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Frederico Barbosa



Um tal Lau: poeta integral
 

 

Não descobri a poesia de Lau Siqueira pela leitura de seus livros anteriores. Na verdade, os seus poemas é que foram me descobrindo, aos poucos, de maneira bastante original. Não conhecia o autor, nem sabia se Lau era nome de homem ou de mulher, mas durante um certo período, até parecia que aqueles textos curtos, secos, densos e bem humorados me perseguiam. E pegavam pesado. Eram pequenas porradas poéticas, diretos de esquerda no meu queixo, já tão calejado e um tanto cansado das duas vertentes poéticas que me pareciam predominantes no Brasil contemporâneo: a poesia bem comportada, bonitinha mas ordinária, dos neoparnasianos arcaizantes, que se dedicam a criar requintes postiços e defender o retrocesso; ou a gratuidade retratista ingênua e simplista dos neodrummondianos redutores.

Professor, de repente aprendi com meus alunos a ler Lau Siqueira. Trabalho com milhares deles em um cursinho em São Paulo. Certa feita, uma mocinha me entregou um poema que havia copiado da Agenda da Tribo. Gostei e perguntei de quem era: Lau Siqueira. Em seguida minha querida colega Clenir, professora do mesmo cursinho, mostrou-me um poema que uma aluna nossa lhe havia enviado pela Internet. Gostamos muito e nos perguntamos se Lau era o autor ou a autora. Depois, outra aluna minha, que já havia me surpreendido ao me acompanhar discretamente durante uma leitura de um poema de Paulo Leminski em sala de aula – mostrando que ainda há muitos jovens que decoram boa poesia espalhados por aí – apresentou-me outro poema daquele tal Lau. Adorei. E percebi que algo sério estava acontecendo.

Quando professores informados e interessados em poesia, como a Clenir e eu, começam a ser apresentados à obra de um autor por seus alunos, algo há nesse poeta. Ele está conseguindo se comunicar com esses jovens sem passar pelo filtro, nem sempre inteligente e muitas vezes preconceituoso, da academia, da mídia e da velhice professoral. Fiquei curioso, queria saber mais sobre esse tal Lau.

Na mesma época, lá pelos idos de 2000, comecei a receber uns poemas de Lau Siqueira no meu e-mail. Lia-os sempre com interesse, até que um deles entusiasmou tanto que me provocou a escrever ao poeta parabenizando-o. De São Paulo, pela Internet, descobri então que é um gaúcho da fronteira com o Uruguai que foi se radicar em João Pessoa, na Paraíba. Descobrimos amigos comuns e muitas afinidades poéticas, políticas e existenciais. Tudo por e-mail, a cerca de 3000 km de distância. Encontramo-nos, até hoje, apenas uma vez: em Recife, para onde Lau se deslocou uma noite prestigiando o lançamento de um livro meu. Nessa noite, entregou-me os originais deste Sem Meias Palavras que o leitor tem agora em mãos.

Estendi-me no relato da minha descoberta da poesia de Lau Siqueira porque parece-me muito sintomático de uma mudança de atitude mais do que necessária na mentalidade brasileira sobre a divulgação da poesia. Repito: a poesia de Lau Siqueira não me chegou através dos livros, e sim pela Internet, pela publicação na Agenda da Tribo e principalmente pelo entusiasmo dos meus alunos.

Naturalmente, o sonho de todo poeta é publicar seus livros. Mas quantos poetas, em toda a história da literatura brasileira, tiveram seus primeiros livros publicados por uma editora “de graça”, sem ter que pagar parcial ou integralmente a edição? Ser publicado, ou não, depende, muitas vezes, na “selva selvagem” do capitalismo, menos da qualidade do trabalho (quantos editores têm algum critério sério?) e muito mais da quantidade de “recursos financeiros disponíveis”.

E mesmo quando o sonho se realiza, quantos livros de poesia foram publicados e nem foram registrados pela mídia ou notados pelo público, simplesmente porque seus autores não têm os “recursos sociais necessários”: acesso aos responsáveis pelos cadernos ditos culturais de nossos jornais e revistas?

Assim, escrevendo bobagens sobre o “happy hour” da elite na Avenida Paulista, sobre as flores do bairro elegante de Higienópolis, em São Paulo, ou corolas do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, colocando-se contra o socialismo ou qualquer mudança no status quo, poetas endinheirados e oportunistas vão se consagrando nesse país da desigualdade feroz, enquanto talentos muito mais críticos e pungentes ficam à margem da publicação e da divulgação.

Para esses, dois caminhos se abrem hoje: a publicação de textos nas heróicas revistas, jornais, ou mesmo, no caso de Lau Siqueira, agendas, que ainda publicam poesia – que também têm critérios muito discutíveis – ou a divulgação de seus textos na Internet. A partir do final dos anos 90, a “rede” tornou-se a mais revolucionária forma de divulgação de poesia no mundo, transformando-se no melhor meio de vencer a barreira do desprezo das editoras, da implicância das livrarias e da rasura da grande imprensa. Lau Siqueira é um ótimo exemplo de quem sabe se valer bem dos recursos da “rede”.

Já em 1954, há quase cinqüenta anos, João Cabral de Melo Neto apresentou uma tese no Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo, intitulada Da Função Moderna da Poesia, em que abordava a questão da incomunicabilidade reinante na poesia contemporânea, a dificuldade dos poetas modernos em atingir um público mais amplo para seus textos. A citação é longa mas vale a pena. Vejamos:

A poesia moderna - captação da realidade objetiva moderna e dos estados de espírito do homem moderno - continuou a ser servida em invólucros perfeitamente anacrônicos e, em geral imprestáveis, nas novas condições que se impuseram.

Mas todo esse progresso realizado limitou-se aos materiais do poema: essas pesquisas limitaram-se a multiplicar os recursos de que se pode valer um poeta para registrar sua expressão pessoal; limitaram-se àquela primeira metade do ato de escrever, no decorrer da qual o poeta luta por dizer com precisão o que deseja; isto é, tiveram apenas em conta consumar a expressão, sem cuidar da sua contraparte orgânica - a comunicação. (...)

O caso do rádio é típico. O poeta moderno ficou inteiramente indiferente a esse poderoso meio de difusão. À exceção de um ou outro exemplo de poema escrito para ser irradiado, levando em conta as limitações e explorando as potencialidades do novo meio de comunicação, as relações da poesia moderna com o rádio se limitam à leitura episódica de obras escritas originariamente para serem lidas em livro, com absoluto insucesso, sempre, pelo muito que diverge a palavra transmitida pela audição da palavra transmitida pela visão. (O que acontece com o rádio, ocorre também com o cinema e a televisão e as audiências em geral).

Mas os poetas não desprezaram apenas os novos meios de comunicação postos a seu dispor pela técnica moderna. Também não souberam adaptar às condições da vida moderna os gêneros capazes de serem aproveitados. Deixaram-nos cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as aucas catalãs, antepassadas das histórias de quadrinhos), ou deixaram que se degradassem em gêneros não poéticos, a exemplo da anedota moderna, herdeira da fábula. Ou expulsaram-nos da categoria de boa literatura, como aconteceu com as letras das canções populares ou com a poesia satírica.

No plano dos tipos problemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos obtiveram, foi o chamado "poema" moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a própria ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito.[1]

Duas são, portanto, as saídas para o poeta: fazer um poema moderno que não seja apenas a própria ausência de construção e organização, o simples acúmulo de material poético, e buscar novas formas de comunicação com o público leitor.

Curioso, e não coincidente, é o fato de que alguns dos maiores poetas do século XX, como T. S. Eliot – em 1935 com a peça Murder in the Cathedral –, Gertrude Stein – em 1934 com a peça/ópera Four Saints in Three Acts –, Federico Garcia Lorca – em 1933 com a peça Bodas de Sangre ­–, Samuel Beckett – em 1953 com a peça Esperando Godot –, encontraram no teatro o veículo para estabelecer uma maior comunicação com o público, alcançando um sucesso que suas obras poéticas por si só – por melhor que fossem, e eram – jamais conseguiram ou poderiam sonhar obter.

O mesmo se deu com João Cabral de Melo Neto. Assim como Eliot, Stein, Beckett, Lorca, Genet e tantos outros, João Cabral encontrou no teatro uma ponte através da qual sua poesia pôde estabelecer contato com o público que, sem o suporte da ação dramática, permaneceria distante, intocado. Foi por meio da peça Morte e Vida Severina que o poeta pernambucano encontrou um veículo capaz de superar o abismo que, segundo ele, separa hoje em dia o poeta de seu leitor. Essa ponte, Lau Siqueira encontrou na Agenda da Tribo e na Internet.

Mas é claro que, antes do problema da divulgação, o importante na poesia reside exatamente na construção e organização do material poético, sem as quais não há mídia ou marketing que tornem um poema interessante. A poesia em que não se percebem articulações formais, condensamentos lingüísticos, descobertas originais, não tem nenhum vantagem sobre a prosa mais banal, e não pode, assim, conquistar um público leitor que ainda tem que ser alfabetizado para o poético, para o jogo lúdico das formas. Formar o leitor crítico e lúdico; eis uma missão que só pode ser levada a cabo com uma poesia absolutamente rigorosa, caso contrário sempre há de perder para a prosa mais fácil e mais imediata.

São essas articulações, condensamentos e descobertas, aliados a um bom humor bastante irônico e autocrítico que sobressaem na poesia de Lau Siqueira. Sem rejeitar a experimentação inventiva e rigorosa das vanguardas, principalmente do dadaísmo anarquista de Tristan Tzara, do cubofuturismo de Maiakovski, da poesia concreta brasileira ou da poesia visual do uruguaio Clemente Padin, Lau trilha um caminho infelizmente raro na poesia brasileira contemporânea: o da experimentação sem preconceitos e a busca de uma dicção aparentemente espontânea, mas que é fruto de um intenso trabalho com a linguagem. Lição que nos deixaram poetas como Carlos Drummond de Andrade (nos seus melhores momentos), Manuel Bandeira e a parcela mais engenhosa e inventiva da obra dos “marginais” da década de 70 e do gaúcho Mário Quintana.

A desprentensão e aparente simplicidade da poesia de Lau Siqueira em muito lembram uma das influências explícitas em Sem Meias Palavras: Fernando Pessoa. “O poeta é um fingidor”, escreveu o criador dos heterônimos. Mas tanto se repete hoje este famoso verso, que muitos chegam a acreditar que para ser poeta é preciso ser falso. Esquecem-se "apenas" da continuação da estrofe: "finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente". O poeta parte, portanto, de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade pode ser ator. Só quem tem personalidade poética, como Lau Siqueira, pode ser poeta.

Na poesia contemporânea brasileira, principalmente naquela mais incensada pela mídia – produzida no eixo Rio/São Paulo – abundam os poetas falsos, cheios de ousadias gastas, preguiça disfarçada de espontaneidade, pretensão passando por sofisticação, desleixo com a desculpa do pós-moderno, arcaísmos e purismos neoparnasianos. São falsos, fingidos, não fingidores.

Poucos poetas integrais reviram e revêem a tradição em busca do novo. Conhecendo-a, procuram nela fincar-se sem meias palavras. Conhecendo-se, buscam nas suas dores formas novas de fingi-las, transformando-as em poesia – palavras carregadas de forma e sentido: integrais. “Nada feito nada, / no poema / não há termo meio, / meio-amor, meia-palavra”, já escrevi há uma década. Só quem tem personalidade e coragem para escrever sem meias palavras pode interessar como poeta. Como este tal Lau: poeta integral.


Tamandaré, PE, fevereiro de 2002
 


[1] Obra Completa (1a Edição); Rio de Janeiro; Nova Aguilar; 1994.
pp.765 e 766.


Frederico Barbosa, poeta e crítico literário.
 

 

Frederico Barbosa

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