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José Carlos A. Brito




A criatividade demoníaca na rosa erótica de Maria da Conceição Paranhos

 


 

ROSA VIOLADA

A minha dor não mora em minha casa,
mas num jardim de séculos correndo
em seu tropel mordaz. O tempo abrasa,
e o engenho dessa hora vai sofrendo.

Nas avenidas largas da cidade
os carros atravessam a linha torta
– cavaleiros em motos, sem idade
vieram me abordar à minha porta.

Um levou-me o relógio, outro o anel,
o meu cordão de ouro se partiu,
e o quarto bandoleiro me sorriu,

ao ter o meu olhar dentro do seu.
Sacou da cinta uma arma enrubescida,
beijou-a e deu-me a rosa e a minha vida.

 

A poeta inicia pela manifestação de figuras do inconsciente coletivo nos engenhos que escravizaram tantas gerações de africanos, como animais, até a morte, para produzir o branco açúcar, com que se criou a estabilidade dos ricos de hoje em dia. Isso tem a ver com a procura das razões, na impulsão de origem ignorada, do bandoleiro. Ou das incomodas desapropriações de relógio, anel, cordão de ouro, que simbolizam a estabilidade, ante a insegurança bandida. Percebe-se ser essa imagem a de arquétipos do passado doloroso. A própria dor atual é muito mais profunda, vai mais alem, do que uma possível situação econômica precária da poeta. Pois em sua casa não se passa necessidades, ao anunciar que sua dor (a verdadeira dor) “não mora em minha casa” mas nas representações dessas imagens arcaicas de um “jardim de séculos correndo em seu tropel mordaz”. A vivencia interior do inconsciente, transbordando desse tempo, abrasa sua vida no engenho em que transcorreu, na vida imaginária, a hora sofrida.

Mas é bem provável que a imagem dos bandidos seja a herança das gerações massacradas para que hoje alguns vivam tranqüila, reclamando dos azares da violência. Portanto, oferecer o relógio, o anel e o meu cordão de ouro, é a única coisa que os “bandidos” podem lhe tirar, e é muito pouca coisa para a dívida que sua alma possui com o passado. Seria preciso dar infinitamente mais, para salvar-se, num renascimento adequado. Seria preciso dar-se toda; todo o amor possível de sua alma. Porém, para dar o amor - a coisa mais preciosa - é preciso algo que não depende da poeta; a aceitação por parte do oposto, sua disposição e vontade de receber. Mas ele, jamais a aceitará caso não venha a circular intensamente a libido, essa energia da aceitação e do desejo. E assim, o quarto bandoleiro lhe sorriu, formando a disposição do pólo oposto para circulação dessa energia imensa, carregada inclusive com as imagens de um mundo intraduzível de figuras imersas em seu inconsciente.

Mas ela não poderia corresponder caso não fosse tocada também pelo pólo oposto. E nada poderia dar de material, ou intelectualmente, que não fosse o próprio sentimento. E para isso seria preciso tê-lo. Só sendo possível sua obtenção, através do olhar do bandoleiro dentro do seu.

A energia circulante e libidinal, estabelece-se ao ver que a arma sacada da cinta era o símbolo do amor (ou sexo) masculino enrubescido (fogo) pela tensão de paixão implícita no desejo. Mas, porque o bandoleiro beijaria a própria arma antes de dá-la? Seria uma demonstração de amor - mais profunda do que um mero ato sexual - ao amar-se a si próprio antes de oferecer-se, como símbolo da renovação total da vida de ambos? Eis aí, a poeta anuncia em voz alta a conciliação dos opostos, naquilo que deve preceder a qualquer sonho redentor: o amor apaixonado e libidinal, que mobiliza sua energia erótica através da identidade respeitada do outro.

A poeta apaixona-se pelo Daimon (símbolo do fogo e da sedução demoníaca), sem pedir (ou exigir) que ele se transforme em anjo. Sua criatividade nasce dessa rosa vermelha, em que se fundiu sua paixão pelo contrário. Seria um anúncio à coletividade do único amor possível, que salvará o contraste; o amor erótico, nascendo dos opostos. E de que forma ela imagina isso no funcionamento das imagens arcaicas? Amando desesperadamente o escravo que a seduziu com sua imolação e sacrifício. Porém ele se foi, e é preciso acha-lo - porque a saudade é dolorosa - para beijar-lhe as feridas dos açoites. E ainda submetendo-se a seus desejos na função de escrava (o feminino apaixonado). E assim ele lhe dá “a minha vida”.
 



Maria da Conceição Paranhos
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