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Marcelo Moraes Caetano


 

Reflexãozinha


Se dormir bem é o segredo
fácil para um bom dia
de trabalho e amor,
morrer bem há de ser
a raiz de uma boa vida
sem mordaça, nem medo,
sem morte
(sem amor em segredo)
sem corte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

Marcelo Moraes Caetano


 

Mancha invisível


Eu posso segurar com uma só mão
todas as minhas mágoas de luxo, como sinos,
tangendo sem se encravar no coração
porque são pingentes de ouro num cordão
para meninos?

Fora do coração, mágoas não passam de cinco,
à moda de dedos duma mão aberta em adeus.
Enquanto guardadas, mágoas esperam que o trinco
se rompa definitivamente, libertas dos seus
grandes apegos, sem dobra nem vinco.

Sobre a mão que as guarda, os olhos fitos
como que presos numa liberdade sonora tal e qual.
O dobre dos sinos é desenhado por atritos
Que o badalo procura no cobre, sonho de cristal.
E o mesmo sino badala e se cala convocando-nos ritos.

Assim é a liberdade das "mágoas"
passada na cachoeira, asas do amor:
Lavando-se com o riso das águas
Que se ajoelham como a dama indolor,
desfaz "dores" e "cores" sob a saia, mil anáguas...
E voa no ouro do pássaro, que nem espera o Sol se pôr.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

Marcelo Moraes Caetano


 

Reencontro


Todo fim de tarde, eu me aguardo no portão.
Quando eu chego do trabalho, antes de me lavar,
sou eu que me abraço, que me beijo, que me olho.
Às vezes me rejeito
(como se tivesse o direito
de me rejeitar).

E quando entramos abraçados, e a luz da sala
acende, sou eu que preparo minha janta,
que rego minha planta,
que desfaço minha mala,
que me ajoelho para a santa,
que jogo fora o que já não adianta,
e preparo a bagagem para viagens com escala.

No dia de festa, sou eu que me comemoro,
sou eu que me dispo e me visto,
me banho e perfumo e penteio,
e não deixo pendente nenhum desaforo
nem próprio nem alheio.

Quando voltamos do baile, braços dados,
somos muitos, multidões que se leram.
E então eu descubro que os portões não vieram
à toa, nem o trabalho, nem a janta,
nem a santa.
E tudo são meros recados
que cercam a casa como foliões desanimados
com os vestidos amassados,
a esperar o nascer do novo dia
para, abraçados,
trabalharem seus lápis e roçados:
eu sempre fui muitos homens e mulheres, via
nos olhares, trabalhando, pontes
e fontes.
Desterros e jeitos
ferros e peitos
nãos e vozes
vãos ferozes
crianças em estudo
Mansas. Tudo:
a humanidade
nunca respeitou grade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

Marcelo Moraes Caetano


 

Maternidades


É cabuloso embalar a realidade sozinha:
a realidade é uma criança valente
precisando, urgentemente,
da sua mãe (doce andorinha).

Por isso mesmo, cerzideiras do globo,
plantonistas, professoras, médicas, uni-vos!
dai-vos as mãos, sede palhaços vivos,
encantai a serpente, encarneirai o lobo!

Não sereis mais a velha mãe sem parto,
porque, depois de nascituro, o bebê choraminga,
pedindo (muito além do leite que respinga)
sejam mundo e fantasia eterno berço, peito e quarto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

Marcelo Moraes Caetano


 

A pérola e o lobisomem


Cai a tarde sobre
a minha eternidade estúpida
e todos os pássaros já foram vendidos.

Quem os comprou não foi a menina educada:
foi uma dona com voz de taquara rachada
com todos os sonhos pervertidos.

Todas as folhas têm preço
as nuvens pagam caro o aluguel
para coabitarem no refinado endereço
do céu.

Todas as verdades chiques
foram abandonadas num chiqueiro
cheias de arabescos e arrebiques
ornatos e capitéis dóricos de Dom Filipe III.

Mas no meio de tantos porcos, não chafurda
o ser que rastejou sob a lua cega e surda
para se erguer como um pescador de Vênus
abrindo suas ostras com pérolas e venenos.

Este ser - a quem luz e clareza consomem,
com os pêlos cobertos de lama,
e o corpo cheio da escama
dos peixes libertos - é um sábio lobisomem!

Lá vai ele, espavorido, medo de Sol,
subindo Alpes pontudos na Bulgária,
esconder-se na falha interplanetária
de sua casa, incrustada num vale mongol.

Ergue a preciosa pedra perfeita e redonda
sobre os olhos, com sorriso de rei avaro.
Tem no veludo a sua própria Lua hedionda
a quem se pôs tampouco um preço raro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

Marcelo Moraes Caetano


 

Homem pré-histórico glíptico
(do pré-verbal pré-pedra à apoteose artística
pós-verbal pedra-a-pedra)
(fragmento)



TOMO I

Contar-se-lhes-á caso assaz esquisito e insólito
Sobre a passagem do grosseiro para o apuro esteta:
Trata-se do hoje desenfreado senso de arte monólito
De que o homem sempre foi vitimador e vítima direta.
Não se trata portanto de poema apocalíptico
Desses corriqueiros em minha verve néscia,
Mas antes de procedimento crítico
Em que poetizarei o Neanderthal da magna Grécia.
E nesta breve e confusa exortação
Peço fôlego à Musa Calíope, responsável da Épica
A fim de que meu verso deixe o ser pagão
no domínio de Talia, a irresponsável da Comédia.
Se bem que rir dos fatos nunca é tão mal
Desde que se anulem atitudes pregressas
Pejadas de azinhavre, fogo-de-santelmo e de sal
E com a proa se construam novas promessas.
Enfim, volto ao exórdio mas o que vale agora
É falar sobre a transição do rude Neolítico
Para a fase da apreciação da arte que, na flora,
Deveria ser chamada “a fase do homem glíptico”.


TOMO II

No início de todo este período
Mesmo antes de ter havido uga-buga
Um historiador se mergulha no rio do
Haver ou existir uma tal tartaruga
por nome um tanto eu diria impossível
impronunciável em forma (quero dizer rupestre)
E antes de sua lentidão cavalgar sem nível
Se via sair do mesmo mar onde se adestre
Com pedras verdes meio-semipreciosas
o período em que tudo eram semi-pedras
E os apetrechos e as armas todas ociosas
Mal cortavam água, eram cegas, toantes pedras...
Pois bem a história de repente, já que sai
Do estatuto pré chega aos poucos a meio,
de onde se olha bem fosca para esse bicho-pai
(a tartaruga) que lá de seu formato interveio.
E dela com casco e tudo o primeiro dos quelônios
retratado em pseudoescultura de âmbar
surge a madrepérola à mímese de futuros hormônios
De toda a ouriversaria da pacacidade, furta-cor e branca.
Há de ter sido um broche, um brinquedo ou um brinco
A primeira jóia do homem histórico (digo pré)?
Porque na verdade quem a quis com afinco
Foi remuito a sua companheira criança mulher.
Imitou a tartaruga isso decerto
Com a pedra-corte mesmo sem ferramenta hábil
Para cortar a pedra-beleza foi um tanto mais esperto
O homem dir-se-ia ali o primeiro grande sábio.
Porque a bela jóia-tartaruga de rapidez morosa
Enfeitava a orelha da pré-donzela tanto mais
(Rupestre desgrenhada e extremamente vaidosa)
Quanto de uga-buga chegava a versos ditos celestiais.
Pois assim os elementos agora rudemente historiados
De serem prés correram a meios poemas e supridos
Até chegarem a ser tão pós hipercobiçados
que o que deu arte-poesia deu também mortos e feridos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

Marcelo Moraes Caetano


 

Ao santíssimo
profaníssimo
homem de felicidade:



Briguei com Deus e com o Diabo,
Quebrei a pirâmide e pisei no rabo.
Os dois se irritaram comigo, ai, ai!
E agora, com quem eu fico, ó Pai?
Rápido, essa parafernália celeste
Se arremessa do céu e investe!
(Ó, minha cabeça ex-briguenta...)
E chove, e troveja, e faísca, e venta.
O Diabo deve ter mandado uma piada,
E Deus fez de mim o centro da palhaçada.
Com certeza eu briguei mas foi para aprender
Que Deus e o Diabo querem compartilhar você?
Agora, francamente, em tudo, o que me resta?
O ser humano, a loucura da arte. A festa?
Sem Deus e sem o Diabo faço o quê?
Começo passo a passo a aprender.
Fica bem assim, pessoa humana,
Cafona, chique, sagrada, profana.
Tudo o que houver de humano são
Graceja na rua em oração.
O santo homem que arranca
A missa negra e a missa branca,
Elevando-se. Altar da profundeza
Vai de baixo a cima, vela acesa
Vela apagada sem velas sem
deuses nem diabos harém.
Quero ser pessoa pura
Quero ser pessoa dura
Quero nunca ter a jura
E confiar na lei escura
E na lei clara, ruptura!
Oba! nenhum outro halo?
É contigo mesmo que eu falo!
Pessoa humana, escuta este novo badalo...
Belém, Belém, Belém, Belém, só agora o Senhor me deu
A maior felicidade do mundo, que é o êxtase de ter Coração juiz-réu!

 

 

 

 

 

 

18.04.2006