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Lira Vargas

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Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Alphonsus Guimaraens Filho

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens Sanzio de Turbino, Transfiguração, detalhe

 

 

 

 

 

Lira Vargas


  

REFÚGIO NOS PINHEIROS

 

Ainda sofria a dor da perda de minha mãe. Minhas vestes ainda de luto. A dificuldade de minha vida simples, com quatro filhos, e na precária informação dos anos 50, sabia apenas que os destinos dos portugueses era o Brasil.

Amanheci naquele dia com o peito apertado, mal consegui cumprir com as tarefas domésticas, talvez quisesse atrasar as horas. Alberto com quinze e Augusto, com dezesseis anos, meus dois filhos iriam naquele dia partir para o Brasil. Terra distante, a terra prometida onde o ouro brotava a flor da terra.

Foi chegada à tarde, arrumava suas malas com os mesmos cuidados de quando pequeninos iam para a escola, arrumei uma maleta com bolos, doces etc. como se aquela refeição durasse para a vida inteira, como se a viagem fosse breve, como se eles fossem  voltar breve, em minha mente ainda não havia a certeza da longa partida, de dias sem fim de uma saudade imensa.  Eram quatro horas quando a charrete parou em  frente a minha casa e meus filhos já prontos, num silencio triste, seus olhinhos arregalados, como prontos para uma missão patriota. Fomos caminhando até a porta, as escadinhas de barro não cabia todos nós, e de um a um descemos até o portão. O cachorrinho Dic acompanhou silencioso, batia o rabo parecia prever a saudade, parecia despedir. Os dois subiram na charrete, fiz recomendações de cuidados, de notícias, mas que notícias? Se onde morava nem correios tinham, e para onde eles iam, será que tinha? As rodas secas da charrete foram resmungando a força de meus pensamentos “não vá”. No céu as nuvens coloriam os raios de sol. A charrete e foi se afastando lentamente, os dois olharam para trás, eu apenas os olhava silenciosa,  A estrada curta,  logo  a charrete se perdeu numa curva. Nesse momento, segurando o moerão do portão, senti algo sair de meu peito e despencar de meus olhos as primeiras gotas de lágrimas, que inundaram meus olhos de uma dor nunca antes sentida. Uns pássaros voaram no céu em direção a estrada, olhei para o horizonte e montanhas embaçadas cortaram minhas vista, e pensei em que horizonte estaria o Brasil? E num gesto infantil, corri até a  estrada, dei conta naquele momento da perda de meus dois filhos, corri como se a chamá-los poderia trazê-los de volta, corri, corri, e quando cheguei na curva, avistei uma poeira ao longe, imaginei que pudesse ser da charrete, retornei até o portão, e tentei ser rigorosa, e num gesto de mãe autoritária  gritei em meus pensamentos “Alberto e Augusto... voltem” mas esse pensamento de nada valeu, subi com dificuldades os três degraus até a porta da sala, num silencio triste, passei pelo quarto deles, e vi as camas vazias, fui até a cozinha e o fogão de lenha ainda em brasa, e na pequena mesa, as canecas do café tomadas às pressas e os farelos de bolo ainda pela mesa, as lágrimas faziam aquelas cenas turvas. Fui até a janela do quintal, o galo cantou tristemente, bateu as asas e foi embora, olhei os matos, as árvores, pareciam Ter crescido, senti-me pequena naquele instante, passei as mãos em meus seios, e lembrei de quando os amamentei, passei as mãos em meu ventre, estava gelado, parecia que havia um buraco que vazava até minhas costas, chorava baixinho enxugando as lágrimas na velha saia preta, luto de minha mãe. Perambulei pela casa, que como as árvores, ficou enorme, era a saudade em vida, enterrar os filhos por morte em vida, tinha o mesmo sabor, um sabor amargo, uma dor sem fim. Minha filha mais nova, não entendia minha dor e perguntou na sua inocência, quando eles voltariam. Nesse momento dei conta da pergunta e da resposta: não sabia. Era assim com muitos patrícios, era assim a dor de muitas mães. Foi assim desde os primeiros navegantes. Talvez por isso os poetas e cantores eram tão melancólicos em suas obras e canções. Voltei até a porta da sala, tentei ir até o portão, mas não tive forças, era tardinha, ainda cedo para ir para a cama, mas fui. Deitei lentamente em minha cama, escondi meu rosto no travesseiro e chorei, chorei muito, tanto, mas tanto que adormeci e sonhei que Alberto e Augusto estavam no navio, o mar batia e os dois estavam abraçados de calças curtas e boné, perto da proa, as ondas imensas ameaçavam o navio, eu estava em outro navio e tentava alcança-los para salvar, nesse momento eles gritavam por mim, joguei uma corda até eles, queria trazê-los para o meu navio, a chuva castigava, a tempestade era terrível, a corda foi até perto de meus filhos, eles seguraram e tentei puxa-los até o meu navio, mas uma imensa onda arrastou o navio deles, gritei, mas gritei tanto que acordei com minha filha e meu marido a olharem pra mim perguntando, e novamente cai num choro de mãe, como se uma parte de meu corpo tivesse sido arrancado e dessa vez não escondi meu choro, chorei no silencio de todos que olhavam aquela mãe sofrida.

A noite chegou, servi o jantar, meu corpo doía muito, meu marido e minha filha foram dormir, acenderam os candeeiros, perambulei pela pequena casa, passei pela cama de meus filhos viajantes e senti vontade de juntar as duas camas e deitar lá, recusei a vontade e fui até a janela, o vento quente trouxe a voz melancólica de um sanfoneiro, e as lágrimas brotaram duplicando as estrelas no céu. Fui até o quarto de meus filhos, pequei duas blusas velhinhas deles, caminhei até os pinheiros ainda sentindo o cheiro deles, dobrei os mais que pude, tapei minha boca para que ninguém ouvisse meus gritos e gritei seus nomes, gritei o mais que pude, quase sufocando meu rosto chorei até que as lágrimas desceram tão quentes que pareciam cortar minha face, retornei até a casa, meus passos agora trôpegos, como uma anciã, mas era a dor que envelheceu minha alma, a dor da saudade de meus filhos.

Fui para a cama, à noite longa, só trouxe recordações de suas vidas, dos sorrisos dos choros, das voltas do pomar com frutas nas cestas, dos banhos de chuva em tardes de verão, das brincadeiras de meninos, dos primeiros passos, dos primeiros dias de vida quando aconchegavam em meu colo, sugavam a fonte de vida tirada de meus seios, das dores que senti para a porta do mundo, num parto de dor e alegria, das noites com meu marido onde sonhei com uma casa cheia de filhos e netos para perpetuar a família, para dar a alegria a minha vida. Nessas recordações, amanheci, a dor doía ainda mais.

Os dias se arrastavam sem nada. Sem notícias, sem esperança, às vezes ficava olhando o caminho e parecia que logo, a charrte traria de volta meus meninos. Mas a esperança se perdia quando olhava para as montanhas lá longe e as lágrimas inundavam meus olhos, e quando não conseguia distinguir mais nada, pensava, assim é o Brasil, nada sei como é esse país, da distância, que nos separou.

E quando a saudade apertava meu peito, a esperança findava com as tardes, ia até os pinheiros, tirava de dentro de meus seios as blusas de meus filhos, e para que ninguém ouvisse, sentia o cheiro deles, envolvia o mais que podia a minha boca e gritava seus nomes, um grito de dor, um grito de mãe.

Hoje, estou com oitenta anos, não posso mais ir até os pinheirais minhas pernas não permitem, não posso mais gritar, minha voz está fraca, ainda guardo suas blusas rasgadas de tanto que enxugaram minhas lágrimas, mas, na cadeira de balanço, quando estou sozinha...ainda posso chorar.

Os pinheiros ainda são os mesmos, ainda guardam meus gritos e minhas lágrimas.

 

 

Hélio Pólvora

 

Artur Eduardo Benevides