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Ildásio Tavares


 

Partida ao vento


Soltei meus braços ao vento
Numa noite ventivosa;
Esperei, sem ver o tempo,
Partir sem busca de volta.


Difíceis são as raízes,
Essas que sempre sugam,
Que se penetram nos mitos
Consolidados sem luta.


O vento, ventando força
Pelos tendões dos meus braços,
Irrompeu de muito arrojo,
Invadiu meu corpo, alçando.


Da partida, de repente,
Me senti no certo arranco,
As asas me deu o vento e
Se esfuracou vendavando.


Mas mil anos de raízes
Ficando ficaram surdas
Esmiuçando seus cílios
Na profundeza do inculto.
 

 

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair

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Hélio Pólvora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Glosa

 

Mote

"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . ."


Gil Vicente



Houve tempo e sacrifício
Houve sonho e muita lida
Mas no trato do ofício
Só houve ilusões perdidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas... "


Há vozes que sempre falam
Na escura noite envolvidas
Mas todas vozes se calam
E se perdem diluídas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "


Nosso corpo fez-se estrume,
Nossas forças são tolhidas,
Nossa espada está sem gume,
Nossas dores repetidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas..."


Sempre à margem dos processos
Nossas bocas são retidas
Para nós só há inversos
Todas luzes são vendidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas.


Estruturas poderosas
Todas podres, corrompidas
Nos compram e vendem gulosas
Cada vez mais entupidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "


Nem sangue de muitas mortes
Nos trouxe a luz escondida,
Poderes sempre mais fortes
Nos levaram de vencida —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "


Nas trevas de há muito e tanto
Marchamos safras sofridas,
Amargando nosso canto
Em vozes enrouquecidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "


Distante brilha esperança
De promessas esquecidas;
Atrás ficou a lembrança
De derrotas cometidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "


"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . ."
Mas em cores diferentes
As danças serão corridas
Não pensem os poderosos
Que as almas nos têm vencidas
Somos muitos e teimosos
Nossas cabeças erguidas
Sob o fardo dos milênios
Marcham tenções decididas,
Várias faces, vários gênios,
todos faces retorcidas, —
Nós teremos a chegança
Será nossa a esperança,
Nós teremos nossas vidas.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Artur Eduardo Benevides

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Restos


Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.


Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.


Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.


Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.


Há um resto de mim em toda a parte
Que nunca pude ser inteiramente.
 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Carlos Felipe Moisés

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Ação do Fruto:

 

 

Actio fructus
   Para Tereza Tenório


O que importa a um poema é escrevê-lo –
publicá-lo é perdê-lo – permitir
que os imbecis o pastem, qual pérolas
ruminadas por suínos; ou que os ignorantes
críticos dos jornais detratem-no, mesmo quando
falam bem dele. E que os da Universidade torturem-no,
cozendo-o no tempero insosso da estupidez
cientifica, proferindo asneiras de muito maior
credibilidade. Quando escrevo um
poema , apenas o escrevo, sem cogitar
se vai ser bom ou se vai agradar a alguém.
Acaso o abacateiro preocupa-se com a
qualidade dos seus frutos, uns mais doces,
outros menos, uns maduros, outros não? Se
eu for poeta, darei poesia como o abacateiro
dá abacates. Se algum dia, atraído por meus
frutos, alguém quiser deles provar, que faça
bom proveito – goste ou não goste, a árvore
continuará a produzi-los, casca, polpa, e o
caroço que até se pode plantar – e sempre haverá
goiabas, tangerinas, cajás, umbus, maçãs e as
difíceis nectarinas, para quem goste do sabor
delas. O abacateiro continuara a dar abacates
e eu meus versos, sem jamais nos preocuparmos
com o destino que terão. Todavia, se meus poemas
forem publicados, não quero estar por perto para
vê-los maltratados pelos olhos dos porcos a
mastigar minhas pérolas, frutos que nasceram
De mim, sem que eu sequer quisesse.
 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Alphonsus Guimaraens Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Plenilúnio


Na cidade amordaçada,
ladra a distância na rua
e reluz sobre a calçada
uma indiferente lua.
 


Não sei se e março ou setembro,
se é segunda-feira ou quinta.
Não sei se esqueço ou se lembro,
Se fale a verdade ou minta.
 


O sol tarda na cidade
E a lua reluz no alto,
Esparzindo claridade
Sobre o negrume do asfalto.
 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Jorge Medauar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Catarse


Não hei de me curvar
ante a linguagem do meu tempo.
 


Hei de sobrenadar o seu lixo,
restos de angústia, gula, desespero
e caos (sem todavia perder
a piedade), emergir
em busca de ar; de ar; de luz;
da paz de compreender (decidir)
o que me perder; o que me salvar.
 


Não. Não hei de enveredar-me
entre os dejetos;
não hei de me deter ante os escombros.
 


Seguirei meu caminho; e vou catando
lenha – e preciso acender o fogo;
arrebentar o espelho;
enxugar as lágrimas –
purificar a linguagem do meu tempo.
 

 

 

Caravagio, Extase de São Francisco

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Dimas Macedo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Natal em Bagdá
Thomas Hardy 2004


Dois meninos se caçam.
Dois meninos se acham
e se matam no deserto sagrado,
à sombra de um imponente zigurate.

Indiferentes, fluem os rios
que amamentaram a civilização
no lugar de onde saiu a semente
de justiça, de paz, o ungido do Senhor.

Fosse outra ocasião,
esses meninos estariam jogando bola
e depois, tomando uma cerveja
no primeiro bar da esquina,
contariam suas proezas, um
da fantasia, outro da realidade
de seus haréns, como fazem
os meninos de Ceca e de Meca,
de cá e de lá.

 

 

 

Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

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Cissa de Oliveira

 

 

 

 

13/07/2005