acomoda em nossos corações combalidos de tantas desesperanças.

De Muritiba, no Recôncavo Baiano, região de vates valorosos e ternos ao meu coração: Castro Alves, Mateus e Dadinho, Lui Muritiba, Damário da Cruz, João de Moraes Filho e tantos outros, chega-nos a poesia dessa moça, impregnada de um estilo próprio, de um jeito novo de cantar o mundo que aos nossos olhos arde em chamas. O poeta alemão Goethe costumava afirmar que “poemas são beijos que a pessoa dá ao mundo; mas de simples beijos não nascem crianças” . A poesia de Carine Araújo ganhará decerto o mundo, terá muitos filhos publicados, pois tem dicção própria e é encharcada de ternura, adornada de setas de fogo a flechar nossos corações de leitores, ávidos por uma poesia que seja de primeira plana, que tenha marca e se insira, sem pedir licença, na seara da literatura que se produz nessa terrinha, repleta de falsos poetas e fazedores de versos quebrados.

A poeta muritibana tateia nessa longa estrada, distribuindo seus versos, tentando mudar a face perversa deste mundo, e que, como a poeta maior da Bahia, Maria da Conceição Paranhos, afirma: “Tebas, tem Cem Portas!”. E, daqui do meu canto, imerso em torvelinho, engolindo sapos ao amanhecer, rogo aos deuses que a poesia de Carine Araújo seja sempre eterna, perene, que se afirme e inunde esse mar da Baía de Todos os Santos com as águas do Rio Paraguaçu, e que muitas portas se abram e que em breve sua obra seja impressa, distribuída por Pindorama e o mundo, em definitivo, para engrandecer a galeria dos verdadeiros poetas baianos. Saúdo-te, com alegria, minha irmã, “Bathé buru uaá orê guaracy, guajaná!”. Eis alguns poemas de Carine Araújo:

 

Poema de aniversário

Passei muito tempo acreditando em átomos
Vendo Deus onde não havia
Vendo diabo onde havia deus
Não nasci de nove meses
Nem de sete
Só duas décadas depois
Abro os olhos
Ver todo
Saber tudo
Querer tudo
Um bebê
Me pegam pelo braço
E me esmurram a cara
Choro
Mas estou vivo


Procissão

A imagem vai seguindo
Entre casarões dourado-desbotados
E os milagres
(Pecados?)
Vão ficando no caminho
Como num quadro de Rony Bonn


Antes da metade

Elefantes engaiolados
dentro de uma mente insana
Que trilha caminhos sem saída
Comem lixo desnatado
Xorume light, diet, cool
E por um instante nessa noite
Em meio a delírios desejados
Parece que há vida atrás das paredes
Pulsando como um conto de Poe


Diadorim ressurrecta

Abriu-se a Cachoeira das volúpias
A febre que me esquenta a pele
Já não vem de dentro
Conquista-me pedaços
Bandeirante
Finca no espírito
Ávido por propriedade
Hoje – não – sou dona de mim


Lugar Nenhum

O descanso de tuas palavras
Tem uma luz mansa
De abajur
Frágil, intocada
Luz, no leve perpassar do tempo
Embaraçando cabelos
Desatando mentes
Cá na imensidão do mundo


A rebeldia que nos alimenta
Vem talvez do fel
Derramado pela serpente adâmica
Vem talvez da morte
De heróis que não se sabiam
Vem talvez da dor
De crianças desnascidas
Vem talvez de nós
E dessa vontade incontrolável
De ser


 

Leia Damário da Cruz

 

Leia Carine Araújo

 

 

 

 

 

 

14.10.2005