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            Gerardo Mello Mourão  
   
            Códigos do silêncio (2000)
 Um momento de beleza
 
 
 Numa breve antologia 
            de poemas, José Inácio Vieira de Melo noz traz um momento da melhor 
            poesia jovem que se está fazendo ali onde nasceu a poesia 
            brasileira: na Bahia, por cujas ladeiras há de ressoar sempre o 
            ritmo rouco, não tanto das sátiras fáceis, mas da lírica do grande 
            Gregório, que, antes de ser o “Boca do Inferno”, foi um anjo de Deus 
            nas praças e nos becos assombrados da cidade mais humana deste país. 
            Ninguém anda impunemente pelo sortilégio daqueles becos e daquelas 
            praças de pedras e sobrados. O contágio lírico da memória do Anjo 
            Bêbado, interpelando o Deus vivo da Bahia, contamina 
            irremediavelmente os poetas. Foi ali que Jorge de Lima abandonou 
            seus alexandrinos parnasianos e afinou a viola dos ritmos 
            inumeráveis com que chegaria à Invenção de Orfeu. Alagoano como Jorge, 
            o poeta José Inácio encontrou também nos sortilégios da Bahia o 
            Registro da fala do silêncio, rompido desde o primeiro poema 
            desta antologia, que parece ser, realmente, um código dos 
            silêncios perplexos em que o ser humano traduz e decifra a 
            linguagem misteriosa de suas invenções. Estamos diante da 
            poesia pura. A vera e mera poesia, que surge nos primeiros poemas 
            deste livro e que é aquela que não se infecciona nem se deprava com 
            teses e causas sociais ou ideológicas, que serão boas ou ruins, mas 
            não são a coisa do poeta e da poesia. Pois a poesia, como nos 
            adverte Croce, é inútil. Isto é: ela não serve a nada e a ninguém, 
            senão a si mesma, à expressão dos conhecimentos memoriais e 
            imemoriais do poeta no passado, no presente e no futuro. Não suja 
            suas sandálias nem em nosso hedonismo nem em nossas necessidades 
            históricas. Seus caminhos se encontram para lá da história, no 
            território ctônico do ser. Ela não trata do conhecimento lógico e 
            conceitual, e só existe na verdade mera e limpa do conhecimento 
            mágico, intuitivo, que não profere conceitos, até porque todo 
            conceito é sempre um pré-conceito. José Inácio sabe 
            disto. Sabe que a poesia nasce do silêncio:
 
            “O que mais tem falado em mim é o silêncio”
            
 O poeta é o 
            habitante do silêncio, o silêncio pascaliano dos abismos e dos 
            espaços infinitos, ao qual a consciência lógica não tem acesso e que 
            é da sesmaria privilegiada do inconsciente e do sub-consciente: 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “Um 
            silêncio de lá, de longe – das plagas interiores – que fala o tempo todo sem dar nome ao dito.”
 A poesia é a clave 
            miraculosa capaz de dar nome ao dito, capaz de dizer o indizível. 
            Ela é o código do silêncio, decifra os hieróglifos e oferece 
            a verdadeira face das coisas, dos lugares e das pessoas – 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            “– 
            semblante formidável: tão formoso quanto pode ser um deus.”
 No poema 
            Espelhomem, partitura oracular deste “opus” de José Inácio, o 
            poeta busca o outro nome do nome, o nome que dá a plenitude 
            da forma. Como ensinam os lingüistas, em nossa língua o sufixo “oso” 
            – “osa” (do latim “osus” – “osa”) significa “cheio de”. Form-oso 
            quer dizer “cheio de formas”, isto é, incorporado à plenitude de 
            todas as suas formas possíveis e imaginárias. “Formoso como um 
            deus” – diz o poeta num de seus versos: um deus – supõe-se – é o 
            ser investido da absoluta totalidade de suas formas.
 ***
 José Inácio Vieira 
            de Melo sabe que o poeta é o fundador dos seres. Só ele pode trazer 
            dos abismos a decifração de todas as formas do ser, para 
            expressá-las na linguagem pura da metáfora. Deus é formoso, isto é, 
            Deus é belo. Todas as coisas que cercam o homem sobre a terra, 
            quando olhadas no lavor de suas formas, são formosas e, pois, 
            são belas. Expressar essa beleza é a coisa do poeta. E a poesia é o 
            milagre da expressão lograda e cumprida, de qualquer tempo, de 
            qualquer espaço, de qualquer circunstância do ser – a rosa, a mulher 
            fugidia pelas ruas de Maceió, essas próprias ruas, a angústia de 
            nossas buscas, a alegria de nossos encontros, o longínquo sino 
            católico de uma igreja submersa na memória ou a cumeeira carcomida. 
            Ao criar a presença real de um rosto de mulher ou de uma chaga no 
            peito de um transeunte imundo tombado na praça, o poeta cria a 
            beleza. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus – 
            formoso – e se o homem é ele mesmo e sua circunstância, como na 
            advertência de Ortega, então tudo foi criado à imagem e semelhança 
            de Deus, inclusive os cães lunáticos do poeta nas esquinas da 
            Bahia. Por isto, o belo é sempre formidável. Toda beleza é terrível 
            como os anjos de Rilke. Não há dúvida de que 
            o livro de José Inácio anuncia e prenuncia um momento de beleza 
            imperecível. De poesia propriamente dita.
   
      
            
       
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