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            João Vianney Cavalcanti Nuto 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O sagrado e o romance 
            em O evangelho segundo Jesus Cristo 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O evangelho 
            segundo Jesus Cristo, ao contrário dos romances “históricos” de 
            Saramago, não se baseia propriamente na historiografia, mas no texto 
            bíblico. Contudo não se pode negar que a relação entre o texto 
            bíblico e a obra de José Saramago aborda problemas semelhantes 
            àqueles apresentados pelo texto historiográfico em Memorial do 
            Convento e História do Cerco de Lisboa. Que semelhanças 
            pode haver entre um texto historiográfico e um texto religioso, como 
            é o caso da Bíblia? Outra questão diz respeito aos traços 
            estilísticos-ideológicos próprios de um discurso épico, no sentido 
            de heróico, que é parodiado tanto no Memorial do convento 
            como em História do cerco de Lisboa. Também encontramos esse 
            tipo de paródia de certa concepção de herói em O evangelho 
            segundo Jesus Cristo. Pretendemos, neste ensaio, analisar as 
            semelhanças entre a abordagem do texto bíblico e do texto 
            historiográfico por Saramago – e também a paródia do discurso 
            heróico. Para isto, verificaremos as possíveis relações entre a 
            Bíblia, a História e a epopéia, para, então, analisarmos os 
            processos de estilização e paródia contidos no romance.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A primeira questão 
            diz respeito à noção de verdade e de como alcançá-la, sendo a obra 
            de Saramago bastante crítica quanto à noção de verdade absoluta. 
            Antes de tudo, é preciso distinguir a concepção a relação da 
            História e da memória com a verdade. A Bíblia não é um texto 
            historiográfico; mas, assim como a epopéia, é um texto que tem 
            função de memória. Assim como a História, na concepção de 
            Aristóteles, a Bíblia conta “o que aconteceu”[1] , a verdade, 
            ou mais precisamente, aquilo que é aceito como verdade pelos fiéis. 
            Aqui encontramos tanto a semelhança como a diferença em relação à 
            História. Se a História pretende contar “o que aconteceu” – ou pelo 
            menos a reconstituição, ou interpretação, possível –, essa verdade, 
            no ofício do historiador, precisa ser investigada[2]. Já no mito, no 
            texto sacro e na epopéia (pelo menos em seus primórdios) a verdade é
            revelada. No caso do texto religioso a verdade é tanto mais 
            verdadeira porque sagrada.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Lembremos, a 
            propósito, que a narrativa bíblica, por ser um texto religioso, 
            incorpora diversos mitos, dentre eles, a criação do mundo e do 
            homem, a origem do mal, da dor e da morte; e o mito, como diz Eliade, 
            é uma historia verdadeira. Somente quando temos consciência da 
            formação do cânone bíblico, com exclusão dos chamados evangelhos 
            apócrifos[3] , somente quando conhecemos os trabalhos de tradução e 
            exegese por parte dos teólogos da Igreja, é que a Bíblia adquire um 
            sentido histórico: o sentido de uma pesquisa sobre o passado; ou 
            seja: somente quando pesquisamos é que a Bíblia se torna 
            histórica. Não é esta, porém, a leitura que se faz da Bíblia pelos 
            crentes, que é uma leitura de fé. Vista desta maneira, a narrativa 
            bíblica não é história no sentido estrito do termo, mas, assim como 
            o relato do cerco de Lisboa, não deixa de ser fonte de uma verdade 
            com a qual Saramago polemiza.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em O evangelho 
            segundo Jesus Cristo, a noção de verdade absoluta é 
            constantemente questionada e criticada, desde a interpretação da 
            gravura de Albrecht Dürer, descrita na abertura do romance: “Lá 
            atrás no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, 
            um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. (...). 
            Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma 
            calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao 
            pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, 
            vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como 
            ao tempo se sabia e praticava.”[4] O narrador faz questão de frisar 
            que a Bíblia também não oferece os fatos “como eles foram”, mas 
            versões, como naquela resposta ríspida de Jesus a Maria: “Um filho 
            não trata desta maneira a mãe que lhe deu o ser, farão que o tempo, 
            as distâncias e as vontades busquem para elas traduções, 
            interpretações, versões, matizes que mitiguem a brutalidade e, se 
            tal é possível, dêem o dito por não dito ou ponham a dizer o seu 
            contrário, assim se escreverá no futuro que Jesus disse, (...) 
            Deixa-me proceder, não é preciso que mo peças. (...).”[5] 
            Mas, ao criticar as versões, tampouco se oferece o romance como um 
            portador da verdade absoluta, pois, como acontece nos outros 
            romances de Saramago, o próprio narrador questiona a fala que 
            atribui ao personagem: “(...) razão por que, faltando o seu 
            testemunho, seja lícito duvidar da autenticidade da filosófica 
            reflexão, que quanto ao fundo quer quanto à forma, tendo em conta a 
            mais do que óbvia contradição entre a notável propriedade dos 
            conceitos e a ínfima condição social de quem os teria produzido”. [6] 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ora, questionar uma 
            verdade sacra, mesmo sem querer substitui-la por outra verdade 
            inquestionável, por si só já é uma heresia. E a heresia perpassa 
            todo romance, ao oferecer versões que questionam, ou mesmo 
            contrariam, certos dogmas da Igreja Católica como a virgindade de 
            Maria, o papel do Diabo, a natureza de Deus e sua relação com 
            Cristo. Neste processo tudo o que é sagrado é submetido à crítica, 
            sendo, portanto, dessacralizado. Contudo essa dessacralização não 
            resulta em uma sátira, pois não é intenção do romance zombar do 
            sagrado, mas torná-lo mais humano. Exemplo disto é o questionamento 
            da idealização de Maria. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, 
            Maria é uma mulher comum, oprimida como as demais da Judéia. Um 
            pouco tola, não tem a aquela doce majestade de suas imagens nas 
            igrejas. No entanto, sentimos por certa ternura por aquela mãe 
            adolescente, perplexa com os acontecimentos estranhos relacionados 
            com nascimento do primogênito; e pela mulher madura que custa a 
            compreender e aceitar o destino do filho. Os sucessivos estados de 
            gravidez de Maria subvertem aquela imagem de virgem imaculada, 
            conforme negação explícita dessa pureza idealizada, no trecho que se 
            segue: “Maria está outra vez limpa, de verdadeira pureza não se 
            fala, evidentemente, que a tanto não poderão aspirar os seres 
            humanos e as mulheres em particular (...)”.[7] Nem mesmo é dado a 
            Maria o privilégio de ter sido a escolhida do Senhor: “Então, o 
            Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor só ia a passar, quem 
            estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou 
            que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda 
            lembras de como estas necessidades manifestavam apeteceu-lhe, o 
            resultado foi, nove meses depois, Jesus.”[8] Encontramos aqui um 
            efeito de ironia que advém não somente da informação, como também 
            pelo estilo, completamente prosaico, com que o anjo informa a Maria 
            o desígnio divino, em total desacordo com o tom solene do texto 
            bíblico.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Outras heresias, em
            O evangelho segundo Jesus Cristo, são a natureza e função do 
            Diabo e de Deus, bem como o conflito entre Deus e Jesus. No início, 
            percebemos vagos indícios, que depois se confirmam, de que o anjo 
            que veio anunciar a concepção de Maria é o próprio Diabo. Esta 
            identificação não surpreende se atentarmos para a origem de uma das 
            palavras usadas para identificar o Diabo: demônio. O termo vem do 
            grego daimon, que, na mitologia pagã, era “um espírito 
            mediador entre deuses e homens, muitas vezes o espírito de um herói 
            morto”.[9] Informa Luther Link que “dáimon e daimônion 
            também significavam um espírito perverso, dominador, tendo sido esta 
            a única acepção desenvolvida no Novo Testamento e por muitos dos 
            primeiros padres. Os apologistas alexandrinos helenizados dos 
            séculos II e III, por exemplo, interpretaram os demônios platônicos 
            – que não eram particularmente bons nem maus – como anjos caídos 
            perversos”.[10] 
            Como observa Luther Link, a caracterização maligna dos demônios era 
            uma forma de combater o paganismo: “Assim fizeram com vistas a 
            formar uma nova equação: deuses pagãos = demônios maus = diabos. Tal 
            equação justificava condenar a adoração de deuses pagãos. ‘A coisas 
            que os gentios sacrificam, é aos diabos que sacrificam’, escreveu 
            Paulo”. [11] 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Contudo, a maior 
            heresia, em O evangelho segundo Jesus Cristo, consiste no 
            papel ambíguo do Diabo, um dilema que muito preocupou a teologia 
            cristã. Se o Diabo tem como papel supliciar os pecadores e os 
            hereges, então o Diabo colabora com a ordem imposta por Deus: 
            incube-se, no além, do mesmo serviço sujo dos torturadores da 
            Inquisição aqui na terra.[12] Mas o Diabo é também o adversário de 
            Deus. É exatamente este o significado da palavra satan, em 
            hebraico.[13] A interpretação que prevaleceu é a de que o Diabo era 
            inicialmente um anjo, Lúcifer, que, por seu orgulho, rebelou-se 
            contra Deus e tenta arrastar a humanidade para o Inferno. Em O 
            evangelho segundo Jesus Cristo, o Diabo é um colaborador, mas 
            também é um adversário, pois colabora contrariado, já que é o 
            próprio que Deus rejeita a proposta do Diabo de acabar com o Mal: 
            “quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, 
            Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu 
            és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um 
            tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu 
            acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o 
            Mal (...) Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus.”[14] 
            Assim, o narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo, 
            concordando com Orígenes e Santo Agostinho, entre outros teólogos, 
            mostra que o Mal não existiu sempre: passou a existir com a revolta 
            de Satã. Entretanto, o narrador discorda de toda da ortodoxia 
            católica, ao mostrar que o Mal permanece não apenas porque Deus 
            permite sua existência provisória, mas porque ele assim o exige. É 
            ambíguo também o papel do Diabo, como tentador de Cristo, já que os 
            anos que passa com Jesus no deserto são também anos de aprendizado, 
            em que Jesus, tendo o Diabo como mestre, é confrontado com questões 
            perturbadoras que contribuem para o seu amadurecimento. Este caráter 
            ambíguo do Diabo torna-o menos terrível que a aquela figura criada 
            pelo imaginário medieval. O Diabo de Saramago é uma entidade até 
            mesmo simpática, que orienta Jesus nos seus anos de formação; e uma 
            figura prometeica diante de um Deus despótico. Por isto é que o 
            Diabo, que, segundo Dante, “já foi belo e hoje é feio”, não tem 
            aparência grotesca consagrada pela iconografia medieval[15] : suas 
            aparições, apesar de impressionantes, nada têm de pavorosas.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A imagem de Deus, 
            por outro lado, assusta não pela sua aparência, que, aliás, é 
            bastante convencional: “É um homem grande e velho, de barbas 
            fluviais espalhadas sobre o peito, a cabeça descoberta, cabelo 
            solto, a cara larga e forte, a boca espessa, que falará sem que os 
            lábios pareçam mover-se”.[16] Mas Deus assusta por sua onipotência e 
            despotismo. Como afirma Maria de Magdala, “Deus é medonho”[17] ; e 
            Jesus recorda-se dos seus contatos com Deus: “Jesus viu o deserto, a 
            ovelha morta, o sangue na areia, ouviu a coluna de fumo suspirando 
            de satisfação, e disse, Talvez, talvez, porém uma coisa é ouvi-lo em 
            sonho, outra será vivê-lo em vida.”[18] Diante desse Deus, ambicioso 
            e autoritário, que não hesita em sacrificar seu próprio filho para 
            poder expandir o culto a sua pessoa, é que se revela o verdadeiro 
            cálice amargo de Jesus: a lista de mártires do catolicismo, com seus 
            respectivos suplícios, pois, assim como em Memorial do convento, 
            encontramos, em O evangelho segundo Jesus Cristo, o traço 
            épico do catálogo dos heróis, transformado em um catálogo de 
            mártires[19] . Tão herético quanto surpreendente é o desfecho do 
            romance, quando Jesus se rebela, decidindo enganar o pai, 
            substituindo sua condição de filho de Deus, pela de um simples 
            rebelde contra Roma: “(...) mas, se no lugar dele puséssemos um 
            simples homem, já não poderia Deus sacrificar o Filho (...) Um 
            simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado o mesmo 
            rei dos Judeus, que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes 
            do trono e expulsar os romanos, isto é que vos peço, que corra um de 
            vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem”.[20] Nesse contexto, 
            muda também o papel de Judas de Iscariote, que, de traidor, passa a 
            ser colaborador de Jesus: “Foi então que se ouviu, clara, distinta, 
            por cima do alvoroço, a voz de Judas de Iscariote, Eu vou, se assim 
            o queres”.[21] Naturalmente toda esta versão implica questionamentos 
            perturbadores para os crentes, que estão acostumados a somente 
            repetir verdades tidas como absolutas, e, em sua maioria, ignoram os 
            expurgos realizados na formação do cânone bíblico: o textos 
            apócrifos, com suas versões alternativas. Há, portanto, certa 
            afinidade entre os evangelhos apócrifos –banidos do cânone bíblico 
            por serem considerados heréticos – e O evangelho segundo Jesus 
            Cristo. Mas este, até mesmo por assumir sua condição de ficção, 
            não pretende, de maneira alguma, substituir uma verdade 
            inquestionável por outra. 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A atenuação da 
            superioridade de Jesus:  
            uma profanação delicada 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em Memorial do 
            convento e O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago incorpora 
            elementos estilísticos-ideológicos próprios da epopéia, os quais 
            critica através da polêmica e da paródia. Haveria também esses 
            elementos na Bíblia? Assim como a epopéia, o texto religioso é 
            narrado em tom solene – com pouco clima para a introdução do 
            cômico – e tem função de memória, transmitindo uma verdade sagrada. 
            Incorporando mitos, apresenta o maravilhoso (os milagres), tem como 
            protagonistas pessoas superiores a nós (Deus, os anjos, os 
            profetas, o messias), e também apresenta cenas bélicas, como a 
            batalha de Jericó, ou de grande mobilização nacional, como a 
            travessia do Mar Vermelho. Lembremos, contudo, que O evangelho 
            segundo Jesus Cristo tem como principal fonte os evangelhos – o 
            que não descarta a possibilidade de Saramago ter consultado outras 
            fontes, como os evangelhos apócrifos, o Velho Testamento e livros 
            sobre a história da Igreja Católica. E os evangelhos parecem bem 
            mais afastados da epopéia que as narrativas do Velho Testamento.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A primeira é 
            diferença é estilística: os versos heróicos na epopéia; os 
            versículos nos evangelhos. Contudo, também os evangelhos apresentam 
            o tom solene, próprio para falar de coisas grandiosas e divinas 
            acontecidas “naquele tempo” (“in illo tempore”). Mas mesmo 
            esse tempo não é tão recuado quanto o da epopéia, pois os apóstolos 
            – a quem é atribuída a autoria dos evangelhos – teriam conhecido 
            Jesus pessoalmente. Nem são bélicas as ações do messias. Vejamos, 
            então, em o que os evangelhos teriam em comum com a epopéia, no que 
            diz respeito ao critério aristotélico dos objetos de imitação. Diz 
            Aristóteles que a epopéia tem como protagonistas pessoas 
            superiores a nós. Ocorreria o mesmo nos evangelhos? A resposta 
            só pode ser afirmativa se tivermos em mente uma outra concepção de 
            superioridade, radicalmente diferente do heroísmo clássico, pois 
            como afirma Harold Bloom “nenhum estudioso foi capaz de realizar uma 
            comparação convincente do pensamento grego e da psicologia hebraica, 
            no mínimo porque os dois modos parecem irreconciliáveis”.[22] Se 
            Aquiles e Ulisses são guerreiros e de classe superior; Jesus é um 
            messias, filho de um humilde carpinteiro. Mas tem Jesus muito em 
            comum com os protagonistas da epopéia e da tragédia, por ser, assim 
            como Aquiles e Édipo, aquele cujas decisões determinam o destino do 
            seu povo; como Moisés, Jesus é um líder supremo, “o caminho, a 
            verdade e a vida”.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Outro traço que 
            Jesus tem em comum com os heróis clássicos é o fato de ter sido 
            concebido pelo próprio Deus; portanto, Jesus continua a tradição 
            clássica dos semideuses – embora o dogma da Santíssima Trindade o 
            tenha feito confundir-se com o próprio Deus, o que não acontece com 
            os heróis e outros seres da mitologia pagã. É o próprio Deus, no 
            romance de Saramago, quem confirma essa tradição: “Como não tinha 
            nenhum [filho] no céu, tive de arranjá-lo na terra, não é original, 
            até em religiões com deuses e deusas que podiam fazer filhos uns com 
            os outros, tem-se visto vir um deles à terra, para variar, suponho, 
            de caminho melhorando um pouco uma parte do género humano pela 
            criação de heróis e outros fenómenos (...)”.[23] Na epopéia 
            clássica, o caráter semidivino dos heróis lhes confere qualidades 
            extraordinárias, como força, coragem e inteligência excepcionais 
            –havendo até mesmo uma espécie de superioridade do erro ou do 
            defeito, a hybris, que, pelas conseqüências não apenas 
            individuais como coletivas estaria na origem da noção de trágico. 
            Nos evangelhos, Jesus, por ser filho de Deus, também tem qualidades 
            excepcionais de inteligência e liderança, mas não empunha armas; 
            comanda multidões, mas não exércitos[24] . Na epopéia clássica a 
            epopéia clássica, os vencedores são premiados com as suas conquistas 
            – embora o sentido do trágico dos gregos não permita que essas 
            conquistas sejam fácil e longamente fruídas, sempre se enfatiza a 
            fragilidade do ser humano, mesmo dos semideuses. Jesus, apesar de 
            condenado e executado, apesar de não ser imperador na terra, também 
            é recompensado, mas seu reino “não é deste mundo”. Seu maior 
            heroísmo consiste em ser sacrificado na terra, para reinar ao lado 
            de Deus.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Nem sequer devia 
            ser concebível uma santidade que não conhecesse a força dos homens e 
            a fraqueza que às vezes nessa força há”, diz o narrador do 
            Memorial do convento. A tensão dominante em O evangelho 
            segundo Jesus Cristo, em relação à Bíblia, reside justamente na 
            atenuação da superioridade de Jesus Cristo. Esta atenuação não chega 
            a atingir rebaixamento grotesco – como o caracteriza Bakhtin –, que 
            encontramos somente na descrição de Herodes, quando o narrador se 
            refere aos “vermes que infestam os órgãos genitais da real pessoa e 
            que, esses sim, a estão devorando em vida”.[25] E também ao mostrar 
            Herodes “arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos 
            perfumes de que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos 
            pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria”.[26] Este tipo de 
            rebaixamento jamais acontece na descrição de Jesus, nem da sagrada 
            família, que não são, de maneira alguma, satirizados. Contudo, 
            tampouco apresenta aquela aura veneranda própria de tudo que é 
            sagrado: o Jesus de Saramago é dessacralizado, tornando-se, pela 
            exposição de suas dúvidas e fraquezas, um homem mais próximo de nós. 
            Podemos afirmar, parafraseando o título de um romance de Sérgio 
            Sant’Anna  [27], que Saramago realiza uma profanação delicada 
            – embora muitos fiéis não concordem o adjetivo –, que atinge não 
            somente a figura de Jesus, como também toda a sagrada família –(como 
            já vimos a respeito de Maria). Isto torna o Jesus de Saramago mais 
            humano que o Jesus da Bíblia, que é plenamente seguro de si e de sua 
            missão. Como o costuma acontecer com os heróis clássicos, quase nada 
            sabemos sobre a infância e adolescência do Jesus da Bíblia – exceto 
            aquele episódio em que Jesus discute com os doutores. Mas, ao 
            contrário do que acontece na epopéia, a Bíblia não faz a mínima 
            referência à vida amorosa de Jesus, pois entre as virtudes do 
            messias está a castidade – virtude que será preservada nos heróis 
            das canções de gesta, guerreiros, porém castos.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A primeira 
            diferença, em nível diegético, entre o Jesus da Bíblia e o de 
            Saramago está no fato de que grande parte do romance abrange a 
            adolescência de Jesus: o seu período de formação. O Jesus bebê é uma 
            criança como as outras, sem nada que revele a sua origem divina: 
            “Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por 
            enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma 
            galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha (...)”.[28] 
            Inicialmente, Jesus, que ignora sua condição de filho de Deus, 
            também é um adolescente como os outros, embora bem mais esperto, 
            como comenta o narrador: “(...) a juventude é assim, egoísta, 
            presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser 
            diferente dos da sua idade”.[29] Contudo, para a ortodoxia católica, 
            com sua valorização da ascese, a profanação mais grave é a descrição 
            da vida amorosa de Jesus, que, como faz questão de mostrar o 
            narrador do romance, sente desejo sexual, como qualquer homem: “O 
            corpo de Jesus deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas, 
            como acontece a todos os homens e a todos os animais, o sangue 
            correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de se lhe secarem subitamente 
            as feridas (...)”.[30] Mais adiante, Jesus é iniciado sexualmente 
            pela prostituta Maria de Magdala, que se torna sua companheira. Não 
            deixa de ser irônico que o erotismo, tão reprimido pela Igreja, seja 
            descrito aqui, em belos termos do Velho Testamento, pela estilização 
            das palavras do rei Salomão: “As curvas dos teus quadris são como 
            jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho 
            perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os 
            teus seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela (...)”.[31] 
            Daí por diante, encontramos Jesus vivendo “em concubinato” assumido 
            com Maria de Magdala. E é esse encontro com Maria de Magdala, assim 
            como o primeiro encontro com Deus, que marca a passagem para a 
            maioridade de Jesus. E nessa relação de Jesus com Maria de Magdala 
            prossegue a celebração, já ocorrida nos romances anteriores, dos 
            relacionamentos amorosos ilegítimos, porém autênticos e fortes. É a 
            partir do encontro com Deus e com Maria Magdala que Jesus conhece 
            não somente sua condição divina, como também as terríveis 
            conseqüências desse privilégio. E é a partir daí que Jesus torna-se 
            mais seguro de si. Mas essa segurança é resultado de um 
            amadurecimento gradual, em que acompanhamos todas as dúvidas e 
            hesitações, assim como o remorso, herdado do pai, José, que não 
            avisara aos pais das outras crianças de Belém que seus filhos iriam 
            ser assassinados.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Vemos, então, em 
            O evangelho segundo Jesus Cristo, um José e um Jesus que não 
            estão acima das fraquezas dos homens, mas dois homens, que, sendo 
            santos, nem por isto são imaculados. Vemos também, no Jesus de 
            Saramago, a sua inexperiência, que o narrador relata com leve 
            ironia, primeiro no episódio da mulher adúltera, em que Jesus 
            recomenda que só atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado: 
            “Arriscou-se muito o nosso Jesus porque podia ter acontecido que um 
            ou mais dos apedrejadores, por serem de coração endurecido e estarem 
            empedernidos nas práticas do pecado em geral, dessem ouvidos de 
            mercador à admoestação e prosseguissem no apedrejamento, sem medo, 
            eles próprios, à lei que estavam aplicando, por ser destinada às 
            mulheres”.[32] 
            A ironia torna-se um humor mais explícito no episódio do exorcismo, 
            em que os espíritos malignos são autorizados a ocuparem os porcos, 
            cujo resultado foi inesperado: “Os porqueiros, furiosos, atiravam de 
            longe pedras a Jesus e a quem estava com ele, e já vinham a correr 
            aí com o propósito, justíssimo, de exigir responsabilidades ao 
            causador do prejuízo, um x por cabeça, a multiplicar por dois mil, 
            as contas são fáceis de se fazer. Mas não de pagar”.[33]  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            As inquietações de 
            Jesus revelam, desde o início, pelo menos um traço de superioridade: 
            sua inteligência e seu espírito indagador. Ironicamente é uma 
            qualidade perturbadora, que torna o Jesus de Saramago também um 
            herege, não só em relação à tradição bíblica mais antiga, como 
            também em relação aos próprios evangelhos. E, para exercitar esse 
            espírito questionador seja plenamente realizado por Jesus, o 
            narrador lhe empresta estilemas do um gênero apropriado para 
            destronar as verdades absolutas: o diálogo socrático[34] , pois 
            Jesus discute com seus oponentes “como se na cartilha socrática 
            tivesse aprendido as artes da maiêutica analítica”.[35] Contudo, ao 
            contrário dos sofistas, Jesus não tem como objetivo somente 
            convencer os adversários, mas conhecer melhor a si mesmo, a Deus e 
            aos homens: “(...) O que quero saber é sobre a culpa, Falas de uma 
            culpa tua, falo de culpa em geral, mas também da culpa que eu tenha 
            mesmo não tendo pecado directamente (...)”.[36] Com ironia, Saramago 
            apresenta o próprio Jesus como primeiro questionador da verdade 
            absoluta dos evangelhos. Por este e outros procedimento O evangelho 
            segundo Jesus Cristo confronta a verdade oficial da bíblia com as 
            versões marginais: as heresias.  
  
                    
                    
                 
                    
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Notas: 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            [1] ARISTÓTELES. 
            Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s.d. p. 
            115. 
             
            
            [2] Segundo Huizinga, storia, no dialeto jônico de Heródoto, 
            significa “aquilo que se consegue saber através de inquérito”. 
            Opõe-se, portanto, à noção de revelação divina. Cf. HUIZINGA, J. 
            Über eine Definition des Begriffs Geschichte. In: ______ . 
            Geschichte und Kultur: gesammelte Aufsätze. Tradução de Werner Kaegi. 
            Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1954. p. 6. 
             
            
            [3] Salma Ferraz observa que “[alguns dos evangelhos apócrifos 
            (Proto-evangelho de Tiago, Evangelho pseudo-Tomé, Evangelho árabe da 
            infância, Evangelho apócrifo segundo Felipe, Evangelho apócrifo de 
            Nicodemus) são citados em diversas vezes para preencherem os 
            chamados ‘vazios’ da narrativa bíblica, ou seja, aqueles momentos em 
            que o texto bíblico se cala sobre determinado período de tempo, 
            como, por exemplo, o que teria acontecido com Cristo dos doze aos 
            trinta anos.” FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho 
            segundo José Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998. p. 35. 
             
            
            [4] SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: 
            Companhia das Letras, 1991. p.18. 
             
            
            [5] Ibid. p. 346.  
             
            
            [6] Ibid. p. 108. 
             
            
            [7] Ibid. p. 101. 
             
            
            [8] Ibid. p. 311-312. 
             
            
            [9] LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura 
            Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 25. 
             
            
            [10] Id.   
             
            
            [11] Id.   
             
            
            [12] Mas, no mosaico de Torcello, esse trabalho é realizado pelos 
            próprios anjos (cf. LINK, Op. cit. p. 123). Luther Link observa 
            também que os instrumentos utilizados pelos diabos, na iconografia 
            medieval, são os mesmos utilizados pela Inquisição.  
             
            
            [13] LINK, L. Op. cit. p. 24. 
             
            
            [14] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 392-393. 
             
            
            [15] Exceto naquele momento em que nada em direção a Jesus e Deus, 
            quando por um breve vislumbre de Jesus, lembra um porco 
            resfolegando. Mas aqui parece que a intenção é mostrar que o Diabo 
            não tem a mesma onipotência do Senhor: “(...) à distância era outra 
            vez como um porco com as orelhas espetadas, ouviam-se resfolgos 
            bestiais, mas um ouvido fino não teria dificuldade de perceber que 
            havia também ali um som de medo, não de afogar-se, que ideia, o 
            Diabo, acabámos de sabê-lo mesmo agora, não acaba, mas de ter de 
            existir para sempre. (O Evangelho segundo Jesus Cristo. p. 393.)  
             
            
            [16] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: 
            Companhia das Letras, 1991. p. 364. 
             
            
            [17] Ibid. p. 309. 
             
            
            [18] Id. 
             
            
            [19] Ibid. p. 381-385. 
             
            
            [20] Ibid. p. 436. 
             
            
            [21] Ibid. p. 437. 
             
            
            [22] BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a 
            Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de Franca Neto, 
            Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 
            41. 
             
            
            [23] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: 
            Companhia das Letras, 1991. p. 366. 
             
            
            [24] Posteriormente, já na Europa cristã da Idade Média, os heróis 
            reúnem as qualidades do guerreiro e do santo (ex: Rolando, Joana 
            D’Arc). 
             
            
            [25] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: 
            Companhia das Letras, 1991. p. 86.  
             
            
            [26] Id.  
             
            
            [27] Um crime delicado. 
             
            
            [28] Ibid. p. 89. 
             
            
            [29] Ibid. p. 222. 
             
            
            [30] Ibid. p. 270. 
             
            
            [31] Ibid. p. 282. 
             
            
            [32] Ibid. p. 352 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
             
            
            [33] Ibid. p. 356. 
             
            
            [34] Lembremos que o diálogo socrático, segundo Bakhtin, é um dos 
            gêneros que originaram o romance. (Cf. Bakhtin, M. Questões de 
            literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: 
            Editora UNESP/HUCITEC, 1990. passim). 
             
            
            [35] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São 
            Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 231. 
             
            
            [36]  Ibid. p. 211. 
            
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Bibliografia: 
             
            BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e 
            crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de 
            Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das 
            Letras, 1993. 
            FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José 
            Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998. 
            LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira 
            Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 
            BRIDI, M. V. O evangelho de Saramago: a Paixão de Cristo em 
            perspectiva. In: LOPONDO, L. (org.). Saramago segundo terceiros. São 
            Paulo: Humanitas/FFLHCH/USP, 1998. p. 111-130. 
            SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia 
            das Letras, 1991. 
            SEGOLIN, F. O evangelho às avessas de Saramago ou o divino demasiado 
            humano ou o Deus que não sabe o que faz. CADERNOS CESPUC DE 
            PESQUISA. José Saramago: um nobel para as literaturas de língua 
            portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC, 1999. p. 13-19. 
            SILVA, T. C. C. O evangelho segundo Jesus Cristo ou a consagração do 
            sacrilégio. CADERNOS CESPUC DE PESQUISA. José Saramago: um nobel 
            para as literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC, 
            1999. p. 50-60. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                           
          
            
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Leia José Saramago 
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